domingo, 12 de junho de 2011

DEUSES AMERICANOS

Neil Gaiman

car

Um trecho:

O piloto do barco era alto, muito magro. Ele - se é que era um ser masculino - usava uma veste branca sem enfeites, e a cabeça pálida que estava em cima da roupa era tão completamente não-humana que Shadow teve certeza de que era algum tipo de máscara: era a cabeça de um pássaro, pequena em cima de um pescoço comprido, com o bico longo e alto. Shadow tinha certeza de já ter visto aquilo antes, aquela figura fantasmagórica, parecida com um pássaro.
Pingos d'água caíam da proa e da popa e ecoavam, e o rastro da embarcação fazia ondas nas águas envidraçadas. O barco era feito de junco, unido e amarrado.
- Olá - disse, sem mexer seu longo bico.
A voz era masculina e, como tudo mais na vida após a morte de Shadow até agora, familiar.
- Suba a bordo. Temo que você vá molhar os pés, mas não posso fazer nada. Estes barcos são velhos e, se eu chegar mais perto, posso cortar o fundo.
Shadow tirou os sapatos e pisou na água. Chegava até o meio das panturrilhas, e era, depois do choque inicial da umidade, surpreendentemente quente. Ele alcançou o barco e o piloto estendeu a mão e o puxou para bordo. O barco de junco balançou e um pouco de água entrou pelas laterais. Depois, nivelou-se.
- Eu conheço você - disse à criatura na proa.
- Conhece mesmo - confirmou o marinheiro. A lamparina pendurada na frente do barco queimava com mais irregularidade, c a fumaça que soltava fez com que Shadow tossisse.
- Você trabalhou para mim. Parece que foi necessário enterrar Lila Goodchild sem você.
A voz era exigente e precisa.
- Senhor Ibis?
- É bom ver você - disse a criatura, com a voz do senhor Ibis. - Você sabe o que é um psicopompo?
Shadow achou que conhecia a palavra, mas já fazia muito tempo. Sacudiu a cabeça.
- É um termo chique para escolta. Nós todos temos tantas funções, tantas maneiras de existir. Na minha visão de mim mesmo, eu sou um catedrático que vive calmamente, e anota seus pequenos contos, e sonha com um passado que pode ou não ter existido. E que é verdade, até onde sei. Mas eu também sou, em uma das minhas habilidades, como muitas das pessoas com quem você resolveu se associar, um psicopompo. Eu escolto os vivos para o mundo dos mortos.
- Eu pensei que este aqui fosse o mundo dos mortos - disse Shadow.
- Não. É mais uma preliminar, O barco escorregava e deslizava pela superfície espelhada do lago subterrâneo. E então o senhor Ibis falou, sem mexer o bico:
- Vocês falam sobre os vivos e sobre os mortos como se fossem duas categorias mutuamente excludentes. Como se um rio também não pudesse ser uma estrada, ou como se uma música não pudesse ser uma cor.
- Não pode - disse Shadow. - Pode?
- O que você precisa lembrar é que a vida e a morte são lados diferentes da mesma moeda. Como cara e coroa.
- E se eu tiver uma moeda com duas caras?
- Você não tem.
Shadow então sentiu um arrepio, enquanto cruzavam a água escura. Ele imaginou que via rostos de crianças debaixo da superfície espelhada da água, olhando para ele com reprovação: os rostos estavam encharcados e inchados, com olhos cegos turvos. Não havia vento naquela caverna subterrânea para per¬turbar a superfície negra do lago.

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