Neill Cameron.
Um dia ideal para os peixes-banana e livros e cinema e gibis e nus e ataxia espinocerebelar e 𓋹
domingo, 28 de março de 2010
0S 4 FANTÁSTICOS
Belas capas em espanhol da família de aventureiros. Atualmente estou lendo a fase de John Byrne à frente da revista da família de aventureiros. Byrne conseguiu captar a essência do grupo: eles não são simplesmente super-hérois. Mais que isso, são aventureiros à moda pulp, exploradores com aventuras com mais que um pé na boa ficção científica. Essas capas traduzem bem essa atmosfera.
Enfim: Sempre gostei mais do título ‘Os 4 fantásticos’ do que ‘Quarteto fantástico’.
CLASSIFICADOS
Quarentão romântico. Situação financeira boa, artista de inteligência aguçada, magro, cabelos e barba ruivos (rala) pretendendo morar em Hollywood para dirigir filmes daqui a cinco ou seis anos.
Apaixonado, bem-dotado, procura uma companheira inteligente, careta, trabalhadora, sedutora, sem preconceitos, adulta intelectualmente e com vivência do mundo contemporâneo. Não importa que tenha filhos, pois serão meus também. Tenho de vez em quando uma cruz (+) na glicofita e saúde quase perfeita. Ansioso para nessa idade encontrar uma companheira para vivermos juntos e felizes.
Espero resposta pela Caixa Postal m. 743.
Raul Seixas (O Baú do Raul)
sábado, 27 de março de 2010
sexta-feira, 26 de março de 2010
quinta-feira, 25 de março de 2010
quarta-feira, 24 de março de 2010
terça-feira, 23 de março de 2010
A Máscara
Guy de Maupassant
Havia naquela noite um baile à fantasia no Elisée Montmartre. Era por ocasião da mi-careme, e, como a água através da comporta de uma represa, a multidão despejava-se no corredor iluminado que leva ao salão de baile. O irresistível apelo da orquestra, estrondeando como uma tempestade musical, atravessava as paredes e o teto, espalhava-se pelo bairro e ia despertar, nas ruas e a té no fundo das casas vizinhas, aquele invencível desejo de saltar, de aquecer-se e divertir-se que dormita no íntimo do animal humano.
E os freqüentadores da festa também vinham dos quatro cantos de Paris, pessoas de todas as classes sociais, amantes de diversões barulhentas, um tanto quanto licenciosas, tocadas de libertinagem. Eram empregados, cáftens, mulheres alegres, que conheciam toda espécie de lençóis, do mais grosseiro algodão à mais fina batista, mulheres ricas, velhas e cheias de diamantes, e mulheres pobres, de dezesseis anos, desejosas de divertir-se, de entregar-se a homens, de gastar dinheiro. Elegantes casacas negras à cata de carne moça, de primícias defloradas, porém saborosas, erravam por entre aquela multidão aquecida, procuravam, pareciam farejar, enquanto os mascarados eram impelidos, sobretudo, pelo desejo de divertir-se. Quartetos famosos de dançarinos já tinham reunido em torno das suas piruetas um largo círculo de assistentes. Aquela cerca ondulante, aquela massa buliçosa de mulheres e de homens, que rodeava os quatro dançarinos, torcia-se como uma serpente, ora se aproximando, ora se afastando, de acordo com os deslocamentos operados pelos artistas. As duas mulheres, cujas coxas pareciam ligadas ao corpo por molas de borracha, moviam as pernas com incrí vel agilidade. Atiravam-nas para cima com tanta violência que pareciam voar em direção às nuvens, depois subitamente as afastavam como se tivessem sido rasgadas até a metade do ventre e, fazendo-as deslizar, uma para a frente, a outra para trás, tocavam o solo com o corpo com um movimento rápido, cômico e repulsivo.
Os dois cavalheiros pulavam, moviam agilmente os pés, agitavam-se, sacudindo os braços levantados como cotos de asas sem penas e, sob as máscaras, percebia-se a sua respiração ofegante.
Um destes últimos, que participava da mais reputada das quadrilhas como substituto de uma celebridade ausente, o belo Songe au Gosse, e que se esforçava para acompanhar a infatigável Arête-de-Vau, executava figuras curiosas, que despertavam a alegria e o sarcasmo do público.
Era magro, vestia-se como um janota e usava uma bonita máscara envernizada, uma máscara de bigodes louros, frisados, e toucada por uma peruca anelada.
Lembrava uma figura de cera do Museu Grévin, estranha e fantástica caricatura de página de figurino, e dançava com esforçada compenetração, porém desajeitadamente, com entusiasmo grotesco. Parecia enferrujado ao lado dos outros, ao tentar imitar-lhes as piruetas; parecia tolhido, pesado como um cão fraldeiro que brincasse com galgos. Encorajavam-no alguns aplausos zombeteiros. E, ébrio de entusiasmo, ele sacudia as pernas com tal frenesi que, de repente, levado por um impulso violento, foi dar de cabeça contra a muralha dos assistentes, que se entreabriu para deixá-lo passar e depois tornou a fechar-se em torno daquele corpo inerte, estendido de borco, o dançarino inanimado.
Alguns homens o levantaram, carregararn-no. Alguém gritou: “Um médico!” Apresentou-se um cavalheiro ainda jovem, muito elegante, de casaca negra com grandes pérolas na camisa branca. “Sou professor da faculdade”, declarou, com entonação modesta. Deixaram-no passar e ele se dirigiu a uma saleta cheia de caixas de documentos, como o escritório de um procurador, onde o dançarino, ainda desacordado, fora estendido sobre cadeiras. Antes de tudo o médico procurou retirar a máscara, e percebeu que fora fixada de maneira embaraçosa, com uma porção de pequenos fios de metal; estes a atavam habilmente às bordas da peruca, e encerravam a cabeça inteira numa sólida ligadura, cujo segredo seria preciso conhecer. O próprio pescoço estava envolto numa pele artificial que prolongava o queixo, e aquela pele de luva, pintada da cor da carne, prendia-se na gola da camisa.
Foi preciso cortar aquilo tudo com grandes tesouras; e depois de ter feito no surpreendente conjunto um talho que ia do ombro à têmpora, o médico entreabriu a carapaça e descobriu um rosto gasto e envelhecido, magro, pálido e enrrugado. Tamanha foi a surpresa dos que tinham trazido o jovem mascarado de cabelos negros, que ninguém se riu nem pronunciou uma única palavra.
Contemplavam o triste rosto que descansava sobre a cadeira, de olhos fechados, cabelos brancos, alguns longos, caindo da fronte sobre o rosto, e curtos os que lhe guarneciam as faces e o queixo; e, ao lado daquela lamentável cabeça, a pequena e bonita máscara envernizada, a máscara jovem, que continuava a sorrir.
O desconhecido voltou a si depois de ter permanecido longamente desacordado; parecia, porém, tão fraco, tão doente, que o médico receou alguma complicação perigosa.
- Onde mora o senhor? – indagou.
O velho dançarino pareceu revolver a memória, e depois se lembrou e deu o nome de uma rua que nenhum dos presentes conhecia. Foi preciso pedir-lhe algumas explicações sobre o bairro. Forneceu-as com enorme dificuldade, com uma lentidão e uma incerteza que bem traiam a confusão da sua mente.
O médico declarou:
- Eu mesmo irei levá-lo.
Acometera-o a curiosidade de saber quem seria aquele estranho bailarino, de verificar onde morava aquele saltador fenômeno.
E pouco depois um carro de praça levou ambos ao outro lado das colinas de Montmartre.
Desceram na frente de um prédio alto, de aspecto pobre, com urna escada viscosa e construído entre dois terrenos baldios, um desses prédios eternamente inacabados, crivados de janelas, nichos imundos que abrigam uma multidão de seres maltrapilhos e miseráveis.
Segurando-se fortemente ao corrimão, um rolo de madeira que girava e no qual a mão ficava grudada, amparou até o quarto andar o ancião aturdido, que começava a recuperar as forças.
Abriu-se a porta à qual bateram e apareceu uma mulher, também velha, asseada, com uma touca de noite muito branca emoldurando-lhe a cabeça de ossos fortes e traços acentuados, um desses rostos grandes, rudes e bons, que freqüentemente possuem as fiéis e ativas esposas de operários. Exclamou:
- Meu Deus! O que teve ele?
Explicado o incidente com vinte palavras, ela se tranqüilizou e tranqüilizou o próprio médico, contando que aquela mesma aventura já acontecera antes, muitas vezes.
- É preciso deitá-lo, doutor, mais nada; ele dormirá e amanhã acordará outro.
O médico observou:
- Mas ele mal pode falar!
- Oh! Não é nada, um pouco de bebida, mais nada. Ele não jantou para sentir-se leve, e depois bebeu dois copos de absinto para animar-se. O senhor vê, o absinto lhe ativa as pernas, mas lhe tira as idéias e as palavras. Não é adequado à sua idade dançar como faz. Não, não há mesmo esperança de que ele tome juízo algum dia!
Surpreso, o médico insistiu:
Mas por que dança ele desse jeito, velho como está? Ela ergueu os ombros, vermelha sob a ação da cólera que pouco a pouco a excitava:
- Ah, sim, por quê? Para falar a verdade, é para que o imaginem moço embaixo da máscara, para que as mulheres ainda o julguem um galanteador e lhe digam libertinagens ao ouvido, para esfregar-se na pele dessas mulheres, peles sujas de perfumes, de pós e cremes … Ah! É incrível! Imagine, doutor, a vida que tenho levado durante os quarenta anos que isto vai durando… Primeiro, porém, precisamos deitá-lo, para que ele não se sinta mal. Não se importa de judar-me? Quando fica neste estado, é muito difícil para mim lidar com ele sozinha.
O velho estava sentado na cama, com jeito de bêbedo, os longos cabelos brancos caídos no rosto.
Sua companheira observava-o com olhos enternecidos e furiosos. Continuou:
- Repare como tem uma bonita cabeça para a idade; não precisava disfarçar-se de malandro para que o supusessem moço. É uma lástima! Não é verdade que ele tem uma bela cabeça, doutor? Espere, vou mostrá-la ao senhor antes que ele se deite.
- Encaminhou-se para uma mesa sobre a qual estavam colocados a bacia de mãos, o jarro de água, o sabão, o pente e a escova. Apanhou a escova, voltou para junto da cama e, depois de lidar por uns momentos com a cabeleira embaraçada do bêbedo, deu-lhe à cabeça a aparência de um modelo de pintor, com grandes madeixas caídas no pescoço. Recuou a fim de contemplá-lo e observou:
- Não é verdade que está bem para a sua idade?
- Muito bem – concordou o médico, que começava a divertir-se bastante.
- E se o senhor o tivesse conhecido quando tinha vinte e cinco anos! – exclamou ela. – Mas é preciso pô-lo na cama; sem isso, os seus absintos lhe ficariam dando voltas na barriga. Olhe, doutor, quer puxar a manga? .. Mais em cima … Assim … Bem … Agora a calça … Espere, vou tirar-lhe os sapatos … Está bem. Agora, conserve-o de pé para que eu arrume a cama. .. Pronto… Vamos deitá-lo. .. Se pensa que ele se afastará daqui a pouco para ceder-me lugar, o senhor está enganado. Terei que arranjar um cantinho, seja onde for. Isso não o preocupa. Ah, que estróina!
Ao sentir que estava estendido debaixo das cobertas, o velho fechou os olhos, tornou a abri-los e novamente os fechou, enquanto uma enérgica determinação de dormir se lhe refletia no rosto satisfeito.
O médico indagou, depois de observá-lo com acrescido interesse:
- Então, ele gosta de fingir-se de moço nos bailes à fantasia?
- Em todos, doutor, e só volta pela manhã, num estado que ninguém pode imaginar. Veja, é a tristeza que o leva aos salões, e que o obriga a colocar um rosto de papelão sobre o próprio. Sim, a tristeza de não ser mais o que já foi, e também de não obter mais o mesmo sucesso que já obteve!
O velho dormia, agora, e começava a roncar. Ela contemplou-o com ar apiedado e prosseguiu:
- Ah! Saiba o senhor que este homem já fez muito sucesso! Muito mais do que seria de supor, mais do que senhores elegantes da sociedade, mais do que todos os tenores e todos os generais.
Realmente? Que fazia ele?
- Oh! O senhor vai ficar surpreendido, no começo, pois não o conheceu nos seus belos tempos. Quando o encontrei, também num baile, porque ele sempre os freqüentou, fiquei presa, ao vê-lo, presa como um peixe no anzol. Ele era bonito, doutor, bonito a ponto de fazer vir lágrimas aos olhos quando o fitávamos, com seus cabelos negros como um corvo, crespos, e uns olhos negros do tamanho de janelas. Ah, sim, era um belo rapaz. Nessa noite ele me levou consigo, e não mais o deixei, nunca, nem por um só dia, apcsar de tudo! Oh! Fez-me comer fogo!
O médico indagou: – Casaram-se?
Ela respondeu, com simplicidade:
- Sim … Sem isso ele me teria largado, como largou as outras. Fui sua mulher e sua criada, tudo, tudo quanto quis … e fez-me chorar … lágrimas que não lhe deixei ver! Pois me descrevia as suas aventuras … a mim … a mim … doutor, sem compreender o mal que me fazia ouvi-lo falar …
- Afinal, que profissão tinha?
- É verdade … Esqueci-me de contar. Era o primeiro ajudante de Martel, mas um primeiro ajudante como não houve outro igual. .. Um artista de dez francos a hora, em média …
- Martel? Quem é esse Martel? …
O cabeleireiro, doutor, o grande cabeleireiro da Ópera, de quem todas as atrizes eram freguesas. Sim, todas as atrizes, mesmo as mais emproadas, faziam questão de ser penteadas por Ambroise, e davam-lhe gratificações que o enriqueceram. Ah, doutor, todas as mulheres são iguais, sim, todas. Quando um homem lhes agrada, elas o tomam. É tão fácil. .. e causa tanta mágoa quando a gente sabe! Pois ele me contava tudo .. .” Não podia calar-se … Não, não podia. Essas coisas causam tanto prazer aos homens! Talvez mais ainda quando as contam do que quando as fazem …
“Quando o via regressar, à noite, um pouco pálido, com um jeito satisfeito, o olhar brilhante, dizia comigo mesma: “Mais uma. Tenho a certeza de que arranjou mais uma.” E sentia vontade de interrogá-lo, uma vontade que me dilacerava o coração, e também vontade de nada saber, de impedir que falasse quando a isso se dispusesse. E nos entreolhávamos.
“Sabia bem que ele não se calaria, que ia tocar no assunto. Sentia-o pelo seu jeito, pelo jeito risonho com que me dava a entender: “Tive uma boa, hoje, Madeleine”. Fingia nada ver, nada perceber; e punha a mesa; trazia a sopa; sentava-me à frente dele.
“Naqueles momentos, doutor, era como se esmagassem com uma pedra, no meu corpo, a minha amizade por ele. Doia, sim, e bastante. Mas ele não percebia, não sabia; tinha necessidade de contar aquilo a alguém, de gabar-se, de mostrar que era amado. .. E só a mim podia contar. .. O senhor compreende. .. Só a mim. ” Então … eu precisava escutá-lo e engolir aquilo como se fosse veneno.
“Ele começava a tomar a sopa e depois dizia: “- Mais uma, Madeleine.
“Eu pensava: “Pronto. Meu Deus, que homem! Por que fui encontrá-lo?
“E ele continuava: – Mais uma, e bem bonita! – Tratava-se de uma pequena do Vaudeville ou então de uma pequena das Varietés, ou também de alguma dessas senhoras do teatro, das mais importantes, das mais conhecidas. Dava-me seus nomes, descrevia-me seus móveis, e tudo, tudo, sim, tudo, senhor … Pormenores que me dilaceravam o coração. E ele insistia, e recomeçava a história, do começo ao fim, tão contente que eu fingia rir-me para que não se zangasse comigo.
“Talvez nem tudo fosse verdade! Gostava tanto de gabar-se que seria muito capaz de inventar coisas desse gênero! Mas também podia ser verdade! Nessas noites, ele se queixava de cansaço, queria deitar-se logo depois da ceia. Ceávamos às onze horas, pois nunca ele regressava mais cedo, por causa dos penteados dos saraus.
“Quando terminava de contar a sua aventura, fumava cigarros, passeava pelo quarto e era tão bonito, com seus bigodes e seus cabelos crespos, que eu ponderava: “É verdade, mesmo, o que me contou. Já que sou louca por esse homem, por que as outras também não se apaixonariam?” Ah! Muitas vezes tive vontade de chorar, de gritar, de fugir, de atirar-me pela janela, enquanto tirava a mesa e ele continuava a fumar. Bocejava, abrindo a boca para mostrar quão cansado estava, e dizia duas ou três vezes, antes de meter-se na cama: “Meu Deus, como vou dormir bem esta noite!”
“Não lhe guardo rancor, pois não sabia quanto me magoava. Não, não podia saber! Gostava de gabar-se das mulheres como um pavão que desdobra a cauda. Chegara ao ponto de achar que todas o olhavam e o desejavam.
“Foi duro para ele quando envelheceu.
“Oh, doutor, ao ver seu primeiro cabelo branco, senti uma emoção que me fez perder o fôlego, e depois uma alegria – uma alegria perversa, mas tão grande, tão grande!!! Disse comigo mesma: “É o fim … é o fim … ” Pareceu-me que iam tirar-me de uma prisão. Seria meu, só meu, quando as outras não o quisessem mais.
“Era de manhã, estávamos na cama. Ele ainda dormia, e me inclinava para despertá-lo, beijando-o, quando divisei nos seus cabelos, na têmpora, um fiozinho que brilhava como prata. Que surpresa! Não teria acreditado que aquilo fosse possível! Primeiro pensei em arrancá-lo, para que ele não o visse! Porém, examinando melhor, avistei outro, um pouco acima. Cabelos brancos! Ele ia ter cabelos brancos! Meu coração pulsava e eu transpirava; contudo, estava bem contente, no fundo!
“É feio pensar assim, mas tive prazer em cuidar da casa naquela manhã, antes de acordá-lo; e quando ele abriu os olhos espontaneamente, eu lhe disse:
“- Sabe o que descobri enquanto você dormia? “- Não.
“- Descobri que está com cabelos brancos.
“Ele teve um sobressalto de despeito, que o pôs sentado como se eu lhe tivesse feito cócegas, e observou, com uma expressão má:
“- Não é verdade!
“- Sim, na têmpora esquerda. São quatro. “Ele saltou da cama para correr ao espelho.
“Não encontrou os cabelos brancos. Então lhe mostrei o primeiro, aquele crespinho, mais embaixo. E comentei:
“- Não é de admirar, com a vida que você leva. Daqui a dois anos estará acabado.
“Pois bem, doutor, eu falava a verdade: ninguém o reconheceria dois anos depois. Como é possível um homem mudar tão depressa! Ainda era bonito, mas ia perdendo a frescura, e as mulheres já não o procuravam mais. Ah, que vida dura levei naqueles tempos! Bem boas ele me fez sofrer! Nada lhe agradava, absolutamente nada! Abandonou sua profissão para fabricar chapéus, e perdeu dinheiro. Depois quis ser ator e falhou, e em seguida começou a freqüentar bailes públicos. Afinal, teve o bom senso de guardar um pouco de dinheiro, com o qual vivemos. Dá, mas não é grande coisa! E dizer-se que houve um momento em que podia ser considerado quase rico!
“O senhor viu o que ele faz agora. É uma espécie de delírio que o possui. Precisa sentir-se jovem, precisa dançar com mulheres que cheirem a perfume e a brillhantina. Coitado do meu querido velho!”
Emocionada, prestes a chorar, ela contemplava o velho marido, que roncava. Depois, aproximando-se com passos cautelosos, beijou-lhe os cabelos. O médico levantara-se e preparava-se para retirar-se, não encontrando o que dizer ante aquele estranho caso.
Porém, ao vê-lo sair, ela indagou:
- Assim mesmo, não quer deixar o seu endereço? Se ele piorar, irei chamá-lo.
segunda-feira, 22 de março de 2010
domingo, 21 de março de 2010
LOBOS E CAPUZES VERMELHOS
José Marcelo
“Quanto mais doce a língua, mais afiados os dentes.”
Charles Perrault
O Lobo a viu no instante em que ela entrou no bosque. Ele a desejou mais do que tudo e, com seu desejo, ele condenou-se.
Durante um tempo, o Lobo apenas acompanhou-a. Uma figura sorrateira por entre a densa vegetação, os olhos amarelos faiscando, o pelo eriçado, o desejo aumentando.
Então, ele a abordou. Suavemente.
— Olá, linda garotinha — disse o Lobo.
— Olá — respondeu ela.
— Não sente medo, andando sozinha pelo bosque?
— Por que sentiria? E meu nome não é garotinha, é Chapeuzinho Vermelho.
— Um nome apropriado.
— Isso não importa. Nomes nem sempre são apropriados, são apenas nomes. Agora tenho que ir.
— Por que a pressa?
— Vou para a casa da Vovó. Tenho que levar essa cesta para ela.
— Mas sua companhia me é agradável. Gostaria de conversar mais.
Chapeuzinho Vermelho olhou-o demoradamente, de um modo que deixou o Lobo inquieto. Chapeuzinho passou a língua pelos lábios e sorriu.
— Muito bem. Mas eu realmente não posso demorar muito. Vovó pode ficar preocupada.
— Sei que ela vai entender, quando você disser com quem estava.
—Sim.
Ela despiu-se do capuz e soltou os cabelos, macios, longos, claros como seus olhos. Olhos que eram verdes e azuis dependendo da luz.
A claridade de fim de tarde, filtrada por entre os galhos, era dourada e o cheiro da relva era fresco e macio.
O Lobo desviou os olhos, o coração acelerado. Foi Chapeuzinho quem primeiro falou:
— Nada a dizer?
— Como? — O Lobo parecia confuso. Piscou. Sorriu. — Sim, naturalmente. Não quer sentar-se?
Ela sentou-se e colocou a cesta de lado. O Lobo deitou-se ao seu lado e sorriu.
— Você é uma garotinha estranha.
— Não sou tão nova quanto aparento.
— Bem, qualquer pessoa teria medo em andar sozinha por esse bosque.
— Eu não. Sabe por quê?
— Não.
— Por que eu sei o que é a coisa mais perigosa do bosque, e também sei que ele não me feriria. Não aqui, não agora. Estou errada?
Um brilho de raiva passou pelos olhos do Lobo, mas tão rápido que provavelmente Chapeuzinho nem percebeu ou fingiu não perceber
— Não esteja tão certa.
— Mas eu estou.
O Lobo ergueu-se e sumiu por entre as folhagens. Era como se nunca estivesse estado ali. Mas ele ainda a observava, de algum lugar no bosque.
Chapeuzinho ergueu-se, arrumou o capuz, limpou a grama do vestido e pegou sua cesta; ela retomou sem caminho e, em nenhum momento, olhou para traz. O Lobo não percebeu que a mão que não segurava a cesta tremia levemente. O Lobo, então, teve uma idéia, e acelerou o passo. Chegaria primeiro à casa da Vovó.
A Vovó abriu a porta e morreu.
O Lobo não tinha tempo para sutilezas. Ele estava com pressa. Ele apoiou as patas sobre o peito da Vovó e começou a arrancar a pele e a carne da senhora. Uma enorme mancha vermelha como vinho antigo espalhou-se pelo assoalho e tornou-se preto no canto da sala. Ele arrancou o coração dela e colocou-o num prato sobre a mesa, recolheu um copo de sangue e colocou-o ao lado do prato.
Então limpou toda a sujeira, enfiou-se sob os lençóis na cama da Vovó.
E esperou. Não teve que esperar muito.
Logo ouviu Chapeuzinho Vermelho chamando.
— Entre — disse o Lobo, imitando a voz de uma velha senhora. — Entre, minha querida.
Chapeuzinho Vermelho abriu a porta, alegre, sorrindo, mas logo fez uma careta.
— Que cheiro estranho — disse ela.
— Não é nada. Não está com fome?
— Sim. Mas esse cheiro...
Chapeuzinho Vermelho largou a cesta no chão e disse:
— Para a senhora.
— Dispa-se.
— Sim, Vovó.
Ela obedeceu; tirou o capuz e o vestido, as sapatilhas e o pingente; novamente ela soltou os cabelos e agora seus olhos tinham uma tonalidade clara e suave.
— Queime suas roupas. — mandou o Lobo.
— Sim, Vovó. — Chapeuzinho jogou as roupas no fogo e ficou observando-as. O fogo dançava uma dança secreta.
— Agora, alimente-se. Você vai se sentir melhor.
— Sim, Vovó.
Ela sentou-se à mesa, comeu o coração de sua avó e bebeu o sangue.
— Agora, venha cá.
Ela caminhou até a cama, enfiou-se sob os lençóis e sentiu o pelo eriçado do Lobo. Ela aninhou-se junto a ele.
— Você não é minha avó — disse ela, calmamente.
— Não, não sou — respondeu o Lobo, desanimado. Ela era suave e macia como ele imaginara.
— Eu soube quando bebi o sangue. Pensei que fosse vinho, mas era sangue.
— Era.
— Tudo bem. Estava bom.
Ela passou a mão sobre o pelo do Lobo e fechou os olhos.
— Você me quer agora?
— Sim.
— Vai doer?
— Não muito.
— Eu confio em você — disse Chapeuzinho Vermelho e sorriu para o Lobo. — O que vem depois?
— Depois?
Ele não soube responder. Colocou carinhosamente a pata sobre ela, aproximou a boca da garganta dela e sentiu o cheiro dela. Ele lembrou-se de alguns tipos de flores que eram raras e desabrochavam apenas uma vez por ano; essas flores cheiravam assim. Como algo intocado e puro.
Na lareira, o fogo queimava as cinzas das roupas dela. Chapeuzinho Vermelho fechou os olhos. Na mesma hora a porta do guarda-roupas abriu-se e o corpo da Vovó, as entranhas penduradas e o rosto desfigurado numa expressão de surpresa e horror, parte da caveira aparecendo, apareceu como que para observar a cena com olhos esbugalhados.
— Que eu morrer, quero dizer. O que vem depois? — perguntou Chapeuzinho Vermelho.
— Não sei — teve que admitir o Lobo.
O Lobo beijou Chapeuzinho Vermelho primeiro, depois a matou rapidamente. Ficou com o focinho enfiado na ferida que lhe fizera na garganta, como se não quisesse mais sair de dentro dela.
Era alta madrugada e a lareira iluminava parcialmente o quarto. O Lobo estava sentado no chão, olhando pesarosamente para a cama. Chapeuzinho Vermelho, nua e morta, estava estendida sobre lençóis brancos manchados de sangue, os olhos fechados, calma como se estivesse dormindo. O Lobo não conseguira devorá-la. Mas por quê?, perguntava-se. Por quê? Ele não queria olhar para Chapeuzinho, mas não conseguia desviar os olhos.
— Por quê? — perguntava-se.
— Não é óbvio, animal estúpido? — disse a velha dentro do guarda-roupas. O Esforço de falar fizera escorrer sangue como baba de sua boca escancarada.
— Você deveria estar morta.
— Talvez. Mas minha neta não.
— Eu... sinto muito.
— Meio tarde para isso, não?
—Os mortos não deveriam falar.
— Não. Você está louco. É apenas isso.
— E o que importa?
— Você deve enterrá-la.
—
— Para que ela descanse em paz — insistiu a Vovó morta. — Você deve fazê-lo.
Com uma pá encontrada nos fundos e sob a lua cheia que era como um olho cheio de cicatrizes, ele cavou uma cova. Observado pelas criaturas do bosque, que se mantinham ocultas no escuro, pois ele era o Lobo, o ser mais perigoso do bosque, e todos o temiam, ele trouxe Chapeuzinho e colocou-a dentro da cova. Ele a cobriu de terra e voltou para dentro da cabana.
Sentou-se na cama, ergueu-se, pegou os lençóis e jogou-os no fogo da lareira; então fez uma tocha e começou a colocar fogo nos móveis e na madeira da casa.
Depois ficou observando o fogo erguer-se e consumir a casa rapidamente, como vermes na carne apodrecida.
Naquela noite, o Lobo subiu numa colina e uivou tristemente; mas dessa vez não era um lamento para a lua... Não, o lobo chorava por Chapeuzinho Vermelho.
Nessa noite, quando finalmente dormiu, o Lobo sonhou com seios cortados e flores brancas escurecendo rapidamente em um carmim que gotejava e gotejava. Ele andava por entre as flores e era como uma sombra maldita num lugar de luz e serenidade. Mas era uma paz falsa. Com seus sentidos aguçados ele podia perceber o mal, oculto nos cantos, entre as folhagens, na grama, nos espinhos que lhe arranhavam as patas. Ele exibiu os dentes, pontiagudos e a saliva acida. Começou a correr na direção do bosque e por um segundo viu uma mão acenando para ele, uma figura encapuzada (um capuz vermelho) ao longe. Então a figura desapareceu e ele duvidou que realmente a tivesse visto.
Ao amanhecer, ele voltou à casa da Vovó e lá havia apenas madeira queimada e cinzas, o esqueleto chamuscado de uma casa e nada mais. O Lobo deu a volta na casa e ficou diante da cova onde enterrara Chapeuzinho Vermelho. Os olhos dele estreitaram-se e ele recuou instintivamente. A cova fora violada, a terra revolvida. Ele farejou e escavou. Chapeuzinho Vermelho não estava lá.
Ele procurou pelo bosque e todos os habitantes da floresta, animais ou não, todos se esconderam. Então uma velha coruja aproximou-se e pousou num galho alto o suficiente para fugir se ele a atacasse e lhe contou o que acontecera.
— Foi tarde da noite — contou a Coruja. — Eu ouvi sons que não eram o da madeira crepitando no fogo ou mesmo carne velha cozinhando. Não. O fogo já se extinguira. Restara apenas uma fumaça de cheiro azedo subindo no ar. Era outro som. Como um eco de desespero. Era um cavar. Um cavar horrendo, cheio de angústia e terror. Não demorou e percebi de onde vinha. Vinha da cova de Chapeuzinho Vermelho. Seu tolo. Ela estava viva e tentava sair!
— Não. Impossível. Acha mesmo, Coruja, que não sei distinguir um corpo vivo de um morto?
— Sei que você bem o sabe, sim. Mas morta, eu lhe digo, ela não estava.
O Lobo estremeceu.
— Mas como é possível? — perguntou ele.
— E o que não é?
—
— Logo eu vi as pontas dos dedos de Chapeuzinho e o rosto dela e ela estava gritando e gritando e chorando. Ela arrastou-se para fora da cova, cuspindo terra, trêmula. Encolheu-se e ficou assim durante um tempo longo demais, não sei quanto. Então, ela ergueu-se e saiu da clareira e entrou no bosque. Eu a segui. Ela cambaleava entre as raízes até alcançar a trilha. Parecia desorientada. Uma figura estranha, coberta de terra e sangue seco. Ela caminhou até a estrada, onde caiu e ficou lá estendida, os olhos fitando vazios o céu, enquanto ao longe um lobo uivava... até que um carro passou e a levou.
O Lobo nada disse. A imagem de Chapeuzinho lutando para sair da cova o perseguia.
Mais tarde, quando a bala dos homens entrasse em sua carne e ele caísse no rio gelado, sendo arrastado pela forte correnteza, enquanto as balas ainda lhe eram disparadas, ele se lembraria do dia em que, depois de muitos anos, ele decidira novamente vestir a roupa e a aparência dos homens para ir à Vila dos Cantos à procura da garota que ele assassinara.
O Lobo chegou à vila ao amanhecer de um dia cheio de nuvens carregadas e chuva fina e fria. Encolhido dentro de um sobretudo surrado e fora de moda, ele atravessou a pequena ponte que era a entrada para a vila. Peixes nadavam e pulavam na água clara. Do outro lado da ponte, havia uma praça e na praça, uma igreja, bancos, árvores e um pub. O nome do pub era “A Toca” e o Lobo achou aquilo um bom presságio. Entrou no pub e o mesmo estava quase vazio. O Lobo foi até o balcão e um homem muito magro e muito alto perguntou-lhe o que queria.
— Algo para esquentar — disse o Lobo.
O homem assentiu e serviu-lhe uma dose de algo que o Lobo achou ácido demais, mas que realmente espantou um pouco do frio. Ele olhou ao redor. Dois homens jogavam xadrez de modo demasiadamente lento, como duas estátuas sem a menor vontade de mover-se. Uma mulher de roupas e gestos vulgares olhava triste um quadro na parede; no quadro, uma casa feita de doces. A mulher chorava silenciosamente.
O homem alto disse alguma coisa que ele não entendeu.
— Como?
— Perguntei se está só de passagem, veio visitar alguém ou o quê? — perguntou o homem, educadamente.
O Lobo pensou em dizer que estava só de passagem, mas pensou melhor:
— Vim visitar alguém, mas estou com um problema. Não sei onde essa pessoa mora. Talvez possa me ajudar.
— Como assim? Vem visitar uma pessoa e não sabe onde ela mora?
— Faz muito tempo que estive aqui — disse o Lobo, refletindo que isso era verdade.
— Muito bem — disse o homem alto, meio desconfiado. — Quem?
— Chapeuzinho Vermelho.
A expressão de desconfiança do homem mudou para pesar.
— Então você não sabe?
— O quê?
— Algo horrível aconteceu a ela.
— O que aconteceu?
— Ela foi atacada por ladrões quando foi visitar a avó dela. Os malditos a largaram no meio da estrada, em estado deplorável. E queimaram a casa da avó da menina. Pode acreditar? Na minha opinião, deviam ser alguns desses loucos que iam visitar a velha às vezes. Dizem que ela era bruxa, então se morreu queimada, foi algo bem merecido. Porém, Chapeuzinho não tinha que ver isso. Mas você é o quê? Algum parente?
— Isso. Um parente.
O homem alto assentiu, ensinou o caminho para o Lobo e disse que não precisava pagar a dose, é por conta da casa. O Lobo agradeceu e virou-se. Quase bateu de cara com a mulher que antes olhara o quadro. Os olhos dela ainda estavam úmidos.
— Eu o conheço? — perguntou ela. Ela o olhava atentamente, tentando lembrar de onde conhecia aquele homem de roupa surrada e modos estranhos. Sim, ele não era realmente estranho? O jeito como ele olhava tudo, como caminhava. Como se não se lembrasse mais o modo certo de fazê-lo.
— Não creio — respondeu ele, e saiu pela porta.
A casa de Chapeuzinho Vermelho ficava no fim de uma rua que subia num declive quase totalmente vertical, mas o Lobo, acostumado a correr no bosque por longas distâncias, não teve dificuldade em alcançá-la. Ele não bateu na porta imediatamente. Ouviu um rosnar e quando olhou, viu um enorme cachorro preto, o pelo curto e liso, latindo para ele. O Lobo exibiu os dentes e deixou o cachorro vislumbrar seus olhos amarelos. Foi o bastante para que o cachorro saísse correndo.
Quando tornou a olhar para a porta, levou um susto. Uma mulher estava parada na porta, olhando-o curiosa. A mãe de Chapeuzinho, adivinhou o Lobo.
— Posso ajudá-lo, senhor? — perguntou ela.
— Sim, quer dizer, estou procurando Chapeuzinho Vermelho.
A mulher olhou-o.
— E quem é o senhor? — perguntou ela.
— Mamãe?
Ele reconheceu a voz de Chapeuzinho e estremeceu. A chuva batia em seu chapéu e ele encolheu-se mais ainda.
— Entre — disse a mulher, e subiu os degraus que levavam ao andar superior.
O Lobo entrou e era uma sala espaçosa e confortável. Um degrau a separava da sala de jantar, onde havia uma enorme mesa de carvalho. Sobre a mesa, uma espingarda. O Lobo andou até a arma e pegou-a.
Estava examinando-a quando ouviu uma voz ríspida às suas costas:
— Solte-a já.
Ele virou-se. Um homem estava parado na porta, segurando uma caixa de balas e o olhava carrancudo. O Lobo soltou a arma.
— Desculpe. Eu não pretendia... Estava apenas admirando-a.
O homem passou por ele, colocou a caixa de balas sobre a mesa, ao lado da espingarda, e perguntou:
— Quem é o senhor?
— Amigo de Chapeuzinho.
— Estranho. Eu nunca o vi. Qual o seu nome?
— Wolfson.
— Nome engraçado.
— Nomes são apenas nomes.
— É verdade.
— Sua filha me disse isso.
— Como sabe que ela é minha filha?
— Ela o descreveu, certa vez.
— De onde a conhece?
— Ela disse para você subir — disse a mãe de Chapeuzinho, parada na escada.
Ele subiu. O quarto dela era o segundo no corredor. Chapeuzinho Vermelho estava no peitoril da janela, os joelhos apoiando o queixo, e olhava para a rua. A mãe de Chapeuzinho fechou a porta e o Lobo ouviu-a afastar-se.
— Não achei que o veria de novo — disse ela.
— Pensei que estivesse morta.
Ela virou-se para ele. Ainda estava pálida. Não havia nenhuma cicatriz em seu pescoço, apenas em seus olhos. Ela olhou-o com tristeza.
— Você cuidou para que isso fosse verdade, não foi?
Ambos falavam baixo, inconscientemente.
— Sim — respondeu ele, encabulado.
— Mas eu não morro tão fácil. Como pode ver, eu cicatrizo rapidamente também. Mas acordar dentro de uma sepultura, bem, não é fácil para uma garota de dezesseis anos. Não é fácil para ninguém, de qualquer modo.
— Sinto muito.
— Eu sei que sente, lobinho.
Ele estremeceu.
— Infelizmente eu não morri. Alguma coisa que minha avó fez comigo, imagino. Desde que eu era pequena, meus machucados, por mais que parecessem sérios, saravam depressa. Ela era uma bruxa, você deve saber. A minha avó.
— Ouvi algo.
— Você veio me matar?
Ele demorou a responder.
— Não sei — disse, finalmente.
— Não sabe ou não pode?
Ela desceu da janela, sentou-se na cama e olhou para o espelho no outro lado do quarto.
— Você... — começou a dizer o Lobo.
— Eu queria morrer, sabe. Por isso eu fiz tudo que me mandou fazer na casa da minha avó.
— Mas por quê?
— Por que eu queria morrer? Esqueça isso.
— Foi sua avó que me disse para enterrá-la. Levei um susto danado. Ela estava morta e falando comigo.
— Você deve ter imaginado.
— Talvez — disse ele, mas duvidava.
Os dois ficaram em silêncio. O Lobo andou até a janela. Depois virou-se e examinou o quarto atentamente. Havia um calendário perto do espelho; uma imagem de um lago profundo e a data: 18 de novembro de 1917.
— Não imaginei que tivesse passado tantos anos — Ele se referia ao tempo em que abandonara a humanidade e se tornara lobo. Ele a olhou. — Como me reconheceu?
— Lobo em pele de homem. Eu o reconheceria de qualquer modo. Em qualquer lugar.
— Eu vou embora.
— Por que veio aqui?
— Não sei. Talvez você seja tão bruxa quanto sua avó e tenha me enfeitiçado — disse ele, meio brincando, meio sério.
Ela sorriu, andou até ele e beijou-o, um beijo quente, demorado.
— Esse é o único feitiço que eu conheço.
—
— Eu ainda tenho seu cheiro em mim — ela disse e afastou-se. — Desde aquela noite.
— Eu vou embora.
— Você volta para me ver?
— ... Não. Esse lugar é perigoso demais para os da minha espécie.
— Então eu irei vê-lo no bosque.
— Eles permitirão que você volte lá, depois do que aconteceu?
— Eles não precisam saber.
A mãe de Chapeuzinho Vermelho entrou sem bater e encarou-os, desconfiada.
— Seu pai está inquieto com vocês dois aqui em cima, sozinhos — disse ela.
— Já estou de saída — disse o Lobo.
Na semana seguinte, Chapeuzinho Vermelho foi encontrar-se com o Lobo no bosque. Ela havia dito à sua mãe que iria dar uma volta pela cidade e, sim, mãe, vou me manter longe do bosque.
Quando alcançou a trilha que ia dar na casa de sua avó, Chapeuzinho soube que estava sendo observada. O Lobo saltou diante dela, o pelo escuro, os olhos amarelos, e observou-a atentamente.
— Você não me assusta – disse ela.
— Eu sei.
Ela tocou o pelo do Lobo. Ele pareceu estremecer. Chapeuzinho começou a despir-se, mas o Lobo a deteve. Ele farejava o ar.
— O que foi?
— Você foi seguida.
— Tem certeza? Eu tomei bastante cuidado e...
A bala acertou-o no ombro e ele ganiu. Chapeuzinho gritou. O Lobo caiu. Então, ergueu-se depressa.
Cavalos aproximavam-se rapidamente.
— Fuja — gritou Chapeuzinho.
Ele correu, um tanto lento por causa do ferimento, mas ainda rápido. As balas passavam por ele, arrancando lascas de árvores e terra. Ele olhou para traz e viu os cavalos e os homens armados sobre eles. Ele correu como nunca correra antes e, apesar daquele bosque ser sua morada a centenas de anos e o Lobo conhecê-lo como a si mesmo, eles o encurralaram no alto de um precipício. Ele olhou para baixo e viu um rio sinuoso e que seguia a perder de vista. Olhou para traz e viu os homens armados chegando depressa. E saltou.
Os homens desceram dos cavalos e ainda estavam atirando nele quando ele atingiu a água e foi arrastado pela força da água.
Chapeuzinho Vermelho, de joelhos no meio da trilha, chorava.
Noite. Lua cheia. Não há uivos essa noite no bosque.
sábado, 20 de março de 2010
sexta-feira, 19 de março de 2010
quinta-feira, 18 de março de 2010
quarta-feira, 17 de março de 2010
terça-feira, 16 de março de 2010
Porra, Mauricio!
PORRA, MAURICIO!!! PORRA, CEBOLINHA!!! PORRA, CASCÃO!!! BRINCAR DE BROKEBACK MOUNTAIN AINDA VAI, MAS VOLTAR PRA CASA PELADO JÁ É SACANAGEM!!!
quinta-feira, 11 de março de 2010
quarta-feira, 3 de março de 2010
NADA DE NOVO NO FRONT (um trecho)
Erich Maria Remarque
Estamos no outono. Dos veteranos, já não há muitos. Sou o último dos sete colegas de turma que vieram para cá.
Todos falam de paz e armistício. Todos esperam. Se for outra decepção, eles vão se desmoronar. As esperanças são muito fortes; é impossível destruí-las sem uma reação brutal. Se não houver paz, então haverá revolução.
Tenho catorze dias de licença, porque engoli um pouco de gás. Num pequeno jardim, fico sentado o dia inteiro ao sol. O armistício virá e breve, até eu já acredito agora. Então iremos para casa.
Neste ponto meus pensamentos param e não vão mais adiante. O que me atrai e me arrasta são os sentimentos. É a ânsia de viver, é a nostalgia da terra natal, é o sangue, é a embriaguez da salvação. Mas não são objetivos.
Se tivéssemos voltado em 1916, do nosso sofrimento e da força de nossa experiência poderíamos ter desencadeado uma tempestade. Mas se voltarmos agora estaremos cansados, quebrados, deprimidos, vazios, sem raízes e sem esperanças. Não conseguiremos mais achar o caminho.
E as pessoas não nos compreenderão, pois antes da nossa cresceu uma geração que, sem dúvida, passou estes anos aqui junto a nós, mas que já tinha um lar e uma profissão, e que agora voltará para suas antigas colocações e esquecerá a guerra... e depois de nós crescerá uma geração semelhante à que fomos em outros tempos, que nos será estranha e nos deixará de lado. Seremos inúteis até para nós mesmos. Envelheceremos, alguns se adaptarão, outros simplesmente se resignarão e a maioria ficará desorientada: os anos passarão e, por fim, pereceremos todos.
Mas talvez tudo que penso seja apenas melancolia e desalento que desaparecerão quando estiver de novo sob os choupos e ouvir novamente o murmúrio das suas folhas. É impossível que já não existam a doçura que fazia nosso sangue se agitar, a incerteza, o futuro com suas mil faces, a melodia dos sonhos e dos livros, os sussurros e os pressentimentos das mulheres. Tudo isso não pode ter desaparecido nos bombardeios, no desespero e nos bordéis. Aqui as árvores brilham, alegres e douradas, os frutos das sorveiras têm matizes avermelhados por entre a folhagem; as estradas correm brancas para o horizonte, os rumores de paz fazem as cantinas zumbirem como colméias.
Levanto-me.
Estou muito tranqüilo. Que venham os meses e os anos, não conseguirão tirar mais nada de mim, não podem me tirar mais nada. Estou tão só e sem esperança que posso enfrentá-los sem medo. A vida, que me arrastou por todos estes anos, eu ainda a tenho nas mãos e nos olhos. Se a venci, não sei. Mas enquanto existir dentro de mim - queira ou não esta força que em mim reside e que se chama eu -, ela procurará seu próprio caminho.
Tombou morto em outubro de 1918, num dia tão tranqüilo em toda a linha de frente que o comunicado se limitou a uma frase: "Nada de novo no front".
Caiu de bruços e ficou estendido, como se estivesse dormindo. Quando alguém o virou, viu-se que ele não devia ter sofrido muito. Tinha no rosto uma expressão tão serena que quase parecia estar satisfeito de ter terminado assim.