Um dia ideal para os peixes-banana e livros e cinema e gibis e nus e ataxia espinocerebelar e 𓋹
segunda-feira, 31 de janeiro de 2011
OS DOZE CONDENADOS
Sinopse: Durante a 2ª Guerra Mundial Reisman (Lee Marvin), um major americano, tem a missão de treinar 12 soldados, que estão sentenciados à morte ou com sentenças de no mínimo 20 anos. O objetivo do treinamento é uma missão quase suicida atrás das linhas inimigas, para destruir um QG nazista e provocar a maior destruição possível às vésperas do Dia D. Os sobreviventes serão perdoados e reintegrados. Para ver, clique na imagem e vá ao Filmes com legenda.
O SORRISO DO LAGARTO
João Ubaldo Ribeiro
Um trecho:
1
Talvez isto não fique claro ainda por muito tempo, mas o exame consciencioso dos fatos que levaram aos acontecimentos principais deste relato mostra que sua primeira cena se desenrolou em data já um pouco distante, sem que ninguém então pudesse saber o que pressagiava. Deu-se num dia morno e paralisado, em que até mesmo as copas das árvores amanheceram petrificadas, um dia de soalheira. A soalheira se declara depois de uma conjugação de eventos naturais que somente a sabedoria de uns poucos antigos conhece em sua inteireza. De repente, em meio a uma conversa sobre nenhum assunto, um deles aperta os olhos como num esforço para divisar algo longínquo, esfrega a pele dos braços e da cara, cheira o vento e comenta que, pela lua, pelo ar, pela maré, pela textura da pele e por outros múltiplos sinais, amanhã haverá soalheira. E de fato amanhã o dia nasce revestido de uma fulgência metálica meio baça, que converte em azougue estagnado o mar da contracosta da ilha e embuça numa neblina translúcida os socalcos das terras fronteiras. Logo cedo, o sol se alastra no espelho das águas, trazendo um revérbero desnatural aos rostos e fazendo com que os saveiros navegando morosamente ao largo se ocultem de tempos em tempos, por trás dos lampejos dos sulcos niquelados que abrem no mar. Em terra também tudo é lento, e chega a parecer milagroso quatro andorinhas conseguirem fender velozmente o mormaço vítreo que abafa o mundo, para se evaporarem na névoa, harmonizadas como uma esquadrilha.
Nessa grande soalheira, um homem de calças de brim pardo, camisa branca de colarinho e chapéu de palha armado cambou seu barco a motor e resolveu fazer mais um percurso de ida e volta pela orla norte do manguezal que daí a pouco pretendia contornar. Certamente era por causa daquele dia opressivo, sem dúvida que era, mas começou a sentir uma tristeza e um desânimo inexplicáveis, e já não queria colher amostras, como tencionava antes. Diminuiu a marcha do motor e se aproximou dos baixios em volta do manguezal. Embora, nessa hora em que os caranguejos saem para quentar e todas as criaturas da lama se vêem expostas pela maré baixa, devesse haver muitos pássaros mariscando, viu somente um grupo de bem-te-vis empoleirado nos garranchos de uma gaiteira seca espaventar-se com estridência à passagem do barco, e desaparecer por trás das frondes mais cerradas. Com o motor cortado, deixou que o barco deslizasse por cima da água escura, até parar e ficar imóvel como tudo mais em torno. Fez um movimento para pegar a poita, mas logo desistiu, porque não era necessário. Escorregou para o outro lado do banco da popa sem levantar-se, e se deteve escutando o chapinhar da água contra o casco, cada vez mais surdo e breve, mas ainda assim reboando como estrondos, no meio de todo aquele silêncio. Não haveria ninguém pescando, ninguém caçando aratus ou apanhando sururus, nenhum tainheiro escoltando o peixe na boca do rio? Olhou em redor, nada vivo se descortinava, nem sequer a silhueta de uma canoa ao longe, e seus olhos se postaram sobre a vastidão hirta do manguezal. Medo? Vontade de fugir, de se abrigar, de não estar em lugar nenhum? Que desassossego é este, que o deixa tão inquieto, quase tendo palpitações? Agora que mirava o manguezal, o qual o defrontava como uma agregação de furnas trevosas e eriçadas de espinhos, lembrando bocas carnívoras, não podia dizer que sentia propriamente medo, mas sentia algo semelhante, um pressentimento pesado, uma iminência sinistra, a impressão de que em torno dele se fazia um cerco implacável, que viria a sufocá-lo e matá-lo. Sacudiu a cabeça, repelindo os próprios pensamentos, mas desistiu de sua viagem de coleta. Puxou a corda do motor, retomou o canalzinho e embicou rumo à rampa do Mercado, de onde saíra fazia um quarto de hora, e não se sentiu tranqüilo nem mesmo depois que atracou e pulou para o cais.
A angústia ainda o perseguindo, o calor aumentando e a cerveja lhe sabendo a remédio, ficou impaciente quando dois meninos o procuraram para mostrar um calanguinho de dois rabos, que carregavam numa caixa de sapatos. Teve que repreender-se mentalmente para não enxotá-los com grosseria, como sentiu vontade, e suspirou ao ver o lagarto. Normalmente, fingiria grande interesse pelo achado e inventaria histórias a respeito de calangos a que daria nomes e sobrenomes de gente e emprestaria defeitos e virtudes, mas surpreendeu-se falando de modo professoral, monótono e condescendente, chegando mesmo a fechar a cara, no instante em que um dos meninos, meio desapontado com o tom da conversa, procurou achar alguma graça no que dizia. Pegou o calango pelo pescoço e disse que não havia nada de mais naquilo, muitos lagartos podiam livrar-se da cauda, era uma maneira de frustrar predadores como os próprios meninos e, além disso, o fato de o rabo continuar se mexendo depois de separado ainda distraía ou atrapalhava esse predador, porque fica como outro animalzinho independente, se agitando e reagindo a qualquer toque durante bastante tempo. Quando o seccionamento não se completa — acrescentou, mostrando nas vértebras do rabo velho os planos em que a separação poderia ocorrer —, o rabo velho permanece depois que o novo nasce, pode até haver três. O menino perguntou o que queria dizer aquela palavra longa que ele usara, ele se irritou e respondeu asperamente: "É um corte, é um corte!" E, numa compulsão maníaca, continuou a discorrer sobre répteis em geral e lagartos em particular, como se tivesse decorado uma lição. Só depois de haver falado mais de dez minutos, ignorando as feições perplexas dos meninos e agitando o calango na mão direita como uma batuta, é que, ao ouvir a expressão "ovo amniótico, que acabara de pronunciar, caiu em si e passou a rir. A princípio assustados, porque tinham sido proibidos de rir antes, os meninos terminaram por acompanhá-lo e levaram muito tempo assim, até que o menor deles apontou para o calango e perguntou se ele não estava rindo também. Bicho não ri, respondeu o homem e, agora de melhor disposição, mandou buscar dois guaranás e disse, afetando entonações de comentarista de rádio, que os lagartos eram bichos burros danados. A única invenção dos répteis fora aquilo que ele tinha falado, entre as muitas outras palavras que os meninos não haviam entendido, o ovo amniótico. Ovo amniótico não era nada complicado, era simplesmente um ovo, como ovo de galinha. Então os répteis inventaram o ovo amniótico, que é melhor do que pôr e fecundar os ovos na água, como a maioria dos peixes e anfíbios. Mas por aí ficaram, bichos burros danados, que nem aproveitaram as dezenas e dezenas de milhões de anos em que dominaram o mundo inteiro. Nada disso, bicho nenhum ri, muito menos lagarto, eles perderam essa para nós, os mamíferos. Até com os parentes mais aperfeiçoados deles, como as galinhas, o que é que a gente faz? A gente cria e come! Vocês querem saber o que foi que os mamíferos inventaram, que é ainda melhor do que o ovo que se enterra no chão ou se bota no ninho? Pois os mamíferos...
Agora, tanto tempo depois, a troco de nada, João Pedroso recorda esse dia esquisito, ao caminhar rua Direita abaixo, ainda de madrugada, para abrir sua peixaria. Nem ao menos a manhã que chegava prometia ser de soalheira como aquela, pois o vento norte exalava um bafo úmido sobre a cidade e as ondas da maré cheia transbordavam por cima do cais. Estava contente, antecipava até mesmo a hora em que, na companhia dos peixeiros Nascimento e Boa Morte, começaria a tirar os peixes dos congeladores para expô-los no balcão, imaginava tirar as alpercatas e arregaçar as calças para entrar na água e receber os canoeiros e saveiros de pesca abicando na praia com as cavalas da lua nova, sentia-se feliz por ser dono de peixaria e quase chegou a agradecer ao destino por tê-lo levado, ainda que através de meios tão tortuosos, a essa condição. Muito melhor ser peixeiro do que biólogo, pensou, dobrando o beco para o Mercado. E talvez fosse até rir, lembrando sua palestra sobre répteis, quando ouviu um farfalho de folhas murchas por cima do muro do grupo escolar e um calango, da mesma espécie que aquele de dois rabos, mas muito maior, ergueu o pescoço diante dele com a metade do corpo soterrada sob as folhas e pareceu encará-lo, os olhos miúdos anormalmente destacados no alto da cabeça. Chegou a tomar um pequeno susto, mas logo parou para admirar o bicho, que agora agitava a cabeça para cima e para baixo ritmadamente. Com grande espanto, achou que ele estava sorrindo. Apurou a vista, aprumou os óculos e não conseguiu saber direito se o que via era alguma coisa distorcida ou imaginária, mas o calango de fato parecia envolvido numa atmosfera de riso, algo sugeria que estava mesmo sorrindo. Não era, contudo, uma visão agradável, porque havia um pouco, talvez muito, de mofa no sorriso, quase hostilidade. Tentando não espantar o bicho, deu dois passos cautelosos em sua direção, mas ele logo remexeu as folhas com as patas traseiras e levantou o tronco numa postura de alerta. Dois outros passos e o bicho, numa seqüência de manobras bruscas, virou o corpo para fugir e se deteve por um instante curtíssimo em que, a desconcertante aura de riso ainda perdurando, se postou de lado, deixando ver as silhuetas bem delineadas de dois rabos, um saindo do corpo em linha reta e o outro, um pouco menor, implantado num ângulo grotesco. João Pedroso teve um sobressalto e quis chegar mais perto ainda, mas ele se embarafustou ruidosamente por entre as folhas e sumiu.
Sim, claro que era tudo uma coincidência, mas uma coincidência muito esquisita, bem encaixada em demasia, completa demais. Mas sempre uma coincidência, talvez até fácil de exagerar. Sim, repetiu a si mesmo, nada mais do que uma coincidência, e teria certamente começado a ocupar a mente com qualquer outra coisa se, ao levantar os olhos para o mar picado que se descortinava do beco, não se visse engolfado pelo mesmo sentimento inquietante que o acometera naquele dia, a tal ponto que estremeceu. Não, não, tudo impressão, mas sentiu outra vez o coração apertado, a cabeça latejando e um medo aflito, um medo que o acossava de todos os lados.
Muito longe dali, o Secretário da Saúde, Dr. Ângelo Marcos Barreto, finalmente saiu do banho, depois de cerca de uma hora no banheiro, como de costume. Apesar de estar com hemorróidas já fazia algum tempo, nunca procurara um médico porque tinha medo de que ele recomendasse uma cirurgia, e por isso se enfiava um ou dois supositórios de glicerina e permanecia uns cinco minutos fumando e contraindo as nádegas quase em posição de sentido, até a premência se tornar insuportável. Somente então, suando muito apesar da brisa que sempre entrava pelos basculantes, é que se sentava no vaso, às vezes conseguindo ler um jornal e às vezes gemendo e invocando santos ao se sentir lacerado, para bastante tempo depois baixar ao bidê, onde deixava um jato de água fria arrefecer longamente seus baixios incendiados. Em seguida, passava a cumprir um roteiro meticuloso de hábitos que não observava quando mais jovem, mas, depois de uma sucessão ininterrupta de falcatruas, desvios de verbas, comissionamentos em obras e compras públicas, subornos, grilagens e diversas modalidades de recebimentos por advocacia administrativa, durante uma vida pública de pouco mais de vinte anos, havia ficado milionário e, em leituras e consultas sob nomes falsos a seções de etiqueta e moda de revistas masculinas, aprendera tudo sobre como deve ser e agir o homem moderno. Acabara por elaborar, ao longo dos anos, uma toalete complexa, que se iniciava diante do espelho de corpo inteiro, com pesagem e avaliação do tônus muscular e epidérmico, passava por xampus, rinses de grife e sabonetes de cores exóticas presos a cordinhas, e terminava com uma loção para o corpo, uma colônia for men e a secagem dos cabelos com um secador-escova americano.
Lembrando os bons tempos da política estudantil, quando por pouco não levara a chapa de esquerda à vitória nas eleições para o Centro Acadêmico, sem contar com nada além de seu já então reconhecido talento político e a força de sua oratória, repetiu, a voz empostada como lhe haviam ensinado nos dois cursos de dicção que freqüentara, algumas frases do discurso que ia fazer na inauguração das novas instalações do hospital da ilha. Seria um discurso lido, porque não podia arriscar-se a deixar de lado algumas observações que precisava fazer, mas assim mesmo já praticamente o decorara — memória prodigiosa, dom que sempre o ornamentou, agora robustecido pelas vitaminas americanas que costumava trazer aos potes, quando voltava de Nova Iorque. Olhou-se outra vez no espelho. Aquele menino magro, de olhos afogueados, vasta e revolta cabeleira, cabelos despencando em cima dos olhos e palavra inspirada, para quem tantos e tantos professores previram um futuro de glória e dedicação à causa pública, não decepcionara os vaticinadores. A Secretaria da Saúde, que nunca foi das melhores plataformas para a ascensão política, nas mãos dele se transformava num instrumento mágico, que manejava com habilidade cada vez maior. Um posto médico em cada distrito municipal era sua meta e cavalo de batalha. Meta de grande potencial político-eleitoral e tornada possível, perfeitamente possível, com o recém-obtido financiamento do Banco Mundial, tanto assim que as obras já tinham começado em vários municípios, a cargo da empreiteira de seu primo Rubem Barreto Chaves, com quem mantinha estreitos vínculos comerciais e afetivos. Pensou no slogan que vinha criando secretamente, para sugeri-lo à agência encarregada da propaganda de sua campanha. Imaginou-o resplandecendo no rodapé de uma lista estonteante de realizações em todo o Estado: o Secretário do Século. Não, não, não soa bem, a outra versão é bem melhor: o Administrador do Século. Melhor, muito melhor. Por aí. Tinha de ter "século", disto ele fazia questão, até porque não deixava de ser verdadeiro, sob muitos aspectos, inclusive o dinamismo. E depois Goebbels, o grande Goebbels — ou senão Hitler, um dos dois — já recomendava esse tipo de grandiloqüência, funcionava, era eficaz para empolgar as massas, é indispensável pensar grande e falar grande.
— A nível de atendimento, capacitação tecnológica e qualificação de pessoal — declamou à frente do espelho, a mão em concha fremindo no ar anuviado do banheiro —, podemos afirmar que estamos, neste instante, dotando toda esta sofrida região de um dos melhores hospitais públicos do Norte e Nordeste, capacitado a prestar a toda a população atendimento ambulatorial, obstétrico e geral de elevadíssimo padrão. O convênio que, através de um esforço ingente e arrostando as críticas mais duras, desleais e impatrióticas, firmamos com a Lloyd Gunther Foundation e o Laboratório Loechs-Stroheim hoje tem como resultado este magnífico complexo, digno dos centros mais avançados deste país, onde inclusive a pesquisa científica, no regime de intercâmbio também proporcionado pelo convênio, tem destacado papel, com diversos programas de magna importância já em curso, até mesmo muito antes de as novas instalações serem concluídas. Esta é a resposta mais eloqüente e contundente que podemos dar aos críticos de nossa administração. A democracia, ela não é a penalização do cidadão, em nome de preconceitos xenófobos e retrógrados. A democracia, ela não é sinônimo de atraso, como a esquerda passadista parece desejar. Onde interesse ao Brasil, nós queremos a cooperação internacional, sim, e temos a coragem de proclamar com transparência esta posição patriótica em defesa do bem-estar de nossa população, mesmo que essa posição não seja palatável para os demagogos que se rotulam de esquerda, mas não passam da encarnação perversa do imobilismo e do reacionarismo, disfarçados, mascarados, encobertos por uma tênue e frágil carapaça de bravatas e inverdades pseudonacionalistas e pseudoprogressistas! Nós não falamos, nós agimos! Nós não dizemos, nós fazemos! Nós não prometemos, nós cumprimos!
Dominou a exaltação que lhe sobreveio, ofegou um pouco, passou a mão no cabelo e sorriu. Realmente, era uma coisa curiosa, devia ser o que o velho Abreu Godinho chamava de espírito cívico: se o assunto era o povo, a grande massa de baianos e brasileiros em geral, não podia conter uma emoção arroubada, que o deixava fora de si e falando como se uma voz transcendente se incorporasse nele. Eventualmente, isso podia prejudicá-lo, como, aliás, já tinha ocorrido algumas vezes, mas lhe trazia orgulho ao mesmo tempo, o orgulho de ser um político sincero, comprometido de coração com a defesa dos legítimos interesses do povo, numa vocação insopitável. Se bebesse antes do discurso, tinha certeza de que choraria. Sempre fora assim e até os que o antagonizavam sabiam disso. Quando ingressou na Arena, ainda no tempo em que o MDB se chamava Modebrás, houve quem visse naquilo uma traição a seus princípios. Que traição, a que princípios? Continuava um democrata visceral como antes, talvez mais, agora temperado pelo equilíbrio da meia-idade. Política, coisa que esses caras fingem não compreender e só compreendem de acordo com sua conveniência, é pragmatismo, é pé no chão, é realismo. Sua postura ética durante todo esse tempo é comodamente esquecida, em favor de uma mera questão formal, uma simples filiação partidária, uma coisa circunstancial, destituída de verdadeira importância. Ninguém lembra que, apesar de ligado a certos setores das Forças Armadas, através de oficiais com quem fizera amizade no tempo do CPOR e durante os dois estágios que cumprira, nunca dedurou quem quer que fosse e, pelo contrário, ajudou muita gente boa por aí, que se livrou de uma pior por causa de sua influência. Muitos porretas desses, que hoje estão de volta até em organizações declaradamente comunistas e se sentem à vontade para abrirem o bocão e esculhambá-lo, foram salvos pela sua interveniência, quando a Operação Bandeirantes já estava praticamente com as garras neles. Ou seja, não seria exagero dizer que mui ta gente lhe deve a vida, ou pelo menos a saúde, já que a maior parte nem chegou a apanhar, que era o mínimo que podiam esperar na prisão. Isto além da ajuda que dera a dezenas e dezenas de cassados, embora não, é claro, a clandestinos, porque há limites que não podem ser transpostos. Mas nada disso era lembrado, ninguém lembrava sequer a cristalina verdade de que, sem gente como ele, trabalhando por dentro do sistema, até hoje a abertura poderia ser apenas um sonho. Só se lembravam das pretensas coisas negativas, é espantosa a capacidade do ser humano para a inveja e a destrutividade, não é de admirar que pessoas como ele volta e meia se vejam dominadas por uma avassaladora descrença na Humanidade. E depois que, por ironia, ele ingressara nesse fantástico MDB, isto fazia diferença para eles? Mas quem tem boca diz o que quer, os cães ladram e a caravana passa.
Abriu a porta do banheiro, que dava para uma suíte avarandada e decorada em matizes de laranja, com uma parede de espelhos em frente à vasta cama redonda de cabeceira de bronze reluzente, duas grandes caixas de som embutidas acima de mesas-de-cabeceira de tampo de mármore, um aparelho dê tevê de 36 polegadas em cima de um movelzinho com rodas e uma espécie de saleta de estar junto à varanda, composta de uma mesa oval, quatro cadeiras de estilo indefinido e duas poltronas baixas de couro, entre vasos de samambaias e antúrios. Na passagem, arrancou com um gesto irritado uma folhinha de samambaia e a esmigalhou entre os dedos. Como, naquela época, podia ter deixado de ingressar na Arena? — perguntou-se, exasperado como sempre ficava, ao se deparar com argumentos infundados. Queria fazer carreira política, todo mundo sabia disso, tinha ideais que só podiam ser concretizados através do poder. Em política, quem não está no poder está somente fazendo blablablá, não existe isso de política sem poder. E qual tinha sido seu grande passaporte, seu grande trampolim para o acesso ao poder? O apoio do velho Abreu Godinho, naturalmente. O filho único do velho, seu colega de turma, não queria nem ouvir falar em política, vivia enfurnado num laboratório, perseguindo delírios endocrinológicos, e só trabalhava numa clínica para ter alguma renda própria, além da de professor universitário, que não dava nem para comer decentemente. Então o velho, num processo perfeitamente compreensível, adotara o melhor amigo do filho como seu herdeiro político, quase como um filho também. As opções eram claras: a) entrar para o Modebrás, dar murro em ponta de faca, cair em desgraça com o velho, arriscar-se a comprometer-se definitivamente, empobrecer de vez, conseguir quaisquer mil votos e olhe lá, e não fazer absolutamente nada, a não ser se queixar; b) entrar para a Arena com a eleição garantida pelos votos do velho na região do São Francisco, assumir uma cadeira de deputado estadual e ter condições de efetivamente realizar alguma coisa. Só um mentecapto poderia conceber escolha diferente da que ele fizera, era uma questão de consciência. Tinha convicção de que seus ideais e sua maneira de ver o mundo não mudaram. Apenas tomara uma decisão tático-estratégica de caráter pragmático, apenas isto, do mesmo jeito que a debacle do PDS o levara a filiar-se ao MDB — questão básica de sobrevivência política, esses babacas só elogiam quem despenca e quebra a cara. A política não pode ser conduzida à base de paixões improdutivas e apenas voluntariosas, é isso que muita gente não quer entender, ou finge não entender.
Muito bem, hora de escolher a roupa. Um terno leve, por causa do calor da ilha. Mas terno e gravata, nada dessa cafajestada populista que está na moda agora, coisa de baixa extração tipo PT. Rememorou sua inclusão na lista dos dez políticos mais bem-vestidos — "uma elegância espontânea e relax, sempre discretamente na moda", havia escrito a colunista na legenda de sua fotografia, que ele passara a manhã inteira contemplando. Claro, claro, essas coisas contam ponto, é uma questão de imagem. Colete? Não, colete não, exagero, cafajestada ao contrário. O terno de linho beige, que dá aquele charme amassado, com uma gravata cor-de-vinho. Ou o azul-claro? Lamentou que Ana Clara não estivesse presente, para dar um palpite. Nem de manhã se viam mais, agora que ela tinha inventado essa história de montar uma academia de ginástica no salão em cima das garagens e ficava desde as sete horas mandando um batalhão de mulheres de malha abrir as pernas e dar pulinhos ao som de oito alto-falantes a todo vapor. Razão tivera Nonato, quando, na época da separação de Regininha, que foi aquela merda que todo mundo sabe, lhe disse, enquanto enchiam a cara no Méridien: trocar de mulher é trocar de grilo, uma é pão-duro, outra é estróina, uma lhe corneia, outra fiscaliza até sua sombra, uma tala como uma condenada, outra não alimenta papo nenhum, uma gasta duas safras de cacau por ano em roupas, balangandãs e recauchutagens, outra vive mais despencada do que uma anta com lordose, e por aí vai, trocar é besteira, só se justifica para quebrar a monotonia. Bem, pelo menos Ana Clara não enchia o saco como Regininha, justiça seja feita. No dia em que entrou no gabinete dele de repente e ainda o pegou puxando a mão rapidamente de baixo da saia de Telminha e se instalou aquele clima todo sem graça, ela não deu a menor bandeira, nem falou nada,.ficou absolutamente na dela. Pensando bem, não ' custava nada dar um telefonema para ela no meio do dia, dizer qualquer coisa agradável. Afinal de contas, era sua mulher, uma mulher boa, honesta, bonita e relativamente culta, embora talvez um pouco bobinha, um pouco desambiciosa demais, até em termos intelectuais, meio dondoca, a verdade era essa, mas dondoquinha boa, das inofensivas, que conversam bem e não causam mal-estar em coquetéis. Sua mulher, afinal. E outra separação, a esta altura, nem pensar — política e economicamente seria uma hecatombe, e ele ainda tinha verdadeiras convulsões de ódio, sempre que lembrava como Regininha havia partido para lhe tomar as calças durante o processo e como teve de molhar a mão de mais gente do que a população de Maceió para conseguir melhores condições — molhar não, inundar, inundar, submergir! Dr. Jackson Florêncio, com aquela cara de santa alma reta e digna lá no Fórum, aquele filho de uma puta, aquele corrupto safado que, quanto mais via bens arrolados por ela no processo, mais queria meter a mão. Hoje, desembargador. É de matar em qualquer um a esperança no futuro deste país. Bem, o negócio é esquecer, passado é passado, não adianta remexer.
Sim, telefonaria para ela, decidiu, pensando em se também mandaria umas flores. No começo, se despedia dela lá mesmo na ginástica, mas talvez porque não podia deixar de mesmerizar-se pôr aquelas bundinhas arrebatadoras, naquelas posições tipo "não precisa se mexer, que assim mesmo você morre", ela terminou dizendo que não queria que ele passasse por lá, podia dar falatório e os maridos de algumas alunas podiam não gostar. Ele preferiu não discutir, e agora descia direto para a salinha contígua à copa, onde era servido o café da manhã. Como sempre lhe acontecia, ao se defrontar com a mesa vistosamente arrumada, guardanapos brancos quase luminosos em suportes de prata, porcelanas de cores delicadas e alegres, copos de cristal faiscante, talheres delgados e graciosos, ressentiu-se por lhe ser proibido comer o que gostaria e como gostaria. Aquela mesa era como uma cidade de arquitetura perfeita, mas absolutamente desértica, sem qualquer tipo de vida, uma planta sequer. Nunca mais ovos estrelados com bacon, nunca mais uma omeletezinha como aquelas de primeira classe de vôo internacional, nunca mais salsichinhas fritas com panquecas, nunca mais torrada após torrada, afogadas em manteiga derretida. Sentou-se um tanto melancólico e bebeu mais suco de toranja com adoçante do que pretendera inicialmente. Olhou com desgosto a compoteira onde haviam posto o cereal, abriu-a, colheu um punhado de flocos amarronzados, despejou-os numa espécie de terrinazinha e derramou um pouco de leite desnatado por cima, começando a mastigar como quem está sendo coagido a comer folhas secas. Com gestos miúdos e furtivos, lançou um olhar à porta da copa para ver se não havia algum empregado que o pudesse flagrar, e espalhou duas colheradas de açúcar sobre o cereal, dando uma risadinha juvenil de satisfação.
Já não se sentia tão desalentado durante a segunda xícara de café, acompanhada por um cigarro de baixos teores, embora soubesse que também tinha de deixar de fumar, como já tentara diversas vezes. Diabo, o sujeito vai chegando perto dos cinqüenta e não pode fazer mais nada, é triglicerídio pra lá, colesterol pra cá, cancerígeno pra acolá, tudo faz mal, até se cuidar faz mal, dá estresse. Não se é imortal, vai-se morrer, pensou, inquietando-se tanto com a idéia que teve de sair da sala como quem foge. Quando o sujeito é jovem, é imortal, só quem morre são os outros. Mas de repente gente de nosso tempo começa a morrer, chega a parecer que cada dia embarca um. Veio-lhe à mente, embora ele não quisesse, o cadáver medonhamente roxo de seu amigo Macedinho, que ainda outro dia estivera com ele, muito vivo e, por ironia, num enterro. Não tinha a saúde boa, mas também não era péssima e, que diabo, 47 anos não são ainda velhice. Mas morreu. Morreu de repente, pouco antes de ter chegado à fazenda, segundo os parentes uma morte horrível, agarrando-se aos lençóis com falta de ar e dando roncos arrepiantes. "Laringite edematosa", explicara o Gomes de Melo. "Caso exemplar, a epiglote dele virou uma minhoca. Não é o seu caso, porque ele tinha problemas renais e uma porção de outros trecos que contribuíram, mas está na cara que o risco dele aumentou muito porque ele não tirava o cigarro da boca. Seu caso é bem mais singelo, é claro, mas se lembre que você tem a mesma idade que ele. Seu caso é traqueíte tabagística braba, com alteração de voz. Se não parar de fumar, CA. Deixe comigo, que eu sou bom de traqueotomia radical, não tem mistério." Não gostava nem de ver o Gomes de Melo, que, com aquela cara, devia ser urologista municipal numa zona de puteiro e nunca otorrino de prestígio. Além disso, é tirado a engraçadinho, porque ninguém pode fazer um prognóstico desses assim, isso é um jogo estatístico, não é assim. O rosto de Macedinho, uma ilha cor de ameixa fresca num mar de flores tristes, insistia em ser recordado. Sim, deixaria de fumar, sim, claro que deixaria, só que hoje, especialmente por causa da viagem daí a pouco, precisava deste cigarrinho. Fumar depois do café às vezes lhe dava vontade de ir ao banheiro novamente e lhe causava pânico a idéia de precisar fazer isso durante a viagem, de forma que tinha de precaver-se.
Ainda com o cigarro meio fumado na mão, chegou ao pátio em frente aos canis. Seria mais uma oportunidade para os cachorros se familiarizarem com ele, pois, apesar de tê-los criado desde pequenos e requisitado um sargento da Polícia Militar para adestrá-los, não conseguia convencer-se de que aquelas bestas-feras eram dignas de confiança — não quase comeram um jardineiro, homem com quem pareciam acostumados e nunca tinham ameaçado antes? Os três filas estavam deitados no fundo dos canis, mas se levantaram e colaram os focinhos nas grades, quando ele se aproximou.
— Então, Winston? — disse ele, curvando-se e batendo palmas. — Então, rapaz?
Winston não se moveu e continuou a fitá-lo com uma espécie de atenção desdenhosa, um dos olhos injetado e remelento. Ângelo Marcos pensou em afagar a cabeça dele, que entre todos era o de que tinha menos medo, mas não gostou do olhar que ele dirigiu a sua mão e recolheu-a. Talvez a mão esquerda. Não, besteira, não ia arriscar-se a ter a mão, esquerda ou não, reduzida a uma almôndega, na boca de um paquiderme daqueles. Pronto, basta ficar por aqui, enquanto eles se acostumam mais um pouco com o cheiro do dono. Como é o comando para "sentar"?
— Sit! — ordenou, recordando-se subitamente, mas nenhum deles se sentou. — Sit!
Depois de parecer refletir sobre a ordem, apenas Winston, com um bocejo em que a boca assumiu o lugar de toda a cara, decidiu sentar-se, olhando com indiferença para a frente Os outros continuaram como estavam. Ele ficou meio sem graça, atirou o toco do cigarro fora, chamou um segurança para recomendar-lhe que mandasse alguém pingar colírio nos olhos de Winston e chegou à conclusão de que não mais precisaria ir ao banheiro, não se anunciava a temida repetição. Resolveu mais uma vez que na próxima semana tomaria coragem e marcaria a operação, o problema já estava ficando muito desagradável, até viagem longa de avião era um suplício, enquanto ele se agüentava, para só ir ao banheiro no hotel. O segurança foi chamar o carro, que estacionou ao lado dele alguns segundos depois. Para dar exemplo, usava seu próprio carro, com um motorista do Estado, cujo salário complementava com uma gratificação. Se um Secretário tinha condições de usar seu próprio carro, no caso um de seus cinco, não havia por que utilizar e desgastar um bem do Estado — esta era apenas mais uma faceta de sua conduta, avessa às mordomias às custas do contribuinte. Entrou atrás, resmungou um bom dia ao motorista e, como de hábito, achou o carro pouco espaçoso, uma caixa de fósforos acanhada e mal-amanhada, porcaria nacional, não há um que preste. Sim, mas não podia ter o Volvo com que sonhava e que o fazia mergulhar em devaneios diante dos anúncios nas revistas estrangeiras, não podia ter nenhum daqueles carros deslumbrantes, seria chamar muito a atenção, se bem que pudesse provar, com quilos de provas, a legitimidade de tudo o que estava em seu nome. Mas já bastavam os comentários que ele sabia existirem, como aliás existem a respeito de todo homem público brasileiro, é a nossa baixa educação política. Pode não parecer um grande sacrifício, mas é, é m#is um grande sacrifício, entre muitos, muitos outros. Sim, pode não parecer, mas quem gosta de carros entende, pensou, dizendo ao motorista que primeiro passasse na casa do cônsul americano, que era seu convidado e iria com eles para a ilha.
Às cinco horas da tarde, depois de passar a manhã com as turmas de ginástica, nadar na piscina, almoçar sozinha e dormir um pouco, Ana Clara resolveu que ia fumar um enormíssimo baseado na companhia de Bebel, para depois comunicar a ela que finalmente tomara a decisão de arranjar um namorado, talvez dois, talvez até três. Bem o número não vinha ao caso, em rigor não decidira arranjar um namorado, decidira namorar, genericamente. Namorar, namorar, namorar, pensou, quase rodopiando como as heroínas de musicais americanos em momentos de êxtase. Parou diante do gavetão onde, no fundo, por trás de um tumulto de panos e bolsas, guardava a latinha da maconha e deu uma risada extravagante, uma espécie de hó-hó-hó debochado, que surpreendeu a ela mesma. Gostou da risada e repetiu-a diante do espelho, lançando a cabeça para trás e se achando muito bonita. Namorar! Sistematicamente. Rotineiramente. Nova filosofia de vida, Ana Clara em nova fase. Chega de bobagem, como. aliás, tinha proclamado a própria Bebel, no dia do jogo de biriba em que, sem levantar os olhos das cartas, disse "pensar, não, eu já dei", quando perguntaram se alguma das quatro ali já pensara em dar para outro homem depois de casada. Marcinha, que nunca perdeu nem os erres mineiros nem o costume de ficar vermelhíssima e dar gargalhadinhas tiritantes toda vez que alguma coisa lhe causa nervosismo, deixou cair as cartas em cima da mesa e teve de abandonar a cadeira quase sufocada, até conseguir beber meio copo d'água e a crise de riso e tosse passar.
— E dou — acrescentou Bebel, desta vez levantando os olhos. — O que é que a outra tem, fez uma canastra real?
Juntou-se ao riso geral e acompanhou Ana Clara na tarefa de dar tapinhas nas costas de Marcinha.
— Não fale mais nada ainda, Bebel — disse Marcinha,
tossindo e enxugando os olhos. — Deixa eu me recuperar.
Mas Bebel falou logo, mesmo porque ninguém se interessou mais por outra coisa que não ouvir o que ela, com o jogo abandonado e esquecido e depois de pedir martínis secos para todas menos Marcinha, contou com um sorrisinho meio torto, iniciando por explicar que, quando falara "e dou", não tinha querido dizer que no momento estava dando, porque, honestamente, não estava tendo nada com ninguém fora de casa. Expressara apenas uma atitude geral, uma postura diante da vida, uma posição filosófica — com seu lado lúdico, claro, mas o lado lúdico fazia parte dessa filosofia. Porque, no momento, com toda a sinceridade, não havia ninguém mesmo e homem não é tão fácil assim de achar quanto se pensa.
— E também, se houvesse, eu não diria o nome dele, porque tomei chá em pequena e acho deselegante ficar comentando os homens que eu como — disse com solenidade caricata, e Marcinha teve outra crise de riso, embora menos forte desta vez.
Enquanto se estabelecia uma quietude absoluta na grande varanda envidraçada e apinhada de plantas como um jardim de inverno, Bebel, buscando às vezes uma frase de efeito ou outra e talvez gesticulando exageradamente, expôs sua posição filosófica. Ela não era uma galinha de jeito nenhum, julgava-se até uma mulher sóbria e comedida, que absolutamente odiava, mas odiava mesmo, a idéia de sair por aí, indo para a cama com tudo quanto é homem. Apenas não se considerava morta por ser casada, sabia que o homem dela também não se considerava morto e então às vezes se permitia uma experiência. Ajuizadamente, com equilíbrio e — por que não dizer? — educação, educação, sim senhora, educação é muito mais importante, em tudo, do que se imagina, grossura e insensibilidade são um horror. Ela era adulta, sensata, educada, tinha senso de conveniência, não era maluca para expor o marido, tendo casos com homens de segunda e fazendo bobagens. Agora, também não podia perder essa coisa lúdica, essa coisa na realidade inocente, a que a gente empresta tanta carga ruim, tanto baixo astral, essa coisa linda que é o namoro, a alegria de uma transadinha nova sem culpa. De forma que, quando a oportunidade aparecia e ninguém ia ficar prejudicado, mas ninguém mesmo, ah, aí com certeza! Claro que Nando sabia de tudo, claro que sabia, ela já mantinha um caso com Nando bem antes de se separar de Tavinho. Nando conhece o que ela pensa e, ao contrário do que poderia parecer, o casamento deles, o amor deles, melhor dizendo, se fortalece com isso, é um casamento sólido, sem repressões, em que não se tem de esconder nada e se pode falar tudo. Ela só não contava a ele, naturalmente, os detalhes, nem queria saber dos detalhes dele, porque achava isso uma coisa sórdida, coisa de degenerado, pior do que isso só um desses tarados abjetos que pagam para ver a mulher transando com outro, é necessário manter o respeito e a educação em qualquer relacionamento de amor—e ela adorava Nando, não podia suportar a idéia de ficar sem ele, não gostava nem de cogitar dessa hipótese. Só não acreditava nessa coisa de dar exclusivamente para cornear, como uma espécie de vingança, isso nunca, isso tira o caráter lúdico da coisa, injeta um baixo astral na coisa toda, acaba revertendo para a pessoa na forma de energia negativa. Quando suspeitava que um cara, podia ser até um galã italiano saidinho do banho de toalha enrolada, estava a fim dela porque a dele era cornear Nando, esqueça, não havia força que a fizesse topar. Tavinho mesmo, Tavinho mesmo! Tinha coisa melhor, para ambos os interessados, do que um encontro amoroso com o ex-respectivo, depois de algum tempo de separação, quando não há mais briga nem ressentimento, assim numa transação lúdica e carinhosa? Todo mundo concordava que não tinha, perguntassem a qualquer um. Ela havia até pensado nisso em relação a Tavinho, Tavinho não era má pessoa, muito pelo contrário, era divertido e agradável, só não servia para casar. E as coisas já iam até meio encaminhadas, quando, na festa em que eles se encontraram durante uma viagem de Nando, de onde talvez conseguissem dar uma escapulida sem muitos problemas, ela sacou — sabe essas sacadas que pintam de repente, você não sabe por que, mas você tem certeza? — que Tavinho estava era querendo aplicar o contra-corno em Nando, a motivação dele era essa. Ah, esfriou na hora, mas na hora! Não só isso era desmerecedor para ela, que afinal estaria servindo de mero instrumento para a auto-afirmação de um cabeça-de-vento que, como homem, como caráter, como tudo, não chega nem no chulé de Nando, como também uma coisa dessas ela não permitia que ninguém fizesse com o marido dela, ferir a honra e a dignidade dele, não, isso nunca.
— Mas eu acho meio frescura de vocês fingirem que não sabiam — concluiu, depois de falar uns vinte minutos sem que ninguém a interrompesse. — Eu tenho certeza de que isso se comenta a boca pequena, ou até a boca grande mesmo, inclusive porque eu nunca escondi. Não ando assim alardeando aos quatro ventos, mas também não procuro esconder, eu odeio hipocrisia.
— Eu pensei que era no tempo do Tavinho. No tempo do Tavinho, tudo bem, com aquelas festas na fazenda que levavam uma semana e aquele povo todo lá e os artistas de televisão e aqueles gringos doidos...
— Bem, no tempo de Tavinho não tinha opção, era praticamente obrigatório, não é? Cheirando daquele jeito, Tavinho...
- O Tavinho tem cecê? Cheirando daquele jeito, como, hálito de bebida?
— Marcinha, tem de haver um limite para esse seu abestalhamento! Hálito de bebida?
— Ué, a Bebel falou...
— — Cocaína, cocaína, Marcinha, cocaína! Cocaína você já ouviu falar, não já? E alguém desconhece que Tavinho vive cheirando pó o tempo todo e não sei por que milagre ainda tem nariz? Você mesma não se lembra daquele dia em que ele chegou doidão em sua casa e queria esticar umas fileiras para você e Afrísio e você correu para se trancar no quarto, transida de pavor, e Afrísio quase sai na porrada com ele?
Ah, e me trancaria de novo, não suporto essas coisas, não sei como vocês encaram essas coisas com tanta naturalidade, não gosto nem de me lembrar daquele dia.
— Tudo bem, Marcinha, mas não tem cocaína nenhuma aqui, ninguém aqui está cheirando nem lança-perfume, deixe Bebel responder à pergunta, você mesma foi quem perguntou sobre o tempo de Tavinho. Bebel, você ia dizendo que, no tempo de Tavinho, não tinha opção.
— Não tinha, precisava ser uma múmia para não entrar naquela. Todo mundo completamente louco, inclusive ele, aquela cafungação desenfreada, acabava pintando alguma coisa, era inevitável. Até mesmo porque ele estimulava. Ele mesmo, quando cheira muito, broxa, não é segredo, ele vive anunciando isso, e é verdade. Fica completamente broxa, com aquele negocinho penduradinho, igual a um amendoim cozido, daqueles murchinhos, de fundo de tigela. Mas na cabeça, minha filha, é uma ligação só, ele só pensa e fala em sacanagem. É botar uma fileira no juízo e ele vai comer todo mundo, a mulher dele vai comer todo mundo, todo mundo vai comer todo mundo, até as mulheres da família ele fala em comer.
Você já viu ele atacado algumas vezes, Aninha, você sabe como ele fica.
É, mas ele também fica engraçado, falador, espirituoso.
— Para você, porque ele, mesmo cheirado, nunca teve coragem de cantar você, não só porque você não cheira e aí não facilita, como porque ele tem medo de Ângelo Marcos, mas vá por mim, que já vi ele aprontar milhares de vezes, ele não é fácil.
— E ele dava força para você...
— Dava força? Ele praticamente me jogava! E eu, naquela época, ainda muito boba, apaixonada por ele, achando pó a maior maravilha do mundo, acabava entrando nessa, entrei mesmo. Até que, é claro, encheu o saco e eu descobri que não dou mesmo para esse tipo de vida, não é a minha.
— E ele nunca se chateou com isso, não?
— Na rebordosa, até a fileira seguinte. Quando ele amanhecia viradão e de ressaca, e decidia comer, beber leite e tomar vitaminas e sais minerais durante vários dias, para se recuperar da pauleira, geralmente ficava todo macambúzio,
Talava pouco, não queria conversar sobre a noite anterior e se trancava horas no estúdio. Cansou de dizer que ia dar um grande refresco, passar um semestre sem cheirar e coisas assim. Mas você sabe como é que ele pega o pó dele, não sabe?
Geralmente, é de graça. Pode pó de graça, já imaginou, mesmo ele sendo rico? Quer dizer, o cara que arranja o pó para ele vive tomando dinheiro emprestado e nunca paga, essas coisas, mas basicamente sai de graça. Direto da polícia, da melhor qualidade, como o da polícia sempre é. Quem descola é esse cara, um primo dele que foi criado junto com ele e não deu para nada e foi ser polícia e também cheira em escala industrial, sempre esqueço o nome dele. Alcíades, veja que nome. Pois Alcíades não falha nunca e aí, com aquele pó todo em casa, dava dez horas da noite e Tavinho, depois de devorar ovos quentes como um gambá o dia todo — era a única coisa que ele conseguia comer nessas horas, além de beber o leite de umas quarenta vacas — e dizer que estava se sentindo bem alimentado, resolvia dar um realce. Somente um realce, sabe como é, um realcezinho. Realce esse, já viu, não é? Quando ele levantava a cabeça da bandejinha térmica, com os olhos faiscando e aquele biquinho e dava aquela fungadinha esfregando a aba do nariz, você podia enroscar uma lâmpada de 200 velas na boca dele, que acendia no ato. Aí, pronto, aí ficava tudo normal de novo, tudo natural, todo mundo voltava a dever comer todo mundo etc. etc. etc, a mesma transação de sempre.
— E agora, com Nando, é diferente.
— Completamente! Não tem nada a ver, e inclusive Nando e eu nem cheiramos mais, só assim socialmente, uma vez na vida e outra na morte, quando algum amigo apresenta, mas, assim mesmo, nem sempre. Não, nada disso, agora é uma coisa sadia, honesta, aberta, uma coisa normal, não tem nada daquela maluquice destrambelhada. É como eu disse antes, é uma filosofia de vida sólida, tranqüila, séria.
Nos meses posteriores a essa conversa, que Ana Clara passou a considerar histórica, Bebel e ela se aproximaram ainda mais e agora não havia dúvida de que eram as melhores amigas uma da outra. Com absoluta certeza, nenhuma dúvida. Verdadeiro presente do céu, a volta de Nando à Bahia, depois de tanto tempo no Rio. Inteligente, corajosa, solidária e com um senso de humor sempre afiadíssimo, sempre, como ela mesma dizia, num astral altérrimo, Bebel tinha literalmente subvertido a vida de Ana Clara, tinha feito uma completa revolução, a realidade era essa. Sou outra mulher, pensou Ana Clara, abrindo o gavetão e tendo alguma dificuldade em achar a latinha, que finalmente encontrou, entrouxada num lenço de cabeça velho. Papéis de cigarro americanos extra large, daqueles ótimos, que têm um aramezinho embutido para a pessoa poder queimar a beata até o finzinho, fumo de primeiríssima qualidade conseguido pela própria Bebel, que parecia conhecer todos os transeiros e maconheiros do planeta e tinha peito para sair de carro, como já saíra, altas horas da noite, para comprar dois baseados na mão dos transeiros das barracas de frutas do Mercado Modelo, bem nas barbas da Polícia Federal, juntinho do prédio dela. Tudo em cima, tudo perfeito, e Ana Clara, com a latinha no bolsão da saia, desceu para a sala onde assistiriam a um filme em videocassete que Ângelo Marcos tinha trazido de Miami.
Mas não chegaram a prestar muita atenção ao filme, não só porque era a terceira vez que o viam, como porque Ana Clara não ficou impaciente antes mesmo de terem terminado de fumar o baseado e, com a cabeça zonza e um sorriso maroto, disse a Bebel que tinha uma coisa muito importante, importantíssima, para falar, uma coisa que só podia ser conversada com uma uma amiga assim como ela. Bebel deslizou para a ponta da poltrona e virou-se com os olhos arregalados.
— É o seguinte, Bebel — disse Ana Clara, apertando um botão do controle remoto para desligar o aparelho. — Eu resolvi arranjar um namorado, talvez dois ou três, resolvi que de agora em diante vou namorar. Sistematicamente. Como filosofia de vida. Ana Clara em nova fase.
Bebel jogou-se para trás na poltrona e agitou as pernas no ar. O quê? Que viam seus olhos, que ouviam seus ouvidos? Quase não dava para acreditar! Verdade mesmo? Claro que era verdade, e Ana Clara contou em pormenores como havia pensado semanas e semanas e como aquela conversa com Bebel e as outras que se seguiram foram importantes, especialmente porque ela aprendera a raciocinar com objetividade, a ver as coisas de maneira racional, tal qual Bebel. E só havia uma resposta para a pergunta que ela não conseguia evitar repetir todo o tempo: a troco de que era fiel? Amor? Não, porque realmente não sentia mais amor por Ângelo Marcos, (que na verdade não fazia muita falta na casa, onde, exceto para dormir, raramente estava. A troco de segurança? Não, porque ele não se separaria nunca, ele mesmo dizia que ela fazia parte de seu patrimônio político e, além disso, tinha um medo terrível da idéia de ser obrigado a abdicar de qualquer de seus bens e muito menos do seu dinheiro, mesmo que apenas uma parte ínfima dele. Nem ela tampouco queria separar-se, era uma burrice, uma ação destituída de racionalidade, e doravante — atenção! — ela era a rainha da racionalidade, fora da racionalidade não havia salvação. A separação só ia causar problemas e uma chateação interminável, até porque ela também não tinha saco para ficar brigando por pensões, casas de praia, apartamentos, porcentagens, não sei o quê.
Então permanecia Hei para proteger alguém, pelo menos? Não, porque não tinha filhos, não tinha nada nem ninguém a perder. A troco de reciprocidade? Evidentíssimo que não, porque até já flagrara Ângelo Marcos com a mão embaixo da saia de uma tal Telminha, que trabalhava no gabinete dele, e sabia perfeitamente que ele era metido a rei das mulheres e vivia dizendo vulgaridades sobre como toda mulher merecia pelo menos uma trepada, ou que o lema dele era "se me deres, eu como" e assim por diante. E não dava para contar nos dedos as vezes em que fora visível que ele tinha estado com outra mulher antes de voltar para casa, não existia um indício clássico que ela já não houvesse surpreendido pelo menos uma vez, desde perfumes escandalosos na camisa a lábios rodeados por um contorno arroxeado, ressaltado em sua pele muito branca. Até uma cueca suja de batom na frente ela tinha pilhado, e não falara absolutamente nada. Então a resposta era óbvia: ela era fiel a troco de nada. A troco de nada, não, a troco de viver entediada, de nunca ter experimentado a mínima de suas fantasias, de estar vendo a juventude passar depressa sem que ninguém mais a cortejasse, a elogiasse, a valorizasse como mulher, como fêmea, como gostosa, que ela sempre se achou e nunca mais ouvira de ninguém, nem dele mesmo. A quem estava prejudicando? A ela própria e a ele também, de certa maneira. Assim, havia adaptado a filosofia de Bebel à sua própria situação. Com uma diferença básica: embora, da mesma forma que Bebel, não quisesse prejudicar qualquer pessoa, nem expor o marido, não lhe passava pela cabeça vir a contar a Ângelo Marcos nada daquilo. Se ele viesse a saber por outra pessoa, coisa que ela preferia que não acontecesse, mas podia acontecer, azar, ela negaria de pés juntos. Mas falar com ele, não, nunca, a situação dela era muito diferente da de Bebel.
Decerto que era diferente, e Bebel, sem poder parar quieta de tanta excitação, afirmou que se tratava de uma atitude muito sadia, uma atitude de sobrevivência mesmo — ia ser a maior terapia, com certeza! Do contrário, Ana Clara continuaria entalada com suas frustrações e ia acabar murchando e ficando uma chata doente e insuportável, esse tipo de repressão faz um mal horrível! Que decisão fantástica, que reviravolta existencial!
— E como se eu tivesse aberto uma vida nova para mim, um caminho novo, você entende? — disse Ana Clara com os olhos luminosos, e Bebel respondeu que entendia, sim, claro que entendia.
Primeiro pensaram em fazer um brinde com vinho branco. Ângelo Marcos tinha comprado, de um iatista que fundeou na ilha com toneladas de muamba, umas dez caixas de vinho alemão, desses vinhos gloriosos do Reno com o nome do comprimento de um trem, ali mesmo devia haver várias garrafas, na geladeirinha do bar. Naturalmente que Bebel topava, podiam deixar de brindar? E, além disso, o melhor barato de todos os baratos que ela já experimentara era maconha seguida de um vinhozinho superior, mas Ana Clara de repente resolveu que não, que vinho alemão que nada, ia abrir uma garrafa de champanhe, isso sim — o que providenciaram com grande algazarra, enquanto Bebel começava uma dissertação hilariante sobre homens e amantes, que terminou fazendo Ana Clara rir até despencar do sofá e praticamente rolar no chão, entornando champanhe na cabeça.
Bem mais tarde, já sozinha no salão do segundo andar, ela tentou andar até a sacada, mas se sentiu tonta, tropeçou na mobília duas vezes e preferiu sentar-se de frente para o mar, no grande diva de couro branco, embora o mar somente se ouvisse e não se visse, por trás de uma escuridão sem fim. Quis lembrar-se da conversa e dos conselhos de Bebel, mas não conseguiu e notou então que estava com o rosto contraído. Por que, se o que devia estar fazendo era rir? Relaxou os músculos do rosto, sorriu. Ana Clara em nova fase. Mas nenhum pensamento parecia ter fio, amontoando-se um sem-número deles em desordem, como num caleidoscópio que não parasse de girar. Homens, quartos, camas, beijos, enlaçamentos, sensações, lembranças de orgasmos. De olhos fechados e por um momento brevíssimo, foi possuída longamente por um homem indefinido e se sentiu numa plenitude insuportável, que a fez abrir os olhos ansiosa e respirando forte. Estou grávida, pensou, mas não riu como achara que riria. Pelo contrário, apertou as mãos com força no regaço e suspirou um pouco trêmula, enquanto via com espanto que a idéia de ficar grávida, que antes lhe chegara a sugerir até uma certa repugnância, agora tomava seu corpo todo e lhe trazia um fervor esquisito e desconhecido, em que, apesar de ter medo, queria mergulhar cada vez mais.
Levou um tempo muito grande derreada no divã, sem saber direito em que estava pensando, ou mesmo se estava pensando, até que a escuridão lá fora começou a parecer que latejava como um bicho, e ela, com um pulo repentino e sem olhar para trás, desceu a escada em direção à cozinha, acendendo todas as luzes no caminho. Tão faminta que tinha cãibras no estômago, abriu a geladeira e passou mais de meia hora comendo sem conseguir parar, até que ficou com sono, despencou na cama sem trocar de roupa, dormiu no mesmo instante e teve pesadelos a noite toda.
MINHA TAREFA É
__ Um dia, depois de ter escrito alguns livros e ter visto mais cinema, fui fazer uma tradução de um livro de Joseph Conrad chamado "The Nigger of Narcissus". Há, no prefácio, uma frase que não consegui esquecer: "My task is to make you hear. My task is to make you feel. And, above all, to make you see. That`s all. And everything". Minha tarefa é fazer você ouvir. Minha tarefa é fazer você sentir. E,acima de tudo,fazer você ver. Isto é tudo. E é muito.
Rubem Fonseca
O PROMETEU DE FERRO
Lobster Johnson é uma espécie de justiceiro das décadas de 1930 e 1940, especializado em crimes bizarros.
Enquanto a América paira sob a Segunda Guerra Mundial, Lagosta Johnson e seus aliados devem correr contra o tempo para lutar por seu caminho através de canibais, homens de gelo e maquinações de um misterioso vilão disposto a realizar uma profecia mortal.
Nos fim dos anos 30, o Lagosta é incumbido de proteger um artefato criado por um cientista tanto das mãos dos nazistas quanto de um outro vilão misterioso que também quer a engenhoca. Lobster Johnson: The Iron Prometheus é uma mini em 5 edições.
Para ler, clique na imagem. E não esqueça de agradecer ao pessoal do the centurions.
domingo, 30 de janeiro de 2011
AZINCOURT
Bernard Cornwell
Um trecho:
Prólogo
Num dia de inverno de 1413, logo antes do Natal, Nicholas Hook decidiu cometer assassinato.
Era um dia frio. Durante a noite havia geado forte, e o sol do meio-dia não conseguira derreter o branco do capim. Não existia vento, de modo que o mundo inteiro estava pálido, congelado e imóvel quando Hook viu Tom Perrill na trilha funda que ia da floresta alta às pastagens do moinho.
Nick Hook, de 19 anos, movia-se como um fantasma. Era guarda-caça, e mesmo num dia em que a pisada mais leve poderia soar como gelo se partindo, ele se movia em silêncio. Agora andava contra o vento, saindo da trilha funda onde Perrill prendera um dos cavalos de tração de lorde Slayton ao tronco de um olmo derrubado. Perrill estava arrastando a árvore para o moinho, para fazer novas pás para a roda-d’água. Estava sozinho e isso era incomum, porque Tom Perrill raramente se afastava de casa sem seu irmão ou algum outro companheiro, e Hook nunca vira Tom Perrill tão longe da aldeia sem o arco pendurado no ombro.
Nick Hook parou no limite das árvores, num local onde arbustos de azevinho o escondiam. Estava a cem passos de Perrill, que praguejava porque os sulcos no caminho haviam congelado e ficado duros, o grande tronco de olmo se agarrava na trilha irregular e o cavalo empacava. Perrill havia batido no animal a ponto de tirar sangue, mas as chicotadas não tinham ajudado, e agora o rapaz estava simplesmente parado, chicote na mão, xingando o infeliz animal.
Hook pegou um flecha na sacola pendurada a tiracolo e verificou se era a que ele queria. Era de ponta larga, com espigão longo, destinada a cortar o corpo de um cervo, uma flecha feita para rasgar artérias de modo que o animal sangrasse até a morte caso Hook errasse o coração, mas ele raramente errava. Aos 18 anos havia vencido o campeonato dos três condados, derrotando arqueiros mais velhos e famosos em metade da Inglaterra, e a cem passos jamais errava.
Encostou a flecha na madeira do arco. Estava observando Perrill porque não precisava olhar para a flecha nem para o arco. O polegar esquerdo prendia a flecha e a mão direita esticou ligeiramente a corda até que ela se encaixou no pequeno entalhe reforçado com chifre na extremidade emplumada da flecha. Levantou o arco, os olhos ainda no filho mais velho do moleiro.
Puxou a corda sem esforço aparente, ainda que a maioria dos homens que não fossem arqueiros não conseguisse puxá-la até a metade. Esticou a corda até a orelha direita.
Perrill havia se virado para olhar a pastagem do moinho, onde o rio era uma tira sinuosa de prata sob os salgueiros despidos pelo inverno. Estava usando botas, calções, um gibão e um casaco de pele de cervo, e não fazia ideia de que sua morte estava a instantes de acontecer. Hook disparou. Foi um disparo suave, a corda de cânhamo soltando-se do polegar e dos dois dedos sem ao menos um tremor.
A flecha voou reta. Hook acompanhou as penas cinza, olhando enquanto a haste de freixo ligeiramente afunilada, com ponta de aço, acelerava rumo ao coração de Perrill. Ele havia afiado a ponta em forma de cunha e sabia que ela cortaria a pele de cervo como se fosse teia de aranha.
Nick Hook odiava a família Perrill, assim como os Perrill odiavam os Hook. A rixa durava duas gerações, desde quando o avô de Tom Perrill havia matado o avô de Hook na taverna do povoado cravando um atiçador de lareira em seu olho. O velho lorde Slayton havia declarado que fora uma luta justa e se recusou a castigar o moleiro, e desde então os Hook tentavam se vingar.
Nunca haviam conseguido. O pai de Hook fora morto a chutes no jogo anual de futebol e ninguém jamais descobrira quem o havia matado, mas todo mundo sabia que deviam ter sido os Perrill. A bola fora chutada para o meio dos juncos, atrás do pomar da casa senhorial, e uma dúzia de homens havia corrido atrás, mas apenas 11 saíram. O novo lorde Slayton riu da ideia de chamar a morte de assassinato.
- Se fôssemos enforcar alguém por matar num jogo de futebol – dissera ele -, iríamos enforcar metade da Inglaterra.
O pai de Hook era pastor. Deixou esposa grávida e dois filhos, e a viúva morreu dois meses depois da morte do marido, ao dar à luz uma menina natimorta. Faleceu no dia de são Nicolau, dia do décimo terceiro aniversário de Nick Hook, e sua avó dissera que a coincidência provava que Nick era amaldiçoado. Ela tentou tirar a maldição com sua própria magia. Golpeou-o com uma flecha, cravando fundo a ponta em sua coxa, depois lhe disse para matar um cervo com a flecha e que assim a maldição iria embora. Hook caçou ilegalmente um dos animais de lorde Slayton, matando-o com a flecha suja de sangue, mas a maldição permaneceu. Os Perrill viviam e a rixa continuou. Uma bela macieira no quintal da avó de Hook havia morrido, e ela insistiu que fora a velha senhora Perrill que havia enfeitiçado a árvore.
- Os Perrill sempre foram uns desgraçados pútridos comedores de bosta – disse sua avó. Ela pôs mau-olhado em Tom Perrill e seu irmão mais novo, Robert, mas a velha senhora Perrill devia ter usado um contrafeitiço, porque nenhum dos dois adoeceu. Os dois bodes que Hook mantinha na área pública desapareceram, e o povoado achava que haviam sido os lobos, mas Hook sabia que tinham sido os Perrill. Em vingança matou a vaca deles, mas isso não era o mesmo que matá-los.
- É seu trabalho matá-los – insistia a avó de Nick, mas ele nunca tivera oportunidade. – Que o diabo faça você cuspir merda – amaldiçoou ela – e depois o leve para o inferno. – Ela o expulsou de casa quando ele estava com 16 anos. – Vá morrer de fome, desgraçado – rosnou. Nesse ponto ela estava enlouquecendo, e não havia como discutir, assim Nick Hook saiu de casa e podia ter mesmo morrido de fome, mas esse foi o ano em que tirou o primeiro lugar na competição dos seis povoados, colocando uma flecha depois da outra no alvo distante.
Lorde Slayton fez de Nick um guarda-caça, o que significava que precisava manter a mesa do senhor cheia de carne de veado.
- É melhor você matá-los legalmente do que ser enforcado como caçador ilegal – havia observado lorde Slayton.
Agora, no dia de são Winebald, logo antes do Natal, Nick Hook olhava sua flecha voar na direção de Tom Perrill.
Iria matá-lo, sabia.
A flecha voou certeira, baixando ligeiramente entre as altas cercas vivas brilhantes de geada. Tom Perrill não tinha ideia de que ela vinha. Nick Hook sorriu.
Então a flecha oscilou.
Uma pena havia se soltado, a cola e a amarra deviam ter cedido e a flecha se desviou à esquerda, cortando o flanco do cavalo e se alojando em seu ombro. O cavalo relinchou, empinou e saltou à frente, arrancando o grande tronco de olmo dos sulcos congelados no chão.
Tom Perrill se virou e olhou para a floresta elevada, depois percebeu que uma segunda flecha poderia seguir a primeira, por isso se virou de novo e correu atrás do cavalo.
Nick Hook havia fracassado de novo. Era amaldiçoado.
A COSTA DO MOSQUITO
Paul Theroux
Um trecho:
Passamos pela mansão do miúdo Polski e entramos na estrada principal. Durante os oito quilômetros que dirigiu até Northampton, o Pai não parou de falar a respeito de selvagens e de como os Estados Unidos eram horríveis - de como se transformaram em uma perigosa e supurada área de consumo de drogas, trancas nas portas, carniceiros raivosos, milionários criminosos e gente corrupta. E olhe as escolas. E olhe os políticos.
Não havia um diplomado em Harvard que conseguisse trocar um pneu furado ou fazer dez flexões. E na cidade de Nova York havia indivíduos que se alimentavam de comida para cães e que matariam por qualquer dinheiro trocado. Isso era normal? Se não era, por que todo mundo aguentava aquilo?
"Não sei", disse ele, respondendo a si mesmo. "Só estou pensando em voz alta."
Antes de sair de Hatfield, ele parara a picape - voltada para o sul - em uma elevação da estrada.
"Lá vêm os selvagens", disse. E lá vinham eles, saindo de trás de um grupo de árvores e cruzando os campos que cercavam os celeiros de Polski, em meio a um calor úmido e viscoso. Eram escuros e vestiam trapos. Muitos tinham trapos amarrados às cabeças, outros usavam chapéus de abas largas. Eram homens e meninos, alguns da minha idade, todos empunhando facas compridas.
O Pai estava apontando, e seu dedo me assustava mais que os homens. A ponta do indicador fora decepada a partir da falange medial, e o toco rombudo, com suas dobras de pele costurada e horríveis cicatrizes, indicava apenas de modo aproximado a direção correta.
"Por que se dão o trabalho de vir para cá?", disse ele. "Dinheiro? Mas como poderia ser dinheiro?"
Ele mastigava as perguntas, juntamente com o charuto. Já se passara a metade da manhã, quente demais para 10 Massachusetts, em maio. O vale tinha um aspecto crestado, naquela primavera seca, e as valas rasas fumegavam como estrume fresco. Em sulcos rasgados no solo, viam-se diminutos penachos de milho-maravilha. Não se ouvia o canto dos pássaros. Os campos de aspargos, para onde os homens se dirigiam, estavam lisos e marrons, como se alguém tivesse removido a cobertura de mato verde e nivelado a terra calva com um rolo compressor.
quarta-feira, 26 de janeiro de 2011
O EXPERIMENTAL
__ O que se chama de experimental envelhece cada vez mais facilmente, ou se converte em algo tradicional, ou se incorpora aos usos normais. Há uma flexibilidade maior. Sempre houve uma enorme capacidade de fazer isso, mas antes havia um pouco mais de resistência. Hoje não. Hoje normalmente tudo se incorpora, tudo se torna velho, antigo. O presente se converte em passado cada vez mais rápido. Inclusive no momento em que um livro é lançado, parece que já é passado.
Javier Marías
BEING HUMAN
Era uma vez uma casa assombrada na Inglaterra (nada mais natural e previsível, não é mesmo?)… também habitada por um vampiro e um lobisomem.Esse trio improvável de amigos protagoniza aventuras divertidas, que abordam assuntos sérios com leveza, humor e inteligência. E começou a 3ª temporada. Para ver todas as temporadas, clique na imagem e vá ao Filmes com legenda.
terça-feira, 25 de janeiro de 2011
EU RECEBERIA AS PIORES NOTÍCIAS DOS SEUS LINDOS LÁBIOS
Marçal Aquino
O AMOR É SEXUALMENTE TRANSMISSÍVEL
Não adianta explicar. Você não vai entender.
Às vezes, como num sonho, vejo o dia da minha morte. É uma coisa meio espírita, um flash. E, embora a mulher não apareça, sei que é por causa dela que estão me matando. E tenho tempo de saber que não me deixa infeliz o desfecho da nossa história. Terá valido a pena.
Hoje, a Lua está transitando por sua casa astrológica favorita. Câncer. Uma criança nascida neste dia terá personalidade calma e cordata. Gente boa, portanto. Sofrerá num lugar como este.
Sopra uma brisa vinda do rio e a noite está silenciosa e com um cheiro de dama-da-noite tão intenso que chega a ser enjoativo. Faz calor ainda. À tarde, vi pássaros voando em formação rumo ao norte. Não demora e teremos frio. Menos aqui, claro.
O homem que sai na varanda da pensão é calvo e barrigudo, e usa camiseta, bermuda listrada e chinelos. Ele diz um boa-noite torcendo a boca – derrame? – e senta-se na cadeira de palhinha. Abre o jornal com suas mãos micóticas e passa a grunhir a cada notícia que lê. Tosse, bufa. O mais próximo que um ser humano pode chegar de um bovino.
Um garoto da redondeza vem sentar-se nos degraus da escada, como já aconteceu em outras noites. Não gosta de conversar, mas fica ali, ouvindo a prosa alheia. As roupas dele são ordinárias, porém limpas. O garoto tem altivez no olhar, uma espécie de confiança em estar no mundo. Algo secreto na cabeça dele, que não consegue se exprimir ainda, mas que o informa: você é melhor do que essa gente ao seu redor. É só uma questão de tempo para que todos saibam disso.
Dona Jane aparece com a garrafa térmica numa bandeja. O café costuma ser infernalmente adocicado.
Vai chover, dona Jane.
Isso quem diz é o careca, sem tirar os olhos do jornal. Uma notícia se destaca na página que consigo enxergar: estão liberando o rio para mineração outra vez. A cidade à beira de um novo surto de prosperidade. É só ver como aumentou o número de putas que circulam pelo centro e pelos lados da rodoviária. Noite e dia. São as primeiras a farejar o ouro.
Ainda demora pra chover, seu Altino.
Dona Jane também fala sem olhar para o careca. Ela coloca a bandeja sobre a mesinha e me presenteia com um sorriso que mistura afeto e apreensão.
Minhas juntas estão doendo, o careca diz.
É só o reumatismo, seu Altino.
Mas à tardinha eu vi relâmpagos na serra.
Dona Jane espia a noite na lateral da varanda. Uma enorme casa de marimbondos dependura-se do forro verde-água. Está abandonada.
Não vai chover, já mudou a lua.
Dona Jane apóia as mãos nas cadeiras. Veste uma blusa de mangas compridas, apesar do calor. Para esconder o nome de um homem que tem gravado no antebraço esquerdo. Nunca mostra a ninguém. Pecados de juventude.
O segredo, dizia Chang, o china da loja, não é descobrir o que as pessoas escondem, e sim entender o que elas mostram. Mas Chang está morto. Existe algo mais íntimo para exibir ao mundo do que as entranhas? Existe algo tão obsceno?
O careca grunhe e farfalha as folhas do jornal, como se quisesse derrubar as notícias que o desagradam. Dona Jane volta para dentro e sua passagem desprende uma lufada agradável. Lavanda. O menino me observa de forma direta. Tem traços bonitos, cabelos escorridos e a pele bem escura. Chang teria gostado dele.
Pensar no china faz com que eu me lembre da mulher, nesta noite escura como breu em que Urano, o deus cordial, atravessa o grande corcel de fogo. Além de mim, era a única ali que acreditava nessas coisas.
Foi na loja de Chang. Enquanto esperava que ele embalasse os filmes que havia comprado, distraí os olhos nas fotos da vitrine. O rosto de uma mulher num porta-retrato capturou minha atenção. Era jovem ainda, e muito bonita. Tinha os olhos grandes e escuros e sorria como se estivesse vendo, atrás de quem a fotografava, algo que a deixava imensamente feliz. Só vi mulheres sorrindo daquela maneira quando olhavam para gatos ou crianças.
Que rosto maravilhoso, eu disse.
E ouvi uma voz às minhas costas:
Muito obrigada.
Eu me virei e dei de cara com ela, a mulher do porta-retrato. Os cabelos estavam mais compridos e sorria de um jeito bem diferente do sorriso da foto. Um rosto com uma luz extraordinária. Cravou em mim um par de olhos cor de lodo de bauxita. Perdi o rebolado.
Desculpe, eu disse.
Ela balançou a cabeça, sem tirar os olhos dos meus.
Que pena. Tanto tempo sem receber um elogio e, quando recebo, logo depois pedem desculpas.
Senti um espasmo elétrico me percorrer abaixo da cintura. Com o canto do olho, vi que Chang me observava.
Nesse caso, mantenho o elogio, eu disse.
Que bom, fico feliz.
E continuou feliz ao encostar-se no balcão para entregar a Chang um canhoto de revelação de filmes. Usava uma camiseta que deixava à mostra, em seus ombros, meia dúzia de sardas e as alças de um sutiã preto.
O professor Benjamim Schianberg escreveu sobre as tentações em seu livro O que vemos no mundo. Segundo ele, alguns homens sublimam seus desejos, projetando-os num plano apenas mental, e isso é suficiente para satisfazê-los. Outros, diz Schianberg, apesar de resistirem com diferentes graus de esforço, acabam por ceder às tentações. São o que ele chama de “homens de sangue quente”.
Ela abriu o envelope e espalhou as fotos sobre o balcão de vidro. Um arco-íris; o número de metal enferrujado na fachada de uma casa antiga; raízes de uma árvore que pareciam um casal num embate amoroso de muitas pernas e braços; a chaminé de uma olaria; uma bicicleta caída na chuva. Nenhuma pessoa ou animal. Apesar disso, fotos boas, feitas por alguém com olho e senso.
Ela notou meu interesse.
Gostou?
Esta aqui é muito boa.
Indiquei uma das imagens: fachos de sol entrando pelas falhas no telhado de uma casa em ruínas.
Poesia e precisão.
Falei isso, vê se pode. Ela me olhou, intrigada. Daí, riu.
Você é fotógrafo?
Já fui, eu disse. Hoje em dia só fotografo pra consumo próprio.
E o que você fotografa?
Um pouco de tudo.
Que nem eu.
Peguei a foto e a examinei de perto.
Você não fotografa gente.
Não gosto.
Porra, pensei, a foto que eu tinha nas mãos não era só boa, era formidável. Um dos fachos de sol incidia, em segundo plano, sobre uma boneca de pano jogada num monte de entulho. Parecia um spot iluminando uma bailarina caída num palco.
A boneca já estava lá?
Claro.
Chang empurrou o pacote de filmes em minha direção. E ela já estava guardando as fotos no envelope, quando falei:
Eu adoraria ter uma cópia.
Ela congelou o gesto de colocar as fotos no envelope, virou o rosto e me estudou, como se avaliasse se eu tinha mérito suficiente para receber o que pedia. Sustentar aquele olhar escuro foi uma experiência difícil. Fez com que eu me sentisse desamparado. Fiquei com a impressão de estar sendo visto de verdade pela primeira vez na vida. E também de estar vendo algo que o mundo não tinha me mostrado até então.
De acordo com o professor Schianberg (op. cit.), não é possível determinar o momento exato em que uma pessoa se apaixona. Se fosse, ele afirma, bastaria um termômetro para comprovar sua teoria de que, nesse instante, a temperatura corporal se eleva vários graus. Uma febre, nossa única seqüela divina. Schianberg diz mais: ao se apaixonar, um “homem de sangue quente” experimenta o desamparo de sentir-se vulnerável. Ele não caçou; foi caçado.
A idéia surgiu na hora em que ela sorriu, como se tivesse me aprovado no exame a que me submetera, e separou a foto para me presentear. Nem parei para refletir, apenas coloquei a idéia em prática. Sangue quente.
Não é essa a foto que eu quero, eu disse.
E apontei o porta-retrato na vitrine. Aquilo a desarmou. Ouvi sua respiração se alterar. Chang abriu a boca, mostrando seus dentinhos de rato, e fez o que qualquer bom comerciante faria: puxou o vidro da vitrine e entregou o produto para o cliente examinar de perto. O rosto era mesmo excepcional: anguloso, estranho. Os olhos tinham antigüidade e abismos.
Queremos o que não podemos ter, diz o professor Schianberg, o mais obscuro dos filósofos do amor. É normal, saudável. O que diferencia uma pessoa de outra, ele acrescenta, é oquanto cada um quer o que não pode ter. Nossa ração de poeira das estrelas.
Ela baixou a cabeça, tocou o canto dos lábios com a foto. E pensou no assunto por um segundo e meio. Então compreendeu o jogo. E o aceitou.
Vamos fazer um negócio mais justo, disse. Eu troco esse porta-retrato por uma das suas fotos, o que você me diz?
Chang riu. Seu ouvido antecipara o ruído da gaveta da registradora. Eu avancei uma casa:
Já aviso que você vai sair perdendo, eu nunca fotografei nada tão bonito.
Aquele rosto extraordinário corou um pouco. Só um pouco. Eu pulei várias casas e estendi o cartão para ela.
Passe qualquer dia no meu estúdio.
Ela leu e fez a pergunta que ouço há mais de quarenta anos.
Cauby? Igual ao cantor?
Na adolescência, isso me incomodava. Eu não gostava do cantor. Com o tempo, passou. Relaxei. Não ligava mais. Cheguei a ver um show do meu xará num bar em São Paulo. E se alguém me fazia essa pergunta, eu me limitava a responder:
É.
Ela me ofereceu a mão.
Prazer, Lavínia.
A mão era grande, maciça; o aperto, delicado. Os imensos olhos escuros me espreitaram – sorriam por ela. Eu pagaria para fotografar aquele rosto. Uma vez, no interior da Espanha, uma mulher na rua cobrou para deixar que eu a fotografasse. Paguei. Valia.
Ela entregou o dinheiro a Chang e não disse nada enquanto esperava pelo troco. Aproveitei que ela estava de sandálias para observar seus pés magros, ossudos, quase masculinos. Embora o formato não me agradasse, achei que ficavam bem nela. Um conjunto harmônico. Ela percebeu que eu olhava, mas isso não a incomodou. Gente à vontade no mundo.
Chang colocou o troco no balcão, dispondo nota sobre nota. Ela guardou o dinheiro na bolsa e então me encarou. Ouvi uma sereia ao longe.
Passo lá uma hora dessas. Telefono antes.
Quando você quiser, eu disse.
Ela se despediu e saiu para o sol da tarde. Um choque de luminosidades. Eu me encostei na porta para vê-la se afastando. Chang apareceu do meu lado.
Sabe quem é?
Não, eu disse.
Quer saber?
Não, repeti, sem desgrudar os olhos dela.
Chang juntou as mãos, estalou os dedos.
Você que sabe, ele disse.
Prefiro descobrir aos poucos, pensei. Saborear o mistério. Na quadra seguinte, ela atravessou a rua e sumiu no meio da gente miúda que andava pelo centro. Colorida em meio ao cinzento que predominava ao redor. Olhei para o rosto no porta-retrato: tinha uma luz particular, só dela, e um ar de quem poderia ser o que quisesse na vida.
Dona Jane reaparece com uma bomba de pulverizar e borrifa várias vezes em direção à casa de marimbondos. Ela faz isso quase todas as noites. O cheiro do inseticida viaja no ar até arder em minhas narinas. O careca fecha o jornal e chia.
Pra que isso, dona Jane? Não tem mais nenhuma abelha aí, elas foram embora.
Ela circula a massa de barro endurecido, inclina a cabeça para olhar, atenta ao mínimo movimento.
Elas voltam, seu Altino.
Voltam nada. Esse troço aí faz mal pra saúde.
O careca se vira para mim atrás de apoio para sua queixa, mas eu baixo o olho para o livro. Estou relendo o trecho em que o professor Schianberg se ocupa da separação dos amantes. As transitórias e as irremediáveis. Ele menciona um maluco norueguês que afundou um navio como oferenda pela volta da amada. O problema é que o navio não era dele, e deu cadeia. Eu afundaria todos os navios nesta noite, Lavínia. Incendiaria o porto. Só para ver o brilho das chamas refletido nos seus olhos escuros.
A senhora vai acabar envenenando a gente, o careca diz.
Dona Jane arranca uma folha amarelada da samambaia, que se derrama majestosa de um xaxim preso no teto da varanda.
O senhor está ficando implicante, seu Altino. Olha a velhice chegando.
O careca sacode a cabeça, desanimado. E reabre o jornal. Pequenas veias azuladas se ramificam por suas pernas pálidas. A atenção de dona Jane se detém no menino sentado no degrau. Ele sabe que é examinado, mas evita olhar para ela. Como se a temesse.
Uma noite, logo que voltei para cá, eu estava na cozinha limpando uma de minhas câmeras, a única que sobrou. Uma Pentax. Minha favorita. Era tarde já. Teve uma hora em que levantei a cabeça e dei com dona Jane me observando.
Acordei com um barulho, ela disse. Desci pra ver se está tudo bem.
Está.
Dona Jane continuou me olhando sem dizer nada, com cara de sonada. Como se estivesse ali só pelo prazer de ouvir a torneira pingando na pia de metal. O cabelo revirado fazia com que parecesse mais velha. Vestia uma camisola azul que chegava até os joelhos. Transparente. Dava para ver a circunferência escura dos mamilos. Preferi olhar o nome gravado em seu antebraço esquerdo. Antonio. Um aventureiro que andou pela cidade há alguns anos, com quem ela fugiu. Um vigarista. Parece que foi abandonada sem dinheiro no Rio. Dona Jane passou às minhas costas e apertou a torneira.
Não sei por que nunca fecham direito, ela disse.
Depois, parou ao lado da mesa e, ao notar que eu estava de olho na tatuagem, cruzou os braços. Não teve o mesmo pudor com os seios, que continuaram à mostra. Volumosos e semiflácidos e, ainda assim, atraentes.
Uma coisa, seu Cauby: quanto o senhor cobraria para fazer meu retrato?
Soprei um cisco da lente da Pentax. Eu tinha uma dívida com dona Jane.
Nada.
E o senhor faria?
Ajustei a lente na máquina e girei. Dona Jane descruzou os braços, mexeu no cabelo, mostrando os pêlos que despontavam nas axilas. Meu nariz capturou a fragrância de lavanda de seu corpo.
Faria.
Mas então o senhor tem que pôr um preço nisso…
Encarei-a. Ela sustentou meu olhar.
Faço de graça, eu disse, se a senhora me deixar fotografar a tatuagem.
Dona Jane cruzou os braços outra vez, apertou-os contra o corpo. Como se tivesse sentido uma dor.
É uma lembrança ruim.
Na varanda, o menino, que ainda é alvo da atenção de dona Jane, coça a orelha, incomodado. Rói a unha do polegar – ou melhor: finge roer. É tímido. Ela me diz:
Vou ver a novela. O senhor precisa de alguma coisa?
Eu digo que está tudo bem, que não preciso de nada. Estou mentindo. Preciso de muita coisa, em especial numa noite como esta, em que Urano desliza mansamente pelo céu escuro. Poderia fazer uma lista. Nenhuma delas, contudo, dona Jane pode me dar. É uma pena.
Tome um copo de leite antes de dormir, seu Altino, ela diz. É bom contra o veneno.
Absorto na leitura de uma notícia, o careca não reage à frase. Dona Jane insiste:
Ouviu, seu Altino?
Ouvi, o careca resmunga com irritação, sem interromper a leitura.
O homem surge de repente na escada, vindo do beco. Não o conheço, nunca o vi antes por aqui. O menino encolhe as pernas, liberando o espaço nos degraus para que ele passe.
O homem é gordo, usa paletó e gravata e carrega a tiracolo uma bolsa com o logotipo de uma agência de viagens. Está ofegante e sua muito. Sou o primeiro que ele cumprimenta com um movimento de cabeça. Ele afasta as abas do paletó e, num flash que me atordoa, prevejo o que vai acontecer.
Ferido na cabeça, o careca tombará para a frente e o impacto de seu corpo destruirá o tampo de vidro da mesinha. Dona Jane ficará estendida de bruços, com metade do corpo no interior da casa. O menino talvez escape. Não, o homem não permitirá – esse tipo de gente nunca deixa testemunhas. Ele perseguirá o menino pelo beco, se for preciso. Tudo dependerá da ordem que escolher antes de atirar. O certo é que serei o primeiro.
O flash cessa. A eletricidade em minha coluna diminui, pouco a pouco. O homem afastou as abas do paletó apenas para pegar um pedaço de papel no bolso da camisa, que entrega a dona Jane. Ele pega também um lenço para remover o suor da testa e do pescoço.
Estou derretendo, diz.
Sua voz é grossa, empostada. Deve ser um dos advogados da mineradora. Eles sabem que a guerra com os garimpeiros pode recomeçar a qualquer momento e já chamam seus soldados para a trincheira.
Hoje vem chuva, o careca fala.
Tomara.
Gosto da voz do homem: soa firme, com um halo de autoridade, mesmo nos comentários triviais. Um advogado, sem dúvida. Quem mais usaria paletó e gravata num lugar quente como aquele, onde até o padre andava para cima e para baixo de camiseta e bermuda?
O homem se interessa por mim. Tento ler em seu rosto que tipo de impressão causo nele. Não consigo, o rosto é impenetrável. Um profissional. Dona Jane termina de ler o bilhete e examina o homem da cabeça aos sapatos empoeirados. Ele diz algo que ela já sabe:
O hotel tá lotado.
Natural. O exército de sanguessugas chegou. Gente de todo canto do Brasil. Sabem que não demora e as tetas da cidade estarão inchadas outra vez. De certa maneira, já fui um deles.
Tenho uma vaga, dona Jane diz, mas o senhor vai ter que dividir o quarto com outra pessoa.
O homem não gosta de ouvir essa informação, mas finge que não se importa. Sorri. Talvez esteja acostumado com hotéis finos. O careca se intromete:
É isso ou um quarto na zona.
Só o menino ri. O homem repreende o careca com um olhar severo. Depois se volta para dona Jane, com cara de “um cavalheiro não diz essas coisas perto de uma mulher” – mesmo um cavalheiro com sapatos empoeirados. Como se pedisse desculpas pelo careca, que nem se incomoda, firme no jornal.
Tá ótimo, o homem diz. Eu só quero um banho e uma cama.
Dona Jane o conduz para o interior da casa. Ele me examina uma última vez antes de entrar. Um olhar neutro. Não tem como saber que estou um pouco frustrado. A luz na varanda pisca uma, duas vezes. Alguém ligou o chuveiro. O careca resmunga:
Êêêê…
O trecho está grifado no livro. Nele, o professor Schianberg dá voz a Nietzsche – “Há sempre um pouco de loucura no amor, mas há sempre um pouco de razão na loucura” -, para depois contestá-lo, lembrando que na loucura dos amores contrariados não há espaço nenhum para a razão, apenas para mais loucura.
O menino volta a esticar as pernas na escada. Ouvimos o apito de um barco no rio, um som melancólico. Como um pio de mau agouro. Mas não tenho por que sentir medo agora. Sou um homem sem medo, o que é bem raro aqui neste lugar.