terça-feira, 26 de outubro de 2010

LUKA E O FOGO DA VIDA

 

Salman Rushdie

MV102

(UM TRECHO)

1. A coisa horrível que aconteceu na linda noite estrelada


Era uma vez, na cidade de Kahani, na terra de Alefbay, um menino chamado Luka que tinha dois bichos de estimação, um urso chamado Cão e um cão chamado Urso, o que quer dizer que cada vez que ele chamava “Cão!” o urso se empinava bem amigo nas pernas traseiras, e quando ele gritava “Urso!” o cão ia ao encontro dele, balançando o rabo. Cão, o urso marrom, podia ser meio bruto e urso às vezes, mas era um bom dançarino, capaz de ficar em pé nas patas traseiras e dançar a valsa, a polca, a rumba, o wah?watusi e o tuíste, além de danças mais chegadas à sua terra, o ritmo da bhangra, os giros da ghumar (para a qual ele usava uma saia rodada cheia de espelhos), as danças guerreiras conhecidas como spaw e thang?ta, e a dança do pavão do sul. Urso, o cão, era um labrador cor de chocolate e um bom cachorro, amigo, embora às vezes um pouco nervoso e agitado; ele não sabia dançar nada, tinha, como diz o ditado, quatro pés esquerdos, mas para compensar esse desajeitamento tinha o dom da afinação perfeita, então era capaz de cantar mais alto que uma tempestade, de uivar as melodias das músicas mais populares do momento, e nunca desafinava. Urso, o cão, e Cão, o urso, depressa se transformaram em muito mais que bichos de estimação para Luka. Viraram seus aliados mais próximos e mais leais protetores, tão ferozes em sua defesa que ninguém nem sonhava em mexer com Luka quando eles estavam por perto, nem o seu horrendo colega de classe Merdarato, cujo comportamento geralmente era descontrolado.


Foi da seguinte maneira que Luka veio a ter companheiros tão especiais. Um belo dia, quando tinha doze anos, o circo veio à cidade --e não um circo qualquer, mas o próprio grif, ou Grandes Ringues de Fogo; o circo mais famoso de toda Alefbay, “apresentando a Famosa e Incrível Ilusão do Fogo”. De modo que Luka logo ficou amargamente decepcionado quando seu pai, o contador de histórias Rashid Khalifa, lhe disse que não iriam ao espetáculo. “Maus?tratos de animais”, Rashid explicou. “O grif pode ter tido os seus dias de glória, mas hoje em dia caiu em desgraça.” Rashid contou a Luka que a Leoa tinha dentes cariados, que a Tigresa era cega, que os Elefantes morriam de fome e que o resto da trupe do circo era simplesmente miserável. O Mestre de Cerimônias dos Grandes Ringues de Fogo era o terrível e enorme Capitão Aag, conhecido como o Grão?Mestre Flama. Os animais tinham tanto medo do estalo do seu chicote que a Leoa com dor de dente e a Tigresa cega continuavam a saltar pelos aros e a se fingir de mortas e os Elefantes magrelos ainda faziam Pirâmides Paquidermes só por medo da raiva dele, porque Aag era um homem de raiva fácil e riso difícil. E mesmo quando punha sua cabeça de fumante de charuto na boca aberta da Leoa, ela morria de medo de morder porque ele podia resolver matá?la por dentro da sua barriga.

Rashid estava levando Luka para casa depois da escola, usando como sempre uma de suas vistosas camisas coloridas (essa era vermelhona) e seu querido e surrado chapéu?panamá, ouvindo a história que Luka tinha para contar sobre aquele dia. Luka havia esquecido o nome da ponta da América do Sul e escrevera “Havaí” na prova de geografia. Mas lembrara o nome do primeiro presidente do seu país e havia escrito o seu nome direitinho na prova de história. Na hora dos jogos, Merdarato tinha lhe dado uma porrada na cabeça com o taco de hóquei. Mas Luka havia marcado dois gols na partida e derrotado o time do seu inimigo. Tinha também, finalmente, pegado o jeito de estalar os dedos direito, e agora conseguia um barulho bem satisfatório. De forma que havia ganhos e perdas. Um dia nada mau, no fim das contas; mas estava para se transformar num dia muito importante mesmo, porque foi o dia em que viram o desfile do circo a caminho de erguer sua Grande Lona à margem do poderoso Silsila. O Silsila era o rio largo, lerdo, feio, com água cor de lama que atravessava a cidade, não longe da casa deles. A visão das cacatuas cabisbaixas e dos camelos mal?humorados passando pela rua tocou o jovem coração generoso de Luka. Mas o mais triste de tudo, ele achou, era a jaula com o cachorro tristonho e o urso melancólico que olhavam aflitos para todo lado. Encerrando a cavalgada, vinha o Capitão Aag com seus duros olhos pretos de pirata e sua arrepiada barba de bárbaro. De repente, Luka ficou com muita raiva (e ele era um menino de riso fácil e raiva difícil). Quando o Grão?Mestre Flama estava bem na frente dele, Luka gritou a plenos pulmões: 'Que as suas feras parem de obedecer às suas ordens e que os seus ringues de fogo engulam sua tenda idiota'.

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