sábado, 13 de agosto de 2011

A MARCHA

E.L. Doctorow

american civil war

Um trecho:

"Assim fenecem os louros", Sherman pensou. "O que dirá Stanton: que deixei uma força confederada de 10 mil homens escapar para a Carolina do Sul? A capacidade humana de gratidão é limitada. Dentro da gratidão está a inveja. Dentro da inveja está a indiferença de um mundo insensível." A carruagem do secretário rodando até parar na porte cochère, a guarda de honra apresentou armas. Stanton só era segundo em autoridade ao presidente, mas aos olhos de Sherman o homem que desembarcava era uma figura portentosa cujo rosto macio, com suas bochechas rechonchudas, traía uma constituição que não sobreviveria a um dia de marcha.

- General - disse ele, e estendeu a Sherman uma mão frouxa. Aquilo concluiu as amenidades. Stanton começou a falar antes mesmo que chegassem à porta. Tinha muita coisa na cabeça. Sua barba bifurcada dura e rosada subia e descia com suas palavras. Sherman, fascinado com o movimento da barba, perdeu uma boa parte do discurso. Algo sobre como os negros haviam sido tratados. Então era isso.

- Gostaria de encontrar-me com seus oficiais generais - disse Stanton.

No jantar, Sherman apresentou seus comandantes de ala e de corpos. Eram uma visão imponente, paramentados com suas espadas cerimoniais, luvas e faixa na cintura. Mas ficaram sentados rigidamente como escolares, enquanto Stanton caminhava ao redor da mesa, como se estivesse dando uma aula.

- Não estou seguro, senhores, da conduta adequada dos seus exércitos em relação aos escravos libertos - disse. - Meu entendimento é que eles foram desencorajados de acompanhar as forças, que foram mandados de volta para seus patrões, ou deixados como presa para as guerrilhas.

- Os homens olharam para Sherman desabado em sua cadeira com um severo franzido na testa.

- Sr. Secretário - Sherman disse -, como espera que eu marche com 60 mil combatentes através de território inimigo com o peso da população escrava inteira da Geórgia em suas costas? A verdade é que os negrinhos parecem estar aqui, como poderá ver se olhar através da janela.

- Recusou-se a alistá-los no seu exército a não ser como trabalhadores em pequenas tarefas.

- Como trabalhadores é a melhor maneira de serem usados.

- Existe um relato de um incidente em Ebeneezer Creek, não é verdade? O seu general Davis, que retirou a ponte e deixou centenas para trás para morrerem. Alguns se afogaram, alguns foram chacinados por guerrilheiros. Onde está ele? Por que não está aqui?

- Está de serviço. Vou mandar convocá-lo.

- Quero ouvir dele mesmo a sua explicação.

- E ficará satisfeito com a necessidade militar da ação. De manhã a cavalaria teve de ser trazida para a parada.

O secretário ficou com a barriga apertada contra o gradil de ferro da sacada dos apartamentos de Sherman e observou, sem sorrir, enquanto os cavalarianos desfilavam na rua abaixo. Kil Kilpatrick vinha montado à sua frente, um Belo Brummel em sua faixa e alamares dourados, espiando debaixo do seu chapéu emplumado com um sorriso oblíquo, a silhueta franzina parecendo impor-se com alguma insolência, Sherman pensou - ou era sua pequena corcunda que transmitia essa atitude? "Kil é um tolo imprudente, gosta demais da guerra, acampa na alcova das mulheres, mas eu não o trocaria por nada."

No terceiro dia da visita, Sherman se perguntou quanto tempo mais ele conseguiria manter a sua paciência. O secretário não falava, fulminava. Era como uma criança mimada e precisava sempre de alguma coisa - uma bebida, um saco de água quente, um telegrafista. Por trás de tudo que o secretário dizia ou fazia havia um desejo de atenção. Sherman quisera o algodão capturado para o tesouro do exército. Stanton deu uma contra-ordem e o passou para o Tesouro. Tinha opiniões firmes sobre quem deveria guarnecer a cidade. Presumia aconselhar Sherman em questões estritamente militares.

E então veio o seu pedido para encontrar-se com alguns anciões negros. Ficou impaciente até que eles foram arrebanhados das igrejas negras. Quando se reuniram na sala de estar, perguntou-lhes o que entendiam por escravidão.

Os negros olharam uns para os outros e sorriram.

- Escravidão é receber por um poder irresistível o trabalho de outro homem e não por seu consentimento - um deles disse. Os outros concordaram com um aceno de cabeça.

- E o que - disse Stanton - vocês entendem da liberdade que foi dada pela proclamação do presidente Lincoln?

- A liberdade prometida pela proclamação está nos livrando do jugo da servidão e nos colocando onde podemos colher os frutos de nosso próprio trabalho, cuidar de nós mesmos e ajudar o governo a manter a nossa liberdade.

Sherman escondeu seu espanto diante do fato de como eram articulados aqueles negros. Naquele momento, Stanton virou-se para ele.

- General - disse -, agora vou conferir com estes homens libertados os sentimentos da gente negra em relação ao senhor. Se incomodaria de deixar o recinto por um momento?

Sherman ficou lívido. Caminhou pelo corredor, resmungando consigo mesmo. "Catequizar estes negros em relação ao meu caráter! Como estariam eles aqui não fosse por mim? Dez mil são livres e alimentados e vestidos por minhas ordens! Que não estejam lutando tem a ver com meu julgamento militar. Nem tenho o lazer para treiná-los. Marchei um exército intacto por mais de 600 quilômetros. Arranquei as ferrovias dos rebeldes. Queimei suas cidades, suas forjas, seus arsenais, suas oficinas mecânicas, seus moinhos de algodão. Comi suas colheitas, consumi seu gado e me apropriei de 10 mil dos seus cavalos e mulas. Eles foram devastados e desprovidos, e ainda que nenhuma outra batalha seja travada suas forças devem fenecer e morrer de desgaste. E isso não é o suficiente para o secretário de Guerra. Preciso me rebaixar junto aos escravos. Que se dane este Stanton - prestei o juramento de destruir a insurreição traiçoeira e preservar a União. É tudo. E basta."

Sherman ficou longe de abrandar ao saber que era tido em alta conta pelos anciões negros. Tarde naquela noite ele chamou Morrison. O sujeito estava dormindo.

- Sua pena, major. Escreva aí. Ordem de Campanha seja lá qual for.

- Seria a número 15, senhor.

- Número 15 - ele disse. - As Ilhas Marítimas do sul de Charleston e os acres de plantações abandonadas ao longo dos rios por 50 quilômetros para o interior da Carolina do Sul, e John's na Flórida, são reservados para o reassentamento dos negros. Anotou isso? Reassentamento dos negros. Todo negro livre chefe de família terá direito a um título de 15 hectares de terra cultivável. Sim, e as sementes e o equipamento para a lavoura. Todos os limites serão determinados e os títulos de posse emitidos por um oficial general do exército dos Estados Unidos na condição de - pode chamá-lo - Inspetor dos Reassentamentos e Plantações. E prepare o documento para minha assinatura, com uma cópia para o Sr. Stanton.

"Não sou um abolicionista", Sherman pensou. "Mas com este engodo eu calo a boca de Edwin Stanton e libero os negros, que ficarão aqui para plantar seus 15 hectares, e que Deus os ajude."

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