terça-feira, 7 de junho de 2011

HERÓIS DEMAIS

Laura Restrepo

guerra colonial  guerrilheiro morto

Um trecho:

— Preciso saber como foi — Mateo diz à sua mãe.
— O lance obscuro, quero saber exatamente como foi.
— Já te contei mil vezes — ela responde.
O próprio Mateo o tinha batizado assim, o lance obscuro, porque o que aconteceu naquela vez foi nocivo, mas também porque estava sepultado sob uma montanha de meias verdades. O pior de tudo era sua falta de lembranças; aquilo tinha acontecido quando ele era pequeno demais para fixar na memória. Bengaladas de cego. Era uma expressão que tinha ouvido por aí. Ele se sentia assim, dando bengaladas de cego em meio a uma história que não compreendia, mas de que fazia parte e que o prendia como uma rede.
— Vamos, Lolé — diz Mateo, suavizando a voz e chamando-a assim, Lolé, como quando era pequeno. Agora prefere chamá-la por seu nome, Lorenza, e quando se irrita com ela a chama de mãe.

— Vamos, Lolé, me conte de novo. Vamos começar pelo negócio do parque.
— Você tinha dois anos e meio. Era uma quinta?feira, de tarde. Nós três estávamos em Bogotá, no parque da Independência.
— E ele usava um suéter grosso de lã.
— Pode ser.
— Vi nas fotos que ele usava suéteres grossos de lã.
— Suéteres não, pulôveres.
— Pulôveres? O que são?
— Suéteres. É que ele dizia assim, pulôver. Nós, colombianos, dizemos suéter. Os argentinos dizem pulôver. Ridículo: em inglês são as duas coisas.
— O que eu quero saber é se também nessa tarde, no parque, ele estava com um pulôver grosso de lã.
— Sei lá. O que eu me lembro mesmo é que andava com o cabelo comprido. Na Argentina tinha que andar com ele curto, a ditadura não tolerava cabeludos. Mas deixou crescer ao chegar à Colômbia. Se quer saber como era teu pai, Mateo, dê uma olhada no espelho e se veja com uns dez anos mais. Ramón era assim naquele tempo.
— Não é verdade, eu não tenho os ombros largos. Meu tio Patrick me contou que Ramón tinha os ombros largos.
— Logo você vai ter também.
— E aquela tarde no parque?
— Estamos passeando, Ramón e eu, e levamos você pela mão. O céu é de um azul hortênsia, como são os céus de Bogotá quando…
— Não quero saber como são os céus de Bogotá — diz Mateo. — Quero entender o que aconteceu.
Às vezes Lorenza diz ao filho que o mais horroroso do lance obscuro é que aconteceu exatamente quando o horror estava para terminar. A ditadura argentina ia ficando para trás, e Ramón e ela tinham sobrevivido à clandestinidade. Depois de cinco anos militando juntos na resistência, tinham se afastado do partido e abandonado o país, desconcertados como monges que saíram do mosteiro e enfiaram o nariz no mundo lá fora. Para Lorenza, que era colombiana, a mudança não havia sido tão difícil; no fim das contas a volta a Bogotá tinha permitido que ela estivesse de novo com sua gente, num mundo conhecido em que se reintegrou sem muito drama. Ramón, em troca, sendo argentino, ficou flutuando no ar. Acabou por detestar tudo o que o rodeava, achou a família dela detestavelmente burguesa e começou a ver a própria Lorenza como um ser desconhecido que pouco tinha a ver com a mulher por quem havia se apaixonado em Buenos Aires. Uma vez quebrada a cumplicidade que os unira durante a clandestinidade, tinham se transformado em dois estranhos.
— Em Bogotá teu pai se tornou invisível pra mim — Lorenza confessa ao filho.
— Como invisível? Ninguém fica invisível.
— Talvez eu andasse ocupada demais com você, com o trabalho, com a família, vai ver comigo mesma. É, essas coisas costumam acontecer com pessoas muito unidas em tempos de perigo. O perigo passa, aí descobrem que só isso as unia. A verdade é que já não achava lugar pra teu pai. Imagina um casaco muito pesado em pleno verão.
— Um pulôver de lã em pleno verão.
— Você não sabe o que fazer com isso, não pertence a esse momento, nem a esse lugar. E Ramón também não ajudava. Começou a se comportar de uma maneira, digamos, esquisita. Não conseguia entender o que era a vida fora do partido. Bem, era mais sério ainda, acho que não conseguia entender como se vive sem a ditadura, sem ter um inimigo pela frente a quem você deve destruir pra que não te destrua. Tudo isso fez com que a convivência se tornasse um mal?estar permanente, e nos separamos.
— Pare, Lorenza. Nos separamos? Você diz nos separamos e fim de papo? Quem se separou? De quem foi a ideia da separação?
— Minha. (...)

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