domingo, 7 de agosto de 2011

MINHA VIDA UMA FARSA

Peter Carey

mulher_dormindo

Um trecho:

Conheci John Slater toda a minha vida. Talvez você se recorde da polêmica pública com Dylan Thomas, ou mesmo tenha um exemplar de seu famoso livro de poemas "obscenos". Se for uma edição americana, vai achar, na orelha, uma fotografia do belo autor de cabelos louros vestido com roupas brancas de críquete. Dewsong foi publicado em 1930. Slater tinha vinte anos na época, quase um prodígio.

Nesse mesmo ano, nasci Sarah Elizabeth Jane, de uma bela e impaciente mãe australiana e de um não menos belo mas bem elegante pai inglês, lorde William Wode-Douglass, conhecido normalmente por Boofy.

A própria ascendência de Slater era um tanto duvidosa, mas minha mãe, uma terrível esnobe, era ruim de ouvido, e sei que ela achava Slater o máximo e portanto lhe permitia excessos que não toleraria de um colegial de Chester, o que ele na verdade era.

Foi Slater quem esculpiu com as próprias mãos o bolo do aniversário de trinta anos de meu pai, quem cavalgou com um cavalo pela cozinha, quem trouxe Unity Mitford para jantar na época em que ela costumava roubar papel timbrado do Palácio de Buckingham e carregava na bolsa um pequeno e repelente furão.

Não posso dizer que entendia o papel dele no casamento dos meus pais, e somente quando minha mãe se matou — de forma horrivelmente espetacular — desconfiei de que havia algo errado. Nos últimos minutos de sua vida, vi John Slater envolvê-la em seus braços e finalmente entendi, ou pensei ter entendido.

Daquele momento em diante, detestei tudo nele: seu ensimesmamento, sua beleza agressiva, porém mais do que tudo aqueles eletrizantes olhos azuis que povoavam minha imaginação como a encarnação da mentira.

Quando minha mãe morreu, o pobre Boofy desabou por completo. Bebia, chorava e urrava, e, depois de cair da escada pela segunda vez, ele me despachou para a St. Mary’s Wantage, em Berkshire, do que não gostei nem um pouco. Fugi, fui levada de volta num furgão dos correios, briguei com a diretora e adotei a perversa estratégia de escrever com a mão esquerda, tornando quase ilegíveis meus trabalhos escolares. Estava tão ocupada em ser uma menina má que ninguém notou que eu também tinha um cérebro. Entretanto, mesmo enquanto tirava notas D em inglês, de algum modo conseguia perceber que os festejados versos de Slater nada mais eram do que alcovas construídas por um macho para conseguir sexo. E esta não era minha única opinião e não relutei em deixar o Grande Homem saber exatamente o que eu pensava. Em algum lugar de seus papéis ainda deve haver a prova de minha cuidadosa leitura de "Leste Oriental", com correções impertinentes, dúvidas sobre seus pesados versos quebrados, tudo aquilo que eu maliciosamente esperava que "lhe pudesse ser útil".

Fui, em suma, um terror precoce, e você não ficará nada surpreso com o fato de John Slater e eu não termos nos tornado amigos. Mas, como Londres é Londres, continuei topando com ele através dos anos e, enquanto ele continuou escrevendo poesia e eu acabei como editora da Modern Review, conhecíamos muitas pessoas em comum e tivemos motivo para sentar mais de uma vez à mesma mesa.

O tempo não tornou mais fácil a aproximação. Aliás, à medida que eu ficava mais velha, sua presença física tornava-se cada vez mais perturbadora. Não direi que era obcecada por ele, mas não podia estar no mesmo aposento sem olhá-lo continuamente; ao mesmo tempo, era atraída e repelida por ele. Era um narcisista pavorosamente injustificável e tão cheio de opiniões iconoclastas e entusiasmos territorialistas que não havia um jantar, sempre lotado com os Grandes e os Bons, em que alguém pudesse escapar de sua crescente presença bárdica. Claro que não conseguia olhar para ele sem pensar na minha pobre e infeliz mãe.

Apesar do fato de termos sido tão intimamente ligados, demorou um total de trinta anos para nós nos falarmos com algo mais do que a cortesia superficial. Ele tinha então 62 anos e, embora fosse mais conhecido por seus romances — o Amersham Satyricon fora um enorme best-seller —, continuava sendo comumente chamado de "o poeta John Slater". O que era exatamente como parecia: um tanto selvagem e a pele queimada pelo vento, como se tivesse acabado de retornar de uma caminhada pelos pântanos ou seguido o caminho de Basho até Ogaki.

Slater parece ter cultivado fortemente o lado social da literatura, e era raro um poeta ou romancista inglês a quem ele não pudesse chamar de seu amigo, ou a quem não tivesse, em algum momento, feito um favor. O grupo da Faber ele cultivava particularmente, e foi num jantar da Faber, na residência de Charles Monteith, que finalmente viemos a falar um com o outro. Salvo nossa conversa, não me lembro de muita coisa da noite, exceto que Robert Lowell — o convidado de honra — inadvertidamente revelara que não sabia quem era Slater. Foi por isso, pode-se supor, que Slater resolveu virar-se e falar comigo de modo tão insistente, chamando-me de "Micks", um apelido de minha família e de todo aquele tempo perdido em Allenhurst em High Wycombe.

O que ele tinha a dizer não era nem um pouco pessoal, mas seu uso do apelido já me comovera, e sua voz, talvez em conseqüência do pouco-caso por sua vida manifestado pelo famoso autor americano, adotou um tom saudoso, elegíaco, que achei inesperadamente tocante. Pela primeira vez em anos, olhei-o atentamente: o rosto era balofo, sua cor, incomum, um pouco cinzenta. Quando começou a falar sobre visitar novamente a Malásia, um país onde grande parte de Dewsong e seus sucessores tiveram suas raízes, foi difícil não imaginar que ele poderia estar pondo em ordem sua vida.

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