terça-feira, 31 de agosto de 2010

A EMOÇÃO MAIS ANTIGA

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A emoção mais forte e mais antiga do homem é o medo, e a espécie mais forte e mais antiga de medo é o medo do desconhecido. Poucos psicólogos contestarão esses fatos e a sua verdade admitida deve firmar para sempre a autenticidade e dignidade das narrações fantásticas de horror como forma literária.

H.P. Lovecraft

DALEKS STEAMPUNK

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MENTIRAS...

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Os Passarinhos. Estevão Ribeiro.

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NINJAS DO DENNILSON RAMALHO

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Um curta baseado no conto 'Um bom policial'. Clique na imagem e leia.

O CAVALHEIRISMO

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Bwahahahahahaha.

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Roberto Bolaño

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De que Ivánov tinha medo?, Ansky se perguntava em seus cadernos. Não do perigo físico, já que como ex-bolchevique muitas vezes esteve perto da detenção, da prisão e da deportação, e embora não se pudesse dizer que fosse um tipo valente, também não se podia afirmar, sem faltar com a verdade, que fosse uma pessoa covarde e sem peito. O medo de Ivánov era de índole literária. Isto é, seu medo era o medo que sente a maioria daqueles cidadãos que um belo (ou horrendo) dia decidem transformar o exercício das letras e, sobretudo, o exercício da ficção em parte integrante das suas vidas. Medo de serem ruins. Também, medo de não serem reconhecidos. Mas, sobretudo, medo de serem ruins. Medo de que seus esforços e seus labores caiam no esquecimento. Medo da pisada que não deixa marca. Medo dos elementos do acaso e da natureza que apagam as marcas pouco profundas. Medo de jantarem sozinhos e de que ninguém repare na sua presença. Medo de não serem apreciados. Medo do fracasso e do ridículo. Mas sobretudo medo de serem ruins. Medo de habitar, por todo o sempre, o inferno dos escritores ruins. Medos irracionais, pensava Ansky, sobretudo se os medrosos contrabalançavam seus medos com aparências. O que vinha a ser a mesma coisa que dizer que o paraíso dos bons escritores, segundo os ruins, era habitado por aparências. E que o bom (ou a excelência) de uma obra girava em torno de uma aparência. Uma aparência que variava, claro, de acordo com a época e os países, mas que sempre se mantinha como tal, aparência, coisa que parece e não é, superfície e não fundo, pura pose, e a pose era inclusive confundida com a vontade, cabelos e olhos e lábios de Tolstói e verstas percorridas a cavalo por Tolstói e mulheres defloradas por Tolstói num tapete queimado pelo fogo da aparência.

CORINGA E LEX LUTHOR

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Uma homenagem a Calvin e Harold.

ROTEIRO

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Glauco.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

VINGANÇA

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__ Meu pai foi assassinado por ninjas. Preciso de dinheiro para aulas de karatê.

sábado, 28 de agosto de 2010

PATÓPOLIS

Marcelo Coelho

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NUNCA VIMOS UM PATO NA CRUZ

Há uma lacuna básica na História patopolense, um buraco naquele doughnut, uma interrupção fundamental em sua "frisa do tempo" (...) Essa falha histórica em Patópolis é o Cristianismo. Não podemos imaginar, nem nunca vimos, um pato na cruz. Pode ser que haja um deus daquela cidade; terá barbas brancas, penas brancas, um traseiro branco que se afofa numa nuvem branca, a preferida; mas não existe filho seu, como aliás não há filhos, só sobrinhos, em Patópolis. Um pato crucificado é impossível. Só vimos, até agora, Donald no tédio. Ora, esta expressão nos evoca, digamo-lo com um pigarro que homenageia o "efeito historieta" de algumas páginas atrás (tabagismo e bigodetos, gazetas, falsetas, erres puxados na garanta, rascâncias de pentelho irritando a epiglote de um velho professor de peito cavo, consumido e amarelo), esta expressão nos evoca, repito, a frase que Sérgio Milliet incorpou aos Pensamentos de Pascal na edição dos "Pensadores". Na abertura de um capítulo vertiginoso, doentio e lacônico de Pascal --nome aliás de pato enfermiço--, Sérgio Milliet escreveu: "Jesus no tédio". Jésus dans l'ennui, dizia o original. Mas --cof-- "ennui", no século 17, queria dizer apenas "tortura". Para Pascal, o escândalo, cheio de graça, era ver Jesus torturado. Para nós, as coisas não são tão simples; não se esgotam nesse parco e barato paradoxo. O tédio é o tormento que resta a Donald: não foi Filho do Homem. Ei-lo de volta às moscas

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

ELEMENTAR

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Sherlock: Crying won’t save anyone, John.

Sherlock Holmes. BBC.

Vi no jaune.tumblr.com

GLENN ESTERLY SOBRE CHARLES BUKOWSKI

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O rosto, que não teve trégua desde o começo, foi terrivelmente abusado ao longo dos anos. Na adolescência, uma doença sanguínea o deixou meses no hospital, com furúnculos do tamanho de pequenas maçãs no rosto e nas costas (“Era emocional: o ódio pelo meu pai saindo através da pele”), deixando uma coleção de cicatrizes impressas para toda a vida. Mais tarde, putas impiedosas deixaram cicatrizes, arrancando pedaços de carne com as unhas enquanto ele estava bêbado demais para reagir. No meio desses mapas faciais de crises passadas se encontra um nariz redondo, inchado e grosseiro. Ele também é vermelho, em um protesto inútil contra as exorbitantes quantidades de álcool consumidas pelo velho. Acima do nariz, dois pequenos olhos azul-claros, localizados no fundo do crânio imenso, estudam cuidadosamente o mundo. As mãos são um elemento inesperado no corpo de Bukowski: dois membros muito delicados na extremidade de braços musculosos. São mãos de um artista plástico ou de um músico. Belas mãos, sem dúvida (“Digo às mulheres que o rosto é a minha experiência de vida, e que as mãos são a minha alma — vale tudo para ver uma mulher tirando a calcinha.”)

Revista Rolling Stone.

Vi no Boteco Sujo.

A ARTE DE PRODUZIR EFEITO SEM CAUSA

Lourenço Mutarelli

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— Dia estranho, não é mesmo?
— Como?
— Dia estranho.
— Todo dia é estranho.
— Não. Hoje... essa névoa.., as ruas desertas...
— Pra mim, todo dia é estranho. Eles nunca me convencem.
— Quem não te convence?
— Os dias... são falsos... estranhos... isso não pode ser a realidade... não é possível que seja... isso é... sei lá que porra é isso tudo.
— Talvez...
— Sabe? Eu descobri como funciona esse esquema.
— Ah, é?
— Você já viu aquele planetinha daquele livro do Pequeno Príncipe?
— Sei, acho que me lembro.
O outro faz um gesto com as mãos formando uma esfera no ar.
— É um planetinha, pequeno... Tem uma flor e acho que uma casinha... É assim.
Diz isso projetando a pequena esfera na direção de Júnior.
— Sei, sei...
— É isso, porra! É isso...
— Entendo.
— Entende, nada. Entende?!
O outro faz um gesto de desprezo que desmancha a esfera.
— Eles botaram a gente aqui.
— Claro...
— Deus botou a gente nesse planetinha do caralho. Do caralho do Pequeno Príncipe. Aí ele falou: Meu amigo, tudo isso é seu. Tem ali uma plantinha de merda que dá um fruto gostoso. Ali tem uma vaquinha de bosta que dá leite. E tem trigo pra fazer pão. Até aí tudo bem, não é?
— É tudo o que precisamos...
— É. Mas aí ele mostra um buraco na terra. Um buraco feito uma cova.
— Certo...
— Então ele diz: Tudo isso é seu. E ainda vou te mandar uma mulher e umas crianças... Isso eu acho que é só pra encher o nosso saco e distrair a rente dessa merda toda. Assim não sacamos o esquema, tá ligado?
— E qual é o esquema?
— Posso continuar?
— Claro.
— Então faz favor de não ficar me interrompendo. Bom Aí Deus explica o esquema. Ele diz: Meu filho, tudo isso é seu. A única coisa que você precisa fazer é tapar aquele buraco. A tal cova que eu te falei.
— Sei.
— Pois então. Cada vez que esse homenzinho tapa a porra do buraco, acaba fazendo outro do mesmo tamanho. Percebe?
— Entendo.
— Então. É isso. É isso sem fim. Tapa um buraco, faz outro igual. Tapa um, faz outro. Até o dia em que o infeliz morre. Só assim você pode tapar o buraco sem fazer outro igual. O buraco é sob medida.
— Legal.
— Porra! Legal, o caralho!
— A história, quis dizer.
— Ou seja, é pau no teu cu. Percebe? É isso. Pra Deus nós somos apenas os que podem tapar o buraco que ele não conseguiu tapar. Entende? É como na obra. Se falta areia, cê não faz parede. Não adianta tijolo, nem cimento. Eu acho que Deus errou nos cálculos. Aí. como já estava de saco cheio, inventou a gente. Tipo umas formigas. Uns formigões. Sacou?

Vi no Boteco Sujo.

A ENFERMARIA

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The Ward. É John Carpenter de volta. Eba.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

POR QUE NÃO DANÇAM?

Raymond Carver

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Na cozinha, ele serviu-se de outra bebida e olhou para a mobília de quarto que estava no jardim da frente. O colchão estava despido e os lençóis às riscas cor-de-rosa dobrados junto de duas almofadas em cima da cómoda. Tirando isto, as coisas estavam dispostas quase da mesma maneira como tinham estado no quarto — mesa-de-cabeceira e candeeiro de leitura do seu lado da cama, mesa-de-cabeceira e candeeiro de leitura no lado da cama dela. O seu lado, o lado dela. Pensou nisto enquanto bebericava o whisky. A cómoda encontrava-se a curta distância dos pés da cama. Passara os conteúdos das gavetas para dentro de caixotes nessa manhã, e os caixotes estavam na sala de estar. Havia um aquecedor portátil junto da cómoda, e uma cadeira em verga com uma almofada decorativa aos pés da cama. Os móveis da cozinha em alumínio polido ocupavam uma parte da entrada para a garagem. Uma toalha amarela de musselina, demasiado grande, que lhes tinha sido oferecida, cobria a mesa e pendia dos lados. Um feto dentro de um vaso estava em cima da mesa, junto de uma caixa com talheres e um gira-discos, também ofertas. Um grande televisor, modelo de cómoda, estava pousado sobre uma mesa de café, e a alguns passos desta encontravam-se um sofá e uma cadeira e um candeeiro de pé. Tinha ligado uma extensão à tomada e havia electricidade, as coisas funcionavam. A secretária estava encostada à porta da garagem. Havia alguns utensílios em cima da secretária, junto com um relógio de parede e duas gravuras emolduradas. Havia ainda na entrada para a garagem um caixote com copos, chávenas e pratos, cada um dos objectos embrulhado em papel de jornal. Naquela manhã ele esvaziara os armários e, com excepção dos três caixotes na sala de estar, estava tudo fora da casa. Uma vez por outra um carro abrandava e as pessoas olhavam. Mas ninguém parava. Ocorreu-lhe que também ele não pararia.

— Deve ser uma venda de garagem — disse a rapariga ao rapaz.

Esta rapariga e este rapaz andavam a mobilar um pequeno apartamento.

— Vamos ver quanto é que eles querem pela cama — disse a rapariga.

— Gostava de saber quanto é que pedem pela televisão — disse o rapaz.

O rapaz meteu pelo acesso à garagem e estacionou em frente à mesa da cozinha.

Saíram do carro e começaram a examinar as coisas. A rapariga mexeu na toalha de musselina e o rapaz ligou a trituradora e rodou o botão para a posição moer. Ela pegou no aquecedor de comida. Ele ligou o televisor e começou a ajustar a imagem. Sentou-se no sofá para ver televisão. Acendeu um cigarro, olhou em redor, e atirou o fósforo para a relva. A rapariga sentou-se na cama. Tirou um sapato com a ajuda do outro e deitou-se. Conseguia ver a estrela polar.

— Anda cá, Jack. Experimenta esta cama. Traz uma dessas almofadas — disse ela.

— Como é? — perguntou ele.

— Anda experimentar — disse ela.

Ele olhou em redor. A casa encontrava-se na escuridão.

— É um bocado estranho — disse ele. — É melhor vermos se está alguém em casa.

Ela agitou-se em cima da cama.

— Experimenta primeiro — disse ela.

Ele deitou-se na cama e colocou a almofada debaixo da cabeça.

—O que é que achas? — perguntou ela.

— Parece-me firme — disse ele.

Ela voltou-se de lado e enlaçou-lhe o pescoço com o braço.

— Beija-me — disse ela.

— Vamos levantar-nos — disse ele.

— Beija-me. Beija-me, querido — disse ela.

Ela fechou os olhos. E continuou a abraçá-lo. Ele teve de lhe abrir os dedos para se soltar.

Ele disse:

— Vou ver se está alguém em casa — mas apenas se sentou.

O televisor continuava ligado. As luzes acenderam-se nas casas por toda a rua. Ele sentou-se na beira da cama.

— Não achas que seria engraçado se nós... — disse a rapariga, e sorriu, mas não terminou a frase.

Ele riu-se. Ligou o candeeiro de leitura.

Ela afastou um mosquito.

O rapaz levantou-se e meteu a camisa para dentro das calças.

— Vou ver se está alguém em casa — disse ele. — Parece que não está ninguém. Mas, se estiver, vou ver qual é o preço destas coisas.

— Seja o que for que pedirem, oferece menos dez dólares.

— disse ela. — Eles devem estar desesperados, ou coisa assim.

—A televisão é bem boa — disse o rapaz.

— Pergunta-lhes quanto é— disse a rapariga.

Max caminhou pelo passeio com um saco de compras do mercado. Trazia sanduíches, cerveja e whisky. Tinha estado a beber a tarde toda e chegara agora a um ponto em que a bebida parecia deixá-lo mais sóbrio. Mas havia lacunas. Tinha parado no bar junto do mercado, tinha escutado uma canção na jukebox, e de alguma maneira havia escurecido antes que se recordasse das coisas no jardim.

Viu o carro na entrada para a garagem e a rapariga deitada na cama. O televisor estava ligado. Depois viu o rapaz no alpendre. Fez o caminho pela relva.

— Olá — disse Max à rapariga. — Vejo que encontraste a cama. Ainda bem.

— Olá — disse a rapariga, e levantou-se. — Estava só a experimentá-la. — Deu umas palmadas no colchão. — É uma cama bem boa.

—É uma boa cama — disse Max. — O que é que eu digo agora?

Ele sabia que devia dizer alguma coisa em seguida. Pousou o saco de compras e tirou de lá a cerveja e o whisky.

— Julgávamos que não estava ninguém aqui — disse o rapaz.

— Estamos interessados na cama e, quem sabe, na televisão. Talvez também na secretária. Quanto é que quer pela cama?

— Estava a pensar em cinquenta dólares pela cama — disse Max.

— Aceita quarenta? — perguntou a rapariga.

— Está bem, aceito quarenta — disse Max.

Tirou um copo do caixote, desembrulhou o copo do papel de jornal e rodou a tampa da garrafa de whisky quebrando- lhe o selo.

—E quanto à televisão? — perguntou o rapaz.

— Vinte e cinto.

— Aceita vinte? — perguntou a rapariga.

— Vinte, está bem. Posso aceitar vinte — disse Max. A rapariga olhou para o rapaz.

— Miúdos, querem uma bebida?— disse Max. — Os copos estão no caixote. Vou sentar-me. Vou sentar-me no sofá.

Sentou-se no sofá, recostou-se, e ficou a olhar para eles.

O rapaz encontrou dois copos e serviu-os de whisky.

— Quanto é que queres disto? — perguntou à rapariga.

Tinham apenas vinte anos, o rapaz e a rapariga, e faziam anos com a diferença mais ou menos de um mês.

— Já chega — disse a rapariga. — Acho que quero água no meu.

Ela puxou uma cadeira e sentou-se à mesa da cozinha.

— Há água naquela torneira ali — disse Max. — Abre aquela torneira.

O rapaz deitou água nos dois whiskies. Aclarou a garganta antes de também se sentar à mesa da cozinha. Depois sorriu. Pássaros esvoaçavam por cima deles, à caça de insectos.

Max olhava para a televisão. Terminou a sua bebida. Alcançou o interruptor do candeeiro de pé e deixou cair o cigarro no espaço entre as almofadas do sofá. A rapariga levantou-se para o ajudar a encontrá-lo.

— Queres mais alguma coisa, querida? — disse o rapaz.

Ele sacou do livro de cheques. Serviu-se a si, e à rapariga, de mais whisky.

— Oh, quero a secretária — disse a rapariga. — Quanto é que custa a secretária?

Max fez um aceno com a mão perante esta pergunta disparatada.

— Diz-me tu um número — disse.

Olhou para eles, sentados à mesa. À luz do candeeiro havia alguma coisa peculiar na expressão dos seus rostos. Durante um minuto esta expressão pareceu conspiratória e depois tornou-se terna — não havia outra palavra. O rapaz tocou na mão dela.

— Vou desligar a televisão e pôr um disco a tocar — disse Max. — O gira-discos também está à venda. Barato. Façam- -me uma oferta.

Ele serviu-se de mais whisky e abriu uma garrafa de cerveja.

— Está tudo à venda.

A rapariga ergueu o copo e o homem serviu-a de whisky.

— Obrigada — disse ela.

— Isto sobe à cabeça — disse o rapaz. — Estou a sentir isto chegar-me à cabeça.

Acabou a bebida, aguardou, e serviu-se novamente. Estava a escrever um cheque quando Max encontrou os discos.

— Escolhe alguma coisa de que gostes — disse Max à rapariga, e mostrou-lhe os discos.

O rapaz continuava a escrever o cheque.

— Este — disse a rapariga, apontando. Não conhecia os discos, mas não tinha importância. Aquilo era uma aventura. Levantou-se da mesa e depois tornou a sentar-se. Não lhe apetecia estar sentada e quieta.

— Vou passar o cheque ao portador — disse o rapaz, ainda a escrever.

— Claro — disse Max. Bebeu o que restava do whisky e depois começou a beber a cerveja. Sentou-se outra vez no sofá e cruzou as pernas.

Beberam. Ouviram o disco até ao final. E depois Max pôs outro disco a tocar.

— Por que não dançam? — disse Max. — É uma boa ideia. Por que não dançam?

— Não, não me parece — disse o rapaz. — Queres dançar, Carla?

— Força — disse Max. — O jardim é meu. Podem dançar se quiserem.

Braços em volta um do outro, corpos unidos, rapaz e rapariga subiram e desceram a entrada da garagem. Estavam a dançar.

Quando o disco chegou ao fim, a rapariga pediu a Max para dançar com ela. Ainda estava descalça.

— Estou bêbedo — disse ele.

— Não estás bêbedo — disse a rapariga.

— Bom, eu estou bêbedo — disse o rapaz.

Max voltou o disco ao contrário e a rapariga aproximou- -se. Começaram a dançar.

A rapariga olhou para as pessoas que se reuniam na janela de sacada do outro lado da rua.

— Aquelas pessoas que ali estão. A observar-nos — disse ela. — Há problema?

— Não faz mal — disse Max. — É o meu jardim. Podemos dançar. Achavam que já tinham visto acontecer de tudo por aqui, mas isto nunca viram — disse ele.

Ele começou a sentir o hálito dela no pescoço, e disse:

— Espero que gostes da tua cama.

— Vou gostar — disse a rapariga.

— Espero que os dois gostem — disse Max.

— Jack! — disse a rapariga. — Acorda!

Jack segurava o queixo e observava enquanto eles dançavam.

— Jack — disse a rapariga.

Ela fechou e depois abriu os olhos. Empurrou o rosto contra o ombro de Max. Puxou-o para mais próximo de si.

— Jack — murmurou ela.

Ela olhou para a cama e foi incapaz de compreender o que estava aquilo a fazer no jardim. Olhou para o céu, por cima do ombro de Max. Segurou-se a Max. Estava tomada de uma felicidade insuportável.

Mais tarde, a rapariga disse:

— O tipo era de meia-idade. Tinha as coisas todas ali no jardim. Não estou a brincar. Apanhámos um grande pifo e dançámos. Na entrada para a garagem. Oh, meu Deus. Não te rias. Ele pôs discos a tocar. Olha para este gira-discos que ele nos ofereceu. E estes discos velhos também. O Jack e eu dormimos na cama dele. O Jack estava de ressaca e teve de alugar uma carrinha pela manhã. Para transportar as coisas todas do gajo. Acordei uma vez. Ele estava a tapar-nos com o cobertor, o tipo. Este cobertor. Toca-lhe.

Ela continuou a falar. Contou a toda a gente. Havia alguma coisa por dizer, ela sabia-o, mas não o conseguia exprimir em palavras. Passado algum tempo deixou de falar no assunto.

Vi no Diário Digital.

PARTES

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__ Meu conselho mais importante a todos vocês, aspirantes a escritor: ao escrever, tentem deixar de fora as partes que os leitores pulam.

Elmore Leonard

A ARTISTA DO CORPO

Don DeLillo

confusão

O tempo parece passar. O mundo acontece, desenrolando-se em momentos, e você pára e olha de relance para uma aranha comprimida contra a teia. Há uma nitidez de luz e a sensação de que as coisas estão precisamente delimitadas e listras reluzentes na superfície da baía. Você sabe melhor quem você é num dia de luz forte depois de uma tempestade, em que a mais miúda folha que cai é transfixada pela autoconsciência. O vento arranca um som dos pinheiros e o mundo se faz, irreversivelmente, e a aranha paira na teia balançada pelo vento.

Aconteceu nessa última manhã de eles estarem ali ao mesmo tempo, na cozinha, um se esgueirando do outro, passo arrastado, pegando coisas em armários e gavetas, depois cada um esperando sua vez de usar a pia ou a geladeira, os dois ainda um pouco imersos na poça dos sonhos derretidos, e ela abriu a torneira para lavar um punhado de mirtilos e fechou os olhos para sentir o aroma.

Jornal na mão, ele mexia o café. Eram dele o café e a xícara. O jornal era lido pelos dois mas na verdade, tacitamente, era dela.
"Quero dizer uma coisa mas o quê."

A água escorria da torneira e ela pareceu notar. Era a primeira vez que ele notava.

"Sobre a casa. É isso", disse ele. "Uma coisa que eu queria te dizer."

Ela notou que a água da torneira ficava opaca em segundos. Saía cristalina e aí segundos depois ficava opaca e o engraçado era que depois de todos esses meses e todas as vezes que ela abriu a torneira da pia da cozinha ela nunca tinha notado que a água saía límpida no início e depois ficava não exatamente turva mas opaca, ou então nunca tinha acontecido antes, ou ela tinha notado e depois esquecido.

PRETO NO BRANCO

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Allan Sieber

CABO DO MEDO

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Martin Scorcese.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

ENCONTRO COM RAMA

KEVIN HAUFF - ENCONTRO COM RAMA

Kevin Hauff.

FAHRENHEIT 451

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Bob Pepper.

O TRAÇO DE MOEBIUS: HOMEM DE FERRO

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A LIBERDADE DE COMETER ERROS

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__ The hardest freedom to maintain is the freedom of making mistakes.

Morris West

OS MORTOS VIVOS NO AMC

Nova série baseada nos gibis do Robert Kirkman. Eba.

O FALCÃO MALTÊS

Dashiell Hammett

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Spade voltou ao seu escritório dez minutos depois das cinco, nessa tarde. Effie Perine estava sentada à escrivaninha dele, lendo o Time. Spade sentou-se sobre a mesa, e perguntou:
- Alguma notícia palpitante?
- Nada. Você parece que viu passarinho verde.
Ele sorriu, contente.
- Acho que arranjamos um futuro. Sempre me pareceu que se Miles sumisse e morresse por aí, nós teríamos mais probabilidades de prosperar. Quer tomar a incumbência de lhe mandar flores em meu nome?
- Já mandei.
- Você é um anjo. Como está a sua intuição feminina, hoje?
- Por quê?
- Que pensa você da Wonderly?
- Eu gosto dela. -replicou a moça sem hesitação.
- Ela arranjou nomes demais. Spade concentrou-se  -  Wonderly, Leblanc, e diz que o verdadeiro é O'Shaugh-nessy.
- Não me importa que ela tenha todos os nomes da lista telefônica. Essa moça é séria, e você sabe disso.
- Imagino. - Spade piscou sonolentamente para Effie Perine, e caçoou: - De qualquer forma ela escorregou setecentos mangos em dois dias, e isso é ótimo.
Effie Perine endireitou-se na cadeira, dizendo:
- Sam, se essa moça está em dificuldades e se você não a auxiliar, ou tirar vantagem disso para explorá-la, eu nunca o perdoarei, nem terei respeito nenhum por você, enquanto viver .

Spade teve um sorriso forçado. Depois franziu os sobrolhos. A carranca também era forçada. Abriu a boca para falar, mas o ruído de alguém entrando pela porta do corredor interrompeu-o. Effie Perine levantou-se e entrou na sala externa. Spade tirou o chapéu e sentou-se na sua cadeira. A moça voltou com um cartão onde estava impresso "Mr. Joel Cairo". 
- É um sujeito estranho - disse ela.
- Então faça-o entrar, meu bem - disse Spade.

Joel Cairo era um homem moreno, de ossos miúdos e estatura mediana. Tinha o cabelo escuro e liso, e muito lustroso. Seus traços eram orientais. Um rubi quadrado, ladeado por quatro barrinhas de brilhantes, brilhava contra o verde escuro da sua gravata. O paletó preto, cortado de acordo com os ombros estreitos, alargava-se um pouco sobre os quadris meio desenvolvidos. As calças mais estreitas do que mandava a moda ajustavam-se às pernas roliças. A parte superior dos sapatos de couro envemizado estava oculta por polainas cáqui. Segurava um chapéu preto, duro, na mão enluvada de camurça, e veio ao encontro de Spade com passinhos curtos, balanceados. Uma aroma de "chypre" entrou consigo.  Spade inclinou a cabeça para o visitante, e em seguida apontou em direção a uma cadeira, dizendo: 
- Sente-se, Sr. Cairo.
Cairo inclinou-se cerimoniosamente sobre o chapéu, disse
- Muito obrigado - em uma voz fina e aguda, e sentou-se. Sentou-se com afetação, cruzando as pernas, colocando o chapéu sobre os joelhos, e começou a tirar as luvas amarelas.

Spade recostou-se na cadeira e perguntou: - Em que ajudar, Sr. Cairo? - A amável negligência da sua voz, seu movimento na cadeira, eram exatamente iguais aos que quando endereçara a mesma pergunta a Brigid O'hnessy, no dia anterior .

Cairo virou o chapéu para cima, deixando cair as luvas , e colocou-o assim virado no canto da escrivaninha que ficava próximo. Fulguravarn brilhantes no segundo e quarto dedos de sua mão esquerda, e no terceiro da mão direita um rubi que fazia par com o da gravata, até mesmo nos brilhantes o circundavam. Tinha as mãos macias e bem cuidadas. Apesar de não serem grandes, sua flácida rotundidade faziam-nas parecerern mal conformadas. Esfregou as palmas uma na outra e disse encobrindo o leve ruído que produziram:
- Permite que um estranho apresente condolências pela desgraçada morte de seu sócio?
- Obrigado.
- Posso perguntar, Sr. Spade, se havia, como os jornais deduziram, uma certa... ah... relação entre esse infeliz acontecimento e a morte, um pouco mais tarde, desse Thursby?

Spade não respondeu, numa atitude definida, o rosto inexpressivo.

Cairo levantou-se e se inclinou. - Peço desculpas - Sentou-se de novo, e colocou as mãos lado a lado com as com as palmas para baixo, no canto da escrivaninha. - Mais do que simples curiosidade levou-rne a perguntar-lhe isto, Sr. Spade. Estou tentando recuperar um. ..ah! ...ornamento que foi... como diremos?...extraviado. Julguei, e esperava, que o senhor pudesse me auxiliar .

Spade aquiesceu, com as sobrancelhas levantadas, para demonstrar atenção.

- O ornamento é uma estatueta -continuou Cairo, escolhendo e mastigando cuidadosamente as palavras - a figura de um pássaro preto.

Spade aquiesceu de novo, com interesse cortês.

- Estou pronto a pagar, em nome do legítimo proprietário da figura, a soma de cinco mil dólares para recuperá-lo. - Cairo levantou uma das mãos de sobre a escrivaninha e tocou ponto no ar com a ponta do indicador disforme, coberto por uma unha chata. - Estou pronto a prometer que. ..como é que se diz? não serão feitas perguntas. - Pôs a mão sobre a escrivaninha de novo, ao lado da outra, e sorriu afavelmente por cima delas, para o detetive particular .
- Cinco mil é uma boa quantia de dinheiro - comentou Spade olhando pensativamente para Cairo.
- É...

Ouviu-se uma batida leve na porta. Quando Spade ordenou - Entre - a porta abriu-se o suficiente para dar passagem à cabeça e aos ombros de Effie Perine. Ela pusera um chapeuzinho de feltro escuro e um casaco também escuro, com gola de pele cinzenta.

- Precisa de mais alguma coisa? -perguntou.
- Não. Boa noite. Tranque a porta quando sair, por favor.
- Boa noite - disse ela, e desapareceu atrás da porta que se fechou.

Spade voltou-se na cadeira para encarar Cairo de novo, dizendo:
- É uma quantia interessante.
O ruído da porta do corredor, fechando-se atrás de Effie Perine, chegou até eles. Cairo sorriu e tirou uma pistola preta, curta, chata e compacta, de dentro de um bolso interno.

- Faça o favor - disse ele - junte as mãos sobre a nuca.

Vi no Subcultura.

MASH

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O melhor filme de Robert Altman.

UMA SENSAÇÃO DE VAZIO

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__ Quando estou trabalhando em um livro ou um conto, escrevo diariamente de manhã, a partir da hora em que surge a primeira luz. Não tem ninguém para perturbar, é fresco, ou mesmo frio. Começo a trabalhar e vou esquentando conforme escrevo. Leio o que fiz no dia anterior e, como sempre paro num trecho a partir do qual sei o que vai acontecer, prossigo desse ponto. Escrevo até chegar a um momento em que, ainda não tendo perdido o gás, posso antecipar o que vem em seguida; paro e tento sobreviver até o dia seguinte, para voltar à carga. Se começo às seis da manhã, digamos, posso ir até meio-dia, ou interromper o trabalho um pouco antes. A interrupção dá uma sensação de vazio, como quando se faz amor com quem se gosta. E ao mesmo tempo não é um vazio, mas um transbordamento. Não há nada que o atinja, nada acontece, nada tem sentido até o dia seguinte, quando você faz tudo de novo. Difícil é viver a espera até o dia seguinte.

Ernest Hemingway

terça-feira, 24 de agosto de 2010

RASTROS DE ÓDIO

rastros

Porque John Wayne e John Ford uniram-se em um final clássico.

A PALAVRA DE HITCHCOCK

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THE WRONG MAN:

__ Quis fazer o inverso de filmes do gênero Boomerang ou Call Northside 77, nos quais seguimos o investigador que trabalha para libertar um inocente na prisão. Meu filme foi feito do ponto de vista do homem preso. Assim, no início, quando o vêm prender, ele senta-se no carro entre dois inspetores: grande plano de seu rosto: olha para a esquerda e vê, do seu ponto de vista, o perfil grosseiro do primeiro guardião: olha para a direita:o segundo guardião acende um cigarro; olha para a frente e no retrovisor percebe os olhos do chofer que o vigiam. O carro parte e ainda há tempo de lançar um rápido olhar em sua casa: na esquina da rua se localiza o bar onde ia habitualmente e diante do qual brincam as crianças: num carro parado, uma bela jovem liga o rádio. No mundo exterior, a vida continua como se nada estivesse acontecendo, tudo se passa normalmente, mas ele está no carro, prisioneiro.

Alfred Hitchcock

Vi no Análise Indiscreta.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

DO SENHOR BRADBURY

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PORCO ROSSO

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Hayao Miyazaki fará uma continuação: Porco Rosso: The Last Sortie. A história se passará durante a guerra civil espanhola. Eba!

O DIA EM QUE DORIVAL ENCAROU A GUARDA

Tabajara Ruas

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Dorival coçava a nuca. Disfarçadamente, examinava o Alemão. Não, ninguém diria. Em seu exame não entrava o sarcasmo nem o preconceito. Era frio, reflexivo, científico. Estava perplexo. Não, ninguém diria. Ficou quase feliz quando o Alemão cansou-se de brincar com as cordas do violão e rompeu o silêncio:

- Como é mesmo essa história de quando você encarou a guarda?

Dorival se acomoda na poltrona, faz um ar de quem está chateado, sua mão executa um gesto de deixa-pra-lá.

- Uma desinteligência com os ômis.

- Conta.

- Tudo que eu queria era tomar um banho.

- Conta, pô.

- Já fazia dez dias que eu apodrecia na cela e não me deixavam tomar banho. Fazia um calor de rachar. Mesquinharia do carcereiro que não foi com minha cara. Uma noite não agüentei mais e meti a cara nas grades da janelinha. Gritei pro guarda:

- Ô praça, venha cá!

O soldadinho estremeceu. Onze horas da noite, faltava meia hora para ser rendido, vinha essa voz atrapalhar sua paz. Calorzão medonho. Das piores noites de verão. Em Santa Catarina nunca faz tanto calor assim como neste tal Rio de Janeiro. A fazenda áspera da farda provocava-lhe assadura nas partes, os coturnos apertados machucavam-lhe os pés acostumados com chinelas de dedo, o capacete estava molhado de suor por dentro, sentia-o deslizar pela nuca e pela testa. O único bacana era a metralhadora que lhe deram, novinha, leve. Quando chegava ao fim do corredor, onde estava a janela gradeada e a corrente de ar e onde demorava-se mais do que devia, olhava o luar que batia no cano dela e provocava um brilho esquisito enquanto saltavam estrelinhas e chispas do parafuso perto do carregador. Uma beleza. Agora essa voz, ainda por cima autoritária (parecia a voz do sargento) que vinha duma das celas. Aproximou-se vagaroso, desconfiado.

- Aqui.

Era a cela 12. Pela janelinha gradeada espreitava a cara sinistra, suada, dum baita dum negrão. O negrão sorriu, cintilou um clarão branco na sua cara, o soldadinho se assustou mais.

- Praça, seja camarada, me leva até o banheiro e deixa eu tomar uma ducha. Tô derretendo aqui dentro.

O soldadinho sorriu. Não era problema. Estava até pensando em coisa grave. Sacudiu a cabeça sério, otoridade.

- Não pode.

- Não pode por quê? Tô derretendo aqui dentro.

- São ordens.

- Ô, meu chapa, não custa nada. Há dez dias não tomo banho. Esta merda desta cela não tem nem janela. Tô sufocando. Em cinco minutos tomo uma ducha. Não consigo dormir com o calor. Não custa nada.

- Não pode.

- Porra, mas isso é uma idéia fixa. Por que não pode, caralho?

- Ordens.

- Que ordens, pô?

- Ordens são ordens.

- E quem deu a ordem?

- O cabo.

- Vai lá chamar o cabo.

O soldadinho arregalou os olhos. O caso se complicava.

- Chamo nada. Vai pro teu catre e fica quieto.

Antes que enchesse o peito, orgulhoso da resposta, viu a cara do negrão se contrair, seus olhos se arredondarem, as palavras saltarem da sua boca monstruosa sólidas como pedaços de tijolos jogados contra sua cabeça.

- Escuta aqui, catarina barata descascada, polaco comedor de sabão. Vai lá chamar esse cabo antes que eu faça um escândalo nesta espelunca! Eu começo a gritar aqui dentro que acordo até o general que é gerente deste hotel.

Agarrou-se às grades - o soldadinho nunca viu mãos tão grandes na sua vida - e pode ser apenas impressão sua, mas a porta de aço estremeceu. Não fazia nem uma semana, no seu dia de licença, tinha visto - e ficara profundamente impressionado - o magnífico filme King Kong (tão bem feito, parecia real!) onde um gorila gigantesco transforma em picadinho uma baita duma cidade dos Estados Unidos da América. O soldadinho recua um passo, apavorado. Tem a impressão apavoradamente nítida de que o que se encontra dentro da cela é nada mais nada menos que o King Kong, o brilho dos olhos do negrão é o brilho dos olhos do King Kong e sua boca feroz é a boca mortal do King Kong. Imagina, pensa - vê - (são sabe mais) que de dentro da cela desprende-se ruído de correntes, cheiro nauseante de selva, de carne humana decomposta. Dá as costas, desliza-lhe agudo frio pela espinha inteira, a porta vai ceder à pressão do monstro. Atravessa o corredor em cinco passadas.

- Cabo.

O cabo vira lentamente o rosto, o cigarro pende da ponta dos seus lábios, a metade do cigarro está transformado em cinza que a preguiça impediu de sacudir, franze a testa com desgosto e fecha os olhos por causa da fumaça, porra, aí vem esse catarina encher meu saco, agora que estava ficando boa a historinha do Drácula.

- Qualé?

- O preso da cela 12!

- Qualé?

- Quer falar com o senhor, meu cabo.

- Qualé, qualé? - Faz gestos com as mãos, esse catarina obtuso não desenvolve os assuntos, porra.

- Vai fazer um escândalo, vai começar a gritar, aliás, já começou. É um negrão deste tamanho.

- Um negrão deste tamanho? E você se encagaçou porque ele é um negrão deste tamanho? Você é um homem ou um rato? Vem interromper minha leitura porque um negrão deste tamanho dentro duma cela fechada a chave começou a gritar?

- Mas, cabo...

- Nada de mas nem meio mas! Eu vou lá dar um sossego no negrão deste tamanho.

O cabo joga a revista do Drácula no banco encostado à parede com gesto enfastiado. Tira as pernas de cima da mesa como Clint Eastwood em Por um punhado de dólares. Aperta o cinturão. Põe o capacete. Torna a dependurar o cigarro, agora sem a cinza, no canto da boca. Começa a caminhar lentamente pela rua principal de Dodge City. O sol cai no horizonte. Aproxima-se da cela 12. Tá lá a facha do negrão. Cruzes. Esse comuna de merda não vai ganhar nenhum concurso de beleza. Aproximou corajosamente o rosto das grades, exemplo pra esse praça frouxo.

- Qualé?

- Cabo, eu queria pedir licença pra tomar um banho. Coisa rápida. Estou derretendo aqui dentro. Não deixam eu me banhar há mais de dez dias. Mas hoje está insuportável, palavra.

O cabo franze a testa, semicerra os olhos. (Tem um cara antigão que faz assim nos policiais que dão na TV.) Mal move os lábios.

- Você sabe onde está, ô cara?

- Sei, cabo, mas...

- Senhor cabo. Respeito é bom e otoridade merece.

- Senhor cabo. Acontece que eu...

- Acontece que tu tá em cana, crioulo, e malandro que é malandro chia mas não geme. Cala essa matraca e vai dormir.

- Mas, cabo...

- Senhor cabo, já disse.

- Cabo e merda pra mim é a mesma coisa.

- !...

- Viado.

O cabo deu um salto para trás. O negrão, tranqüilo, continua:

- Bicha. Tu não me engana com essa pinta não. Já te manjei, sarará. Teu negócio é dar o rabo pros recrutas. Aposto que quem te enraba é o catarina aí. Tá falando com macho, entendeu? Abre essa porteira que eu quero tomar banho.

- Macaco não toma banho. E não me faz perder a paciência, crioulo, senão eu abro essa jaula e te mostro com quantas bananas se faz um piquenique.

- Então, abre. Boneca de catarina.

O cabo cuspiu o cigarro pra um lado. Olhou de relance para o praça paralisado. Aprumou os ombros.

- Tu tá com sorte, negão. Vai dormir. Não abro essa joça porque tenho ordens pra não abrir. Se não tu ias ver o que é bom.

- Ordens? Que ordens?

- Ordens, pomba!

- Ordens de quem?

- Não interessa. Ordens são ordens.

- Tu é tão pé-de-chinelo que não sabe nem de quem recebe ordens?

- Do sargento.

- Vai chamar o sargento.

- Tu tá doido, crioulo.

- Olha aqui, boneca, vai chamar esse sargento ou dou um escândalo tão grande nesta merda que vão te rebaixar pra recruta outra vez e aí babaus, não vai ter catarina que queira comer rabo de recruta.

O cabo olhou firme nos olhos do negrão, o olhar de Kojak ao descobrir o policial corrupto, e dá-lhe subitamente as costas. Afasta-se pisando forte.

- Tu vai entrar por um cano, crioulo...

O sargento ergueu dois olhos entediados. Aí vem o cabo e esse praça com pinta de otário para lhe encherem o saco. Perdeu o ensaio na Escola porque logo hoje caiu de serviço. Baixa o volume do radinho de pilha, acomoda-se melhor na cama onde está estendido. Saco. O ventilador em cima do armário não resolve. Quando vão botar ar-condicionado para sargento também? O tenente lá no quarto dele tem refrigeradorzinho, toca-disco; livrinhos de capa grossa e, claro, ar-condicionado. Agora, o sargento Marcão, pai de dois crioulinhos, vivendo maritalmente com a mulatinha Ana Neusa - de parar o trânsito e fechar o comércio - não tem nada disso não. Sargento tem é que se ralar. E se é preto, pior ainda.

- Dá licença, sargento?

- A porta tá aberta...

O cabo se enquadra.

- Sargento...

- Quem é que tá de guarda no corredor?

O cabo se vira, dá de cara com o recruta de Santa Catarina.

- Qualé, qualé? Que tá fazendo aqui? Vai pro teu posto, imbecil!

O soldadinho sai em passo acelerado. Quando afastou-se o suficiente, o cabo prepara o olhar-de-momento-grave para o sargento, olhar fatal, de decidir se aperta-ou-não-o-botão-vermelho e aí adeus humanidade.

- Sarja, o crioulo da cela 12 tá a fim de bagunçar o coreto. Digo, desculpe sarja, o preso da cela 12.

- Quer bagunçar qual coreto? O teu?

O cabo se curva, confidencial, grave:

- O de todos, sargento, o de todos.

- Que que ele quer?

- Tomar banho.

- Não pode.

- Eu disse pra ele.

- Então? Assunto encerrado.

- Mas ele prometeu armar um escândalo, começar a gritar.

- A esta hora da noite?

- O senhor vê.

- Mas tu disse que não pode tomar banho?

- Disse. Ele tem ordem para não tomar banho.

- Ele não tem ordem para não tomar banho. Existem ordens para que ele não tome banho.

- Pois é. Ordens são ordens.

- Ele ameaçou gritar?

- Ameaçou. É um baita dum negrão deste tamanho. Desculpe, sarja. Tem um vozeirão que vou lhe contar. Sai da frente. Se começa a gritar se ouve até lá na Mangueira.

Lá na Mangueira, pensou o sargento, melancólico. Lá na Mangueira a coisa tá animada. E eu aqui, agüentando estes imbecis.

O sargento sentou-se na cama com esforço.

- Porra...

Afivelou o cinturão, suspirou, não se pode ter descanso numa noite quente dessas. Caminhou pelo corredor arrastando os pés. Com certeza vai chover, cair um tremendo temporal, acabar com o ensaio. Falta pouquinho pro Carnaval. Não posso mais perder ensaio, tem nego de olho grande na minha vaga. Não dá pra dormir no ponto.

Aproximou-se da cela 12, puxa que crioulo feio.

- Qual é o plá?

- Sargento, eu queria pedir ao senhor licença pra tomar uma ducha.

- Não pode.

- Não pode por quê?

- Não pode porque não pode. Ordens.

- Ordens de quem, pô?

- Não interessa.

- Mas, sargento... Não dá pra esquecer essas ordens só por um minutinho? Eu tomo uma ducha num instante. Tô derretendo aqui dentro. Um sufoco brabo. Há dez dias que...

- Não pode.

- Sargento, não tô pedindo nada demais, pô.

- Chega de papo. Ordens são ordens. Amanhã a gente fala nisso.

- Amanhã tem outro na guarda.

- Então outro dia.

- Tu tá é com medo.

O sargento mostrou um sorriso tolerante. O cabo e o praça se entreolharam.

- Vai dormir que isso passa, rapaz. Não procura sarna pra te coçar. Meu lema é...

- Tu não tem lema. Pau-mandado não tem lema.

O praça e o cabo tornaram-se sombrios, olho no sargento.

- Olha aqui, rapaz. Devagar. Relax. Não tenho nada contra ti. Eu sou sargento aqui e posso...

- Sargento e merda pra mim é a mesma coisa.

- Olha, crioulo, que eu posso te dar um pau.

- Vem.

- Eu sou cara de paciência, moreno.

- Então me deixa ir tomar banho.

- Não pode.

- Por quê?

- Já disse.

- Quem deu a ordem?

- Não interessa.

- Então vou começar a berrar aqui dentro.

- E vou aí dentro e te dou um pau.

- Vem.

O sargento suspirou. Era um negro baixote, ratacão, razoável meio-pesado quando tinha vinte anos e ainda não fora absorvido pela bateria da Mangueira e pelo boteco da esquina. O praça e o cabo estavam extasiados com o espetáculo. O sargento considerou os prós e os contras, sacudiu a cabeça, tornou a suspirar e começou a afastar-se, vagaroso, arrastando os pés, saco, esses galhos só acontecem comigo.

- Sargento.

Esse negão tá querendo levar. Voltou-se, com um brilho maligno nos olhos.

- E o meu banho?

- Vou falar com o tenente. Ele que resolva.

O sargento Marcão não gostava de falar com o tenente. Talvez ninguém gostasse de falar com o tenente. Não que o tenente fosse grosseiro. Nada disso. O tenente era uma moça, como dizia o coronel. O tenente não maltratava ninguém. O tenente tinha a rara qualidade de saber dizer obrigado, passe bem, boa noite, como foi o ensaio? O tenente era educadíssimo. O sargento Marcão não gostava de falar com o tenente - talvez ninguém gostasse de falar com o tenente - porque, no mel dos seus vinte anos, o tenente Otílio tinha tão e de tal modo azuis os olhos que quem os encarasse muito tempo sentia frio como acometido de pressão baixa ou tristeza, dessa fininha, que só dá quando se está muito longe de casa.

Justo quando o tenente começava ler o capítulo sobre Gauguin Bateram na porta.

- Entra.

O sargento. A cara de desânimo brilhando de suor. O sargento Marcão sempre estava com cara de desânimo e brilhando de suor. E um ou outro botão fora da casa. Parecia as negras gordas que aquele pintor mexicano pintava. Um certo Rivera. Ou seria Ramires? Pintava murais da revolução mexicana. Devia ser comunista. Melhor fingir que não vê os botões por abotoar, o cinturão frouxo na cintura.

- Com licença, tenente.

- O que há, sargento?

- Tem um preso fazendo confusão. Quer tomar banho.

- Tomar banho? A está hora?

- Ele não toma durante o dia.

- Por quê?

- Ordens.

- Ah.

O tenente pensou um pouco.

- Ele tem ordens de não tomar banho só durante o dia?

- Não está especificado, tenente.

- Bem... Acho que se não pode durante o dia não pode também durante a noite.

- Assim me parece, tenente.

- Então, está resolvido o caso.

O sargento descansou numa perna, fez o vago ar de que não-é-bem-assim.

- É que ele tá querendo confusão mesmo, tenente. Ameaça gritar e acordar todo mundo e tal e coisa.

- Quem é esse preso?

- Um líder sindical. Foi preso em Osasco. Trouxeram pra cá para uma acareação.

- Perigoso?

- Bem, terrorista parece que não é... Mas não tem boa pinta. É muito atrevido. Desacatou o praça de guarda e o cabo.

O tenente olhou pensativo as páginas do livro. Será que o sargento Marcão entende a arte moderna? O tenente não conhecia ninguém que entendesse de arte moderna. O tenente também não entendia de arte moderna. Por isso lia tanto esses livros. Olhou a página aberta. -A pintura de Gauguin pode ser entendida através de auto-retratos e de suas cartas.- Fechou o livro.

- Vamos lá.

O cabo e o praça esperavam no início do corredor. Enquadraram-se, deixaram o tenente e o sargento passar. O quarteto rompeu pelo corredor num passo marcial. Pararam frente à cela. O tenente não teve certeza, por um momento pensou que sonhava, porque o rosto sinistro dentro da cela olhou com desprezo o livro que carregara inadvertidamente e sussurrou, intelectual e merda pra mim é a mesma coisa. O tenente olhou escandalizado para o sargento. O sargento tinha cara de quem não ouviu nada. O cabo e o praça idem. (Por que não deixei o livro no quarto? Meu analista vai insinuar que é necessidade de afirmação, tenho certeza).

- Qual é o problema?

A cara do negro parecia uma dessas coisas modernas do Picasso, mas não era bem isso.

- Tenente, eu queria pedir licença ao senhor para tomar uma ducha, tô derretendo aqui dentro.

- Não pode.

O negrão suspirou.

- Não pode por quê, tenente?

- Isso não é da sua conta.

- Tenente, não me leve a mal, mas é da conta de quem, então? Sou eu quem não deixam tomar banho, logo é da minha conta saber por que não me deixam tomar. E com um calor desgraçado desses.

O tenente considerou a colocação. Pareceu-lhe justa.

- São ordens.

- Ordens! Ordens de quem?

- Isso já não é da sua conta.

O negrão bufou: não era mais suspiro.

- Tenente, seja humano. Que custa me deixar tomar uma duchazinha rápida? Cinco minutos. Ninguém vai saber.

- Ordens são ordens.

- Me diga uma coisa, tenente: sinceramente, o senhor sabe quem deu essa ordem?

- Vou dar um conselho pra teu próprio bem, rapaz: vai dormir. Você está nervoso. Amanhã isso passa.

- Se não diz é porque não sabe quem deu.

- Amanhã eu converso com o capitão sobre o teu banho.

- Se não sabe quem deu a ordem e obedece é um boneco. Não é um homem, é um boneco.

- Me respeita, negro!

- Tenente e merda pra mim é a mesma coisa.

O tenente gelou. O negro sorria, debochado. O sargento, o praça, o cabo aguardavam. Se não reagisse ficaria desmoralizado. Olhou a imensa figura debochada, precisou achar uma boa razão para odiá-lo, buscou com desespero em sua memória, achou uma frase do seu pai no alto do cavalo, na fazenda.

- Cafre miserável, vou te dar uma lição!

Então, Dorival inclinou a cabeça - sem fazer cálculo nem pontaria - e deu uma cuspida enviesada, infernalmente certeira - genial - bem no olho azul do tenente Otílio.

Os quatro homens maravilhados, como quem presencia um encantamento. O sargento reagiu primeiro. Com rugido assombroso para ele mesmo atacou com a coronha da metralhadora, bateu nas grades da janelinha, o negrão lá dentro deu um pulo para trás, vem, vem.

O praça de Santa Catarina sentiu uma vertigem: era King Kong. Lá dentro, a urrar, não estava um homem: estava King Kong em pessoa, despedaçaria a todos, comeria pedaços de sua carne; agoniou-o a tremura nas pernas e o aperto injusto dos coturnos. O cabo levou a mão à coronha do Colt. John Wayne em Rio bravo. O tenente ergueu bem alto o livro, como uma bandeira.

- Alto! Alto!

Todos pararam. O tenente transpirava. O tenente sentia uma coisa estranha agitar-se dentro de si, algo dentro de si ensaiava levantar vôo.

- Sargento.

- Pronto, tenente.

- Tem as chaves desta cela?

- Sim, tenente.

- Abra-a.

O tenente observou o sargento mexer nos bolsos nervosamente. Apanhou um molho de chaves.

- Sargento.

- Tenente.

- Espere um pouco.

O tenente ofegava. Vacilou.

- Traga reforços.

- Sim, senhor, tenente. Quantos homens?

O tenente encolheu os ombros.

- Bem... Traga dois. Dois bastam.

O sargento lançou um olhar enérgico para o cabo. O cabo lançou um olhar enérgico para o praça. O praça se enquadrou e saiu num passo acelerado.

O cabo, o sargento, o tenente e o negrão aguardavam. Uma coisa ameaçava levantar vôo dentro do tenente. Algo dentro do tenente palpitava. Um dia você ainda vai me matar, dissera-lhe a mãe numa voz cavernosa, você é igual a seu pai, tem um abutre por dentro.

O sargento mordia o lábio inferior, começava a inflar de raiva cega contra o provocador estúpido que ria dentro da cela, o tirara do conforto da cama, do ventilador, do radinho de pilha.

O cabo antegozava o momento, vou esperar que o filho da puta esteja bem agarrado, de dar-lhe um pontapé nos culhões. Vai ver o que é meter-se comigo, esse crioulo.

O negrão aproximou o rosto das grades. Sorria.

- Tenente, quer saber quem deu a ordem?

Os três levantaram os olhos para o negrão.

- Foi o carcereiro. Porque não vai com minha cara. Na verdade não existe ordem nenhuma. Basta checar para saber. Vocês todos são é uns paus-mandados mesmo.

Passos no corredor. O praça aproxima-se com quatro soldados. Por um segundo de azar, o olhar do tenente cruzou com o do sargento. Mandaram chamar dois, mas já que vieram quatro... O grupo chegou e enquadrou-se. O tenente fez sinal para o sargento.

- Vamos dar uma lição nesse insubordinado - disse o sargento. - Que ninguém use arma de fogo sem receber voz de comando. É só umas porradas pra ele aprender a respeitar otoridade.

- Muito bem - disse o tenente. - Abra.

Os oito homens silenciaram frente à porta. O suor escorria por todos os rostos. A chave rangeu na fechadura. O praça de Santa Catarina vacilou com a vertigem, viu tudo escuro, dentro da cela brilhavam dois olhos ferozes. Baleia escancarando as mandíbulas terríveis, a porta abriu-se: boca gigantesca de pesadelo. Quem entra primeiro. Todos se entreolharam. Um a um, todos os olhares caíram no tenente. O tenente prendeu a respiração, cravou os olhos azuis no sargento, esse bruto homem com uma metralhadora na mão não toma a iniciativa, não é possível. Fez-lhe sinal com a cabeça. O sargento olhou duvidoso para o interior da cela. Escuro. Deu uns passos e entrou. O vulto estava imóvel no canto, rente à parede. O sargento criou coragem.

- Tu tá fudido, negão!

Saltou para dentro, num arranco, brandindo a culatra da metralhadora, exigindo a raiva brotar contra aquela sombra imóvel no canto que lhe atrapalhava a paz da noite.

- Segurem esse filho da puta!

Subitamente audaciosa a soldadesca avançou. E estacou com um único calafrio de pânico porque Dorival junto à parede executou sutil movimento de anjo. Pesava cem quilos, media um metro e noventa, calçava quarenta e quatro e executou sutil movimento de anjo. E riu. O riso penetrou a espinha do catarina como um punhal, encheu o corredor como trovoada.

- Milico e merda pra mim é a mesma coisa!

Durante um segundo o tenente enlouqueceu:

- Segurem esse cafre, segurem esse cafre!

O primeiro que chegou perto esborrachou a cara contra o soco de trezentos quilos, o segundo voou com um pontapé no estômago, bateu contra a parede, escorregou até o chão contemplando um confuso bosque povoado de sangrentas borboletas metálicas, o terceiro acertou a coronhada no rosto de Dorival, o sargento atingiu-lhe a nuca com a culatra da metralhadora, o cabo um pontapé nas costelas, os outros caíram em cima, matilha batendo mordendo o soldadinho de Santa Catarina encostou-se à parede da cela vencido pela vertigem o tenente brandia o livro de arte folhas coloridas saltavam num impulso de alegria abandonou-se ao abutre ruflou as asas negras sobre o escombro pululante guinchava aprende a lição cafre aprende a lição.

- Limpem o sangue - disse o tenente.

Apanhou as folhas de livro espalhadas pelo piso, afastou-se em passos de sonâmbulo, pondo a camisa para dentro das calças.

Arrastaram Dorival pelos pés até o banheiro. Largaram-no debaixo do chuveiro, abriram a torneira. A água fria reanimou-o. Apoiou-se nos cotovelos, as costas encontraram a parede, de olhos fechados ficou gozando a água.

O sargento Marcão, agachando-se com um suspiro, acendeu dois cigarros e estendeu-lhe um, silenciosamente.

Do Livro "O Amor de Pedro por João".

GRANDES SERTÕES: VEREDAS

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Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco (...) Mas, não diga o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia.

Guimarães Rosa

O LOBO DA ESTEPE

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Sou, na verdade um Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes - aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem ar nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível.

Hermann Hesse

ANOS

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Descobre que se levam anos para construir confiança e apenas segundos para destruí-la, e que você pode fazer coisas em um instante, das quais se arrependerá pelo resto da vida.

Shakespeare

A MULHER IDEAL SEGUNDO FRANK ZAPPA

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A mulher ideal é aquela que é bonita, adora trepar, e vira uma pizza às quatro da manhã.

UM DIA

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Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu.
Como não sou judeu, não me incomodei.
No dia seguinte, vieram e levaram
meu outro vizinho que era comunista.
Como não sou comunista, não me incomodei .
No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho católico.
Como não sou católico, não me incomodei.
No quarto dia, vieram e me levaram;
já não havia mais ninguém para reclamar...


Martin Niemöller, 1933

O PODEROSO CHEFÃO

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KAY: How'd he do that?
MICHAEL: My father made him an offer he couldn't refuse.
KAY: What was that?
MICHAEL: Luca Brasi held a gun to his head, and my father assured him that either his brains -- or his signature -- would be on the contract.
That's a true story.

APOCALYPSE NOW

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Kilgore: Smell that? You smell that?
Lance: What?
Kilgore: Napalm, son. Nothing in the world smells like that.
Kilgore: I love the smell of napalm in the morning. You know, one time we had a hill bombed, for 12 hours. When it was all over, I walked up. We didn't find one of 'em, not one stinkin' dink body. The smell, you know that gasoline smell, the whole hill. Smelled like... victory.

ALPHAVILLE

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__ Il mai être que la réalité est très complexe pour la transmission orale.

A VIA CRUCIS DO CORPO

Clarice Lispector

Ele chorou um pouco. Era um belo homem, com barba por fazer e abatidíssimo. Via-se que havia fracassado. Como todos nós. Ele me perguntou se podia ler para mim um poema. Eu disse que queria ouvir. Ele abriu uma sacola, tirou de dentro um caderno grosso, pôs-se a rir, ao abrir as folhas. Então leu o poema. Era simplesmente uma beleza. Misturava palavrões com as maiores delicadezas. Oh Cláudio – tinha eu vontade de gritar – nós todos somos fracassados, nós todos vamos morrer um dia! Quem? Mas quem pode dizer com sinceridade que se realizou na vida? O sucesso é uma mentira.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

GRANDES VULTOS

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Allan Sieber.

MARCAS NO PESCOÇO

Álvaro A. L. Domingues

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Assustou-se ao ver uma mancha roxa no pescoço da irmã, mas não perguntou nada.

Ele só tinha oito anos, mas sabia tudo sobre aquilo: sua irmã tinha sido atacada por um vampiro. 

Isso explicava o comportamento estanho dela, desde que fizera dezesseis anos: dormia até tarde, irritava-se com a luz solar e saia muito à noite. Sua mãe não ligava, e dizia, quando ele manifestava suas suspeitas, que era apenas adolescência. Que ele entenderia quando chegasse sua vez.

Talvez a mãe soubesse do estado da filha e estivesse escondendo. Ficou preocupado com o “quando chegasse sua vez”. Viraria um vampiro também? Talvez sua mãe também fosse uma. Mas ela sempre levantava cedo para levá-lo à escola. Mas e aquele livro que sua irmã lera que tinha vampiros que brilhavam sob o sol?

O jeito era descobrir. Alho, estaca e crucifixo? Sua irmã detestava alho! Mas espere! Ele também! E desde sempre. E ele ainda não era um vampiro! Portanto o alho não servia pra nada.

A estaca, só como último recurso. Mesmo que a irmã fosse um vampiro, nunca iria lhe espetar uma estaca no coração (  na realidade, a estaca era um pedaço de cabo de vassoura, apontado a facão, como um lápis). Restava o crucifixo. A avó lhe dera um grande, por conta da primeira comunhão.

Ficaria esperando quando ela voltasse de uma de suas saídas noturnas, a surpreenderia e mostraria o objeto religioso. Levaria a estaca também, por via das dúvidas, caso ela o agredisse.

Foi que fez. Ficou escondido na sala, atrás da cortina, esperando que ela abrisse a porta. Ela chegou, mas não estava sozinha. Um rapaz todo de preto a acompanhava. Os dois, ainda na penumbra, sentaram-se no sofá. E logo começaram os abraços e beijos. Foi quando ele procurou novamente o pescoço da moça. O garoto não se conteve. Com um urro pulou de trás da cortina, bradando crucifixo e a estaca.

O rapaz levou um susto e berrou:

– Quem é esse maluco?

– É o meu irmão! – respondeu a garota.

Ele olhou para o menino, cheio de pavor, e continuou gritando:

– Eu que não fico nem mais um minuto aqui!

E saiu correndo pela porta de entrada.

A irmã se voltou pra ele fula! Ela queria estrangulá-lo, gritando:

– Seu moleque do capeta! Você espantou meu namorado!

– Seu namorado? Pois ele é um vampiro! – retrucou o menino.

A gritaria acordou sua mãe, que apartou a briga com um sabão bem dado nos dois. Quando tudo ficou mais calmo, o garoto contou à mãe o motivo da briga. A marca roxa. A senhora gargalhou, deixando o menino perplexo e explicou:

– Isso é um marca de um beijo um pouco mais afoito do rapaz. Sua irmã permitiu alguns avanços demais (depois eu acerto com você, mocinha!) do namorado. Não é o beijo de um vampiro!

O garoto, envergonhado, voltou para a cama. Não perturbaria mais a irmã, mas ainda deu um ultimo olhar desconfiado pra ela, antes de subir pro quarto.

No dia seguinte, a mãe e a moça foram procurar o namorado, para esclarecer “algumas coisinhas”. Chegaram ao endereço que ele fornecera e encontraram uma casa abandonada. Um arrepio percorreu o corpo das duas...

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