Lourenço Mutarelli
— Dia estranho, não é mesmo?
— Como?
— Dia estranho.
— Todo dia é estranho.
— Não. Hoje... essa névoa.., as ruas desertas...
— Pra mim, todo dia é estranho. Eles nunca me convencem.
— Quem não te convence?
— Os dias... são falsos... estranhos... isso não pode ser a realidade... não é possível que seja... isso é... sei lá que porra é isso tudo.
— Talvez...
— Sabe? Eu descobri como funciona esse esquema.
— Ah, é?
— Você já viu aquele planetinha daquele livro do Pequeno Príncipe?
— Sei, acho que me lembro.
O outro faz um gesto com as mãos formando uma esfera no ar.
— É um planetinha, pequeno... Tem uma flor e acho que uma casinha... É assim.
Diz isso projetando a pequena esfera na direção de Júnior.
— Sei, sei...
— É isso, porra! É isso...
— Entendo.
— Entende, nada. Entende?!
O outro faz um gesto de desprezo que desmancha a esfera.
— Eles botaram a gente aqui.
— Claro...
— Deus botou a gente nesse planetinha do caralho. Do caralho do Pequeno Príncipe. Aí ele falou: Meu amigo, tudo isso é seu. Tem ali uma plantinha de merda que dá um fruto gostoso. Ali tem uma vaquinha de bosta que dá leite. E tem trigo pra fazer pão. Até aí tudo bem, não é?
— É tudo o que precisamos...
— É. Mas aí ele mostra um buraco na terra. Um buraco feito uma cova.
— Certo...
— Então ele diz: Tudo isso é seu. E ainda vou te mandar uma mulher e umas crianças... Isso eu acho que é só pra encher o nosso saco e distrair a rente dessa merda toda. Assim não sacamos o esquema, tá ligado?
— E qual é o esquema?
— Posso continuar?
— Claro.
— Então faz favor de não ficar me interrompendo. Bom Aí Deus explica o esquema. Ele diz: Meu filho, tudo isso é seu. A única coisa que você precisa fazer é tapar aquele buraco. A tal cova que eu te falei.
— Sei.
— Pois então. Cada vez que esse homenzinho tapa a porra do buraco, acaba fazendo outro do mesmo tamanho. Percebe?
— Entendo.
— Então. É isso. É isso sem fim. Tapa um buraco, faz outro igual. Tapa um, faz outro. Até o dia em que o infeliz morre. Só assim você pode tapar o buraco sem fazer outro igual. O buraco é sob medida.
— Legal.
— Porra! Legal, o caralho!
— A história, quis dizer.
— Ou seja, é pau no teu cu. Percebe? É isso. Pra Deus nós somos apenas os que podem tapar o buraco que ele não conseguiu tapar. Entende? É como na obra. Se falta areia, cê não faz parede. Não adianta tijolo, nem cimento. Eu acho que Deus errou nos cálculos. Aí. como já estava de saco cheio, inventou a gente. Tipo umas formigas. Uns formigões. Sacou?
Vi no Boteco Sujo.
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