Clique na imagem
Um dia ideal para os peixes-banana e livros e cinema e gibis e nus e ataxia espinocerebelar e 𓋹
terça-feira, 29 de dezembro de 2009
ZAZIE NO METRÔ
– Essa menina estava rodando bolsinha no mercado das pulgas. Espero que pelo menos o senhor não vá vender ela para os árabes.
–Isso nunca, senhor.
–Nem aos poloneses?
–Também não.
–Somente aos franceses e turistas abonados?
–Somente coisa nenhuma.
–Então o senhor nega?
–E como.
–E me diga, meu rapaz, qual é o seu ofício ou sua profissão atrás do qual ou da qual o senhor esconde as suas atividades delituosas?
–Artista.
–O senhor? Um artista? A menina me disse que o senhor era vigia noturno.
–Ela não sabe de nada…
–Então, artista de que tipo?
–Dançarina de cabaré.
Raymond Queneau
domingo, 20 de dezembro de 2009
quarta-feira, 16 de dezembro de 2009
terça-feira, 15 de dezembro de 2009
Trecho de Os Espiões, de Luis Fernando Veríssimo
Formei-me em Letras e na bebida busco esquecer. Mas só bebo nos fins de semana. De segunda a sexta trabalho numa editora, onde uma das minhas funções é examinar os originais que chegam pelo correio, entram pelas janelas, caem do teto, brotam do chão ou são atirados na minha mesa pelo Marcito, dono da editora, com a frase “Vê se isso presta”. A enxurrada de autores querendo ser publicados começou depois que um livrinho nosso chamado Astrologia e Amor — Um Guia Sideral para Namorados fez tanto sucesso que permitiu ao Marcito comprar duas motos novas para sua coleção. De repente nos descobriram, e os originais não param mais de chegar. Eu os examino e decido seu futuro. Nas segundas-feiras estou sempre de ressaca, e os originais que chegam vão direto das minhas mãos trêmulas para o lixo. E nas segundasfeiras minhas cartas de rejeição são ferozes. Recomendo ao autor que não apenas nunca mais nos mande originais como nunca mais escreva uma linha, uma palavra, um recibo. Se Guerra e Paz caísse na minha mesa numa segunda- feira, eu mandaria seu autor plantar cebolas. Cervantes? Desista, hombre. Flaubert? Proust? Não me façam rir. Graham Greene? Tente farmácia. Nem le Carré escaparia. Certa vez recomendei a uma mulher chamada Corina que se ocupasse de afazeres domésticos e poupasse o mundo da sua óbvia demência, a de pensar que era poeta. Um dia ela entrou na minha sala brandindo o livro rejeitado que publicara por outra editora e o atirou na minha cabeça. Quando me perguntam a origem da pequena cicatriz que tenho sobre o olho esquerdo, respondo:
— Poesia.
Corina já publicou vários livros de poemas e pensamentos com grande sucesso. Sempre me manda o convite para seus lançamentos e sessões de autógrafos. Soube que sua última obra é uma compilação de toda a sua poesia e prosa, com quatrocentas páginas. Capa dura. Vivo aterrorizado com a ideia de que ainda levarei esse tijolo na cabeça.
Uma ameaça imediata vinha do Fulvio Edmar, autor do Astrologia e Amor, que nunca recebera os direitos autorais pela sua obra. Ele pagara pela primeira edição e achava que deveria receber os direitos integrais de todas as edições depois que o livro estourara. O Marcito não concordava. E eu é que tinha que responder as cobranças cada vez mais desaforadas de Fulvio Edmar. Há anos trocávamos insultos por cartas. Nunca nos encontráramos. Ele já descrevera com detalhes como faria para que meus testículos substituíssem minhas amídalas, quando isso acontecesse. Eu já o avisara que carregava sempre uma soqueira no bolso.
Mesmo as minhas cartas de rejeição mais violentas, minhas diatribes de segunda-feira, terminam com um P.S. amável. Instrução do Marcito. Se a pessoa estiver disposta a pagar pela edição do seu livro, a editora terá enorme prazer em rever sua avaliação etc. etc. Conheci o Marcito na escola. Os dois com 15 perebentos anos. Ele sabia que as minhas redações eram as melhores da turma e me convidou para escrever histórias de sacanagem, que reunia num caderno grampeado, intitulado O Punheteiro, e alugava para quem quisesse levá-lo para casa, com a condição de devolver no dia seguinte sem manchas. Depois da escola passamos anos sem nos ver até que descobri que ele abrira uma editora e fui procurá-lo. Eu tinha escrito um romance e queria publicá-lo. Não, não era de sacanagem. Demos boas risadas lembrando os tempos de O Punheteiro, mas o Marcito disse que, a não ser que eu pagasse pela edição, não tinha como publicar meu romance, uma história de espionagem sobre um fictício programa nuclear brasileiro abortado pelos americanos. A editora estava recém-começando. Ele era sócio de um tio, fabricante de adubo, cujo único interesse na editora era a publicação de um almanaque mensal distribuído entre seus clientes no interior do estado. Mas Marcito me fazia uma proposta. Tinha planos para criar uma editora de verdade. Precisava de alguém que o ajudasse. Se eu fosse trabalhar com ele, eventualmente publicaria meu romance. Não podia pro- meter um grande salário, mas... Me lembrei que ele não dividia comigo o dinheiro do aluguel de O Punheteiro. Ia certamente me explorar de novo. Mas a ideia de trabalhar numa editora me seduzia. Afinal, eu me formara em Letras e na época era funcionário de uma loja de vídeos. Estava com 30 anos. Tinha recém me casado com a Julinha. O João (a Julinha não aceitou que ele se chamasse le Carré) estava para nascer. Topei. Isso foi há 12 anos. Minha primeira tarefa na editora foi copiar um texto sobre camaleões de uma enciclopédia, para incluir no almanaque. Escolha profética: o camaleão é um bicho que se adapta a qualquer circunstância e desaparece contra o fundo. Desde então é isso que eu faço. Leio originais. Escrevo cartas. Redijo quase todo o almanaque para ajudar a vender adubo. Me lamento e bebo. E, lentamente, desapareço contra o fundo.
A editora cresceu. Descobri que o Marcito não era só um filho de pai rico cretino como eu sempre imaginara. Tinha um gosto, que eu jamais suspeitaria num colecionador de motos, pelo Simenon. Depois do sucesso de Astrologia e Amor, começamos a publicar mais livros, na maioria pagos pelo autor. Alguns até vendem, se tivermos sorte ou a família do autor for grande. Vez que outra eu recomendo a publicação de um original que chega à minha mesa. Principalmente se o examino numa sexta- feira, quando estou cheio de boa vontade com a humanidade e suas pretensões literárias, pois sei que o dia acabará na mesa do bar do Espanhol, onde começa o meu porre semanal. Meus três dias de consciência embotada pela cachaça e a cerveja em que me livro de mim mesmo e de mi puta vida. Meu companheiro mais frequente na mesa do Espanhol é o Joel Dubin, que vai na editora duas vezes por semana, quartas e sextas, para fazer a revisão do almanaque ou de provas de eventuais livros em preparação e cujos olhos azuis, dizem, alvoroçam as meninas no cursinho pré-vestibular em que dá aulas de português, apesar da sua baixa estatura. Ele jura que nunca comeu nenhuma aluna, embora prometesse loucas noites de amor às que passassem no vestibular. Sei pouco sobre a vida sexual real do Dubin, fora a certeza de que é melhor do que a minha. As cadeiras do bar do Espanhol têm uma vida sexual melhor do que a minha. Dubin costumava se enternecer por namoradas impossíveis. Certa vez estava quase brigando com uma quando ela perguntou a um garçom se não tinham frisante sem bolinha. Decidiu que não poderia deixá-la solta no mundo, e quase se casaram. Fazia poemas, maus poemas. Se apresentava como “Joel Dubin, poeta menor”. Tinha um poema que repetia sempre para namoradas em potencial, algo sobre ser uma hipotenusa em riste atrás de um triângulo que a acomodasse, e que chamava de “cantada geométrica”. As que entendiam o poema ou sorriam só para agradá-lo ele descartava porque não queria nada com intelectuais. Preferia as que gritavam “O quê?!”
Dubin e eu tínhamos longas discussões, na editora e na mesa do bar, sobre literatura e gramática, e discordávamos radicalmente quanto à colocação de vírgulas. Du- bin é um oficialista, diz que há leis para o uso da vírgula que devem ser respeitadas. Eu sou relativista: acho que vírgulas são como confeitos num bolo, a serem espalhadas com parcimônia nos lugares onde fiquem bem e não atrapalhem a degustação. Não é raro eu re-revisar uma revisão do Dubin e cortar as vírgulas que ele acrescentou ou acrescentar esparsas vírgulas minhas em desafio às regras, onde acho que cabem. No bar, nossas conversas começavam com a vírgula e depois se expandiam, abrangendo a condição humana e o Universo. Ficavam mais vitriólicas e estridentes à medida que nos embebedávamos, até o Espanhol vir pedir para baixarmos a bola. Difamávamos todos os escritores da cidade, com rancor crescente. Ainda hoje não sei se o Dubin me acompanha até o fundo nos meus mergulhos semanais na inconsciência. Não sei como chego em casa nas sextas-feiras. Talvez seja carregado por ele, que não bebeu tanto. Nunca perguntei. No fim das tardes de sábado nos encontrávamos outra vez na mesma mesa do bar do Espanhol e retomávamos a mesma bebedeira e a mesma conversa insana. Era uma maneira de dramatizar nossa própria mediocridade sem saída, uma forma de flagelação mútua pela banalidade. Dubin chamava nossas discussões intermináveis de pavanas para mortos-vivos. Uma vez ficamos quase uma hora gritando um para o outro, a respeito de não me lembro que dúvida gramatical:
— Ênclise!
— Próclise!
— Ênclise!
— Próclise!
— Ênclise!
— Próclise!
Até o Espanhol fazer sinal, de trás do balcão, para baixarmos a bola.
Também não sei como chego em casa nas madrugadas de domingo. Passo os domingos dormindo. A Julinha e
o João iam almoçar na casa da irmã dela. Ficávamos só eu e o cachorro, o Black. A doce Julinha com quem me casei porque estava grávida desapareceu dentro de uma mulher gorda e amarga do mesmo nome e nunca mais foi vista. Aos domingos ela só deixava comida para o cachorro. Se eu quisesse comer, precisava negociar com o Black. Ela não falava mais comigo. O João estava com 12 anos e também não falava mais comigo. Só quem falava comigo era o Black. Pelo menos seu olhar parecia dizer “Eu entendo, eu entendo”. No fim das tardes de domingo vou de novo encontrar o Dubin no bar do Espanhol. Que não é espanhol. Chama-se Miguel e começou a ser chamado de “Dom Miguel” pelo professor Fortuna, e depois de “Espanhol”. O professor Fortuna também não é professor. Frequentava o bar, mas não se sentava conosco. Dizia que não gostava de se misturar, referindo-se não a nós, mas à humanidade em geral. Explicava que chamava o Espanhol de Espanhol porque ele lhe lembrava Miguel de Unamuno, que conhecia pessoalmente. Pelo que sabíamos, Unamuno nunca estivera em Porto Alegre e o professor nunca saíra daqui. Às vezes desconfiávamos que ele nunca saíra do bar do Espanhol. E, mesmo, as idades não combinariam, embora o professor seja bem mais velho do que eu e o Dubin. “Um blefe”, é o que ele dizia de Unamuno. Suspeitávamos que o professor não lera nenhum dos autores sobre os quais tinha opiniões definitivas. Costumava dizer:
— O homem é Nietzsche. O resto é lixo.
— E Heidegger, professor?
Ele esfregava a cara com as duas mãos, invariável prelúdio para uma das suas sentenças categóricas.
— Enganador.
Marx?
— Já deu o que tinha que dar.
Camus?
— Veado.
O professor Fortuna tinha sempre a barba por fazer e vestia um sobretudo cor de rato molhado, fosse qual fosse a estação do ano. Não é um homem feio, mas era tão difícil acreditar nas peripécias sexuais que contava (“aprendi na Índia”) quanto acreditar que lia grego no original, como também afirmava. Dizia que qualquer dia me entregaria para publicação o livro que estava escrevendo, uma resposta à Crítica da Razão Pura com o título provisório de Anti Kant. Sabíamos quase nada da sua vida, mas tínhamos certeza de que o livro não existia e que ele nunca lera Kant. Ou Nietzsche. Dubin e eu frequentemente o envolvíamos em nossas discussões, mesmo quando a sua mesa estava longe da nossa e tínhamos que gritar para que nos ouvisse.
segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
Trecho de Milagres da Vida, de J.G. Ballard
1. Chegada a Shanghai (1930)
Nasci no Hospital Geral de Shanghai em 15 de novembro de 1930, após um parto difícil que minha mãe, de compleição delicada e quadris estreitos, gostava de descrever para mim em detalhes, falando como se isso revelasse a injustiça reinante no mundo. Durante o jantar ela sempre me contava como a minha cabeça ficara deformada com o parto, e desconfio que acreditava que isso explicava meu comportamento rebelde na adolescência e juventude (amigos médicos me dizem que não há nada fora do comum nesse tipo de parto). Minha irmã Margaret nasceu de cesariana em setembro de 1937, e nunca ouvi minha mãe refletir sobre esse assunto.
Morávamos no número 31 da avenida Amherst, em um bairro residencial na zona oeste de Shanghai, mais ou menos setecentos metros depois da fronteira do Assentamento Internacional, mas dentro da área mais ampla controlada pela polícia de Shanghai. A casa ainda está em pé e, na minha última visita a Shanghai, em 1991, fora transformada na biblioteca do Instituto Estadual de Eletrônica. O Assentamento Internacional que se limitava ao sul com a Concessão Francesa, quase do mesmo tamanho, se estendia des- de o Bund — a larga avenida ao longo do rio Huangpu, com seus bancos, hotéis e lojas comerciais — até uns oito quilômetros mais a oeste. Quase todas as lojas de departamento, restaurantes, cinemas, boates e estações de rádio ficavam no Assentamento Internacional, mas as indústrias se situavam em grandes áreas nos arredores da cidade. Os cinco milhões de habitantes chineses tinham livre acesso ao assentamento, e quase todas as pessoas que eu via na rua eram chinesas. Acredito que havia mais ou menos 50 mil não chineses — entre eles britânicos, franceses, americanos, alemães, italianos, japoneses, e ainda um grande número de russos brancos e refugiados judeus.
Shanghai não era uma colônia inglesa, como a maioria das pessoas imagina, tampouco se parecia com Hong Kong ou Cingapura — locais que visitei antes e depois da guerra e mais se assemelhavam a ancoradouros de navios de guerra e bases de abastecimento da marinha do que a vibrantes centros comerciais. Eram, também, muito dependentes do pink gin e do tradicional brinde à Rainha. Shanghai era, como é até hoje, uma das maiores cidades do mundo, 90% chinesa e 100% americanizada. Estranhos cartazes de propaganda — não sai da minha memória a tropa de honra com cinquenta corcundas chineses na estreia de O corcunda de Notre Dame — faziam parte do dia a dia, embora às vezes eu me pergunte se o que faltava na cidade era, justamente, o dia a dia comum.
Com seus jornais e rádios em todas as línguas, Shanghai era uma cidade da mídia, muito antes que isso fosse moda. Era considerada a Paris do Oriente, e também a cidade mais pervertida do mundo, embora na minha infância eu não soubesse nada sobre seus milhares de bares e prostíbulos. O capitalismo selvagem corria solto pelas ruas cheias de mendigos exibindo suas chagas e feridas. Shanghai tinha importância política e comercial, e por muitos anos foi a principal base do Partido Comunista chinês. Nos anos 1920 houve violentas lutas de rua entre os comunistas e as forças do Kuomintang, comandadas por Chiang Kai-shek; depois, nos anos 1930, foram frequentes os atentados terroristas — embora quase inaudíveis, suponho, abafados pela música das intermináveis noitadas nas boates, os shows de acrobacias aéreas e a corrida desenfreada, implacável, atrás do dinheiro. Enquanto isso, caminhões da prefeitura passavam todos os dias pelas ruas recolhendo os corpos dos chineses miseráveis que morriam de fome pelas calçadas da cidade, as mais duras do mundo. As festas, o cólera e a varíola coexistiam com as animadas idas e vindas de um garotinho inglês para a piscina do Country Club, no banco de trás do Buick da família. As violentas dores de ouvido causadas pela água infectada da piscina eram aliviadas pelo consumo ilimitado de Coca-Cola e sorvete, e pela promessa de que na volta o motorista pararia em uma banca de jornais para comprar revistas em quadrinhos americanas.
Em retrospecto, pensando na criação dos meus filhos em Shepperton, vejo o quanto tive que assimilar e digerir. Em cada passeio de carro por Shanghai, sentado ao lado de Vera, minha babá russa (supostamente para me proteger contra alguma tentativa de sequestro pelo motorista, embora eu nem imagine até que ponto aquela jovem sensível estaria disposta a se arriscar por mim), eu via alguma coisa estranha e misteriosa, mas a encarava como algo normal. Creio que era a única maneira possível de enxergar aquele caleidoscópio brilhante e sangrento que era Shanghai — os prósperos comerciantes chineses parados na rua Bubbling Well para apreciar um fio de sangue escorrendo do pescoço de um ganso furioso, amarrado ao poste telefônico; jovens gângsteres chineses, com seus ternos americanos, espancando um lojista; mendigos brigando por um espaço na calçada; lindas garotas de programa russas, sorrindo para os transeuntes (eu sempre imaginava como seria se elas fossem minhas babás, se comparadas a Vera, sempre emburrada, sempre controlando rigidamente meu cérebro em constante atividade).
Mesmo assim, Shanghai me impressionava como um lugar mágico, uma fonte inesgotável de fantasia que deixava no chinelo a minha própria imaginação infantil. Havia sempre algo de inusitado e incongruente para se ver: um grande espetáculo de fogos de artifício comemorando a inauguração de uma nova boate, enquanto os carros da polícia avançavam contra uma multidão de traba- lhadores aos gritos; o exército de prostitutas de casacos de pele na porta do Park Hotel, "esperando amigos", como me dizia Vera. Os esgotos a céu aberto desaguavam no fedorento rio Huangpu, e a cidade inteira exalava um cheiro de lixo e doenças, mais os miasmas de fritura das incontáveis barraquinhas de comida chinesa. Na Concessão Francesa passavam bondes imensos em alta velocidade, com suas sinetas tocando, pelo meio da multidão. Tudo era possível e qualquer coisa podia ser comprada e vendida. Tu do isso me parece um palco; mas, na época, era real. Creio que grande parte da minha ficção é uma tentativa de evocar essas coisas todas, por outro meio que não a memória.
Ao mesmo tempo, havia um lado estritamente formal na vi da em Shanghai — recepções de casamentos no Clube Francês, onde já fui pajem e provei pela primeira vez canapés de queijo, tão horrorosos que pensei que tivesse contraído alguma terrível doença desconhecida. Havia corridas de cavalo na pista de corrida de Shanghai, com gente muito bem-vestida, e reuniões patrióticas na embaixada britânica no Bund — ocasiões ultraformais, com horas e horas de espera que quase me deixavam louco. Meus pais ofereciam elaborados jantares formais, em que todos os convidados acabavam bêbados, e que para mim costumavam terminar quando algum dos alegres colegas do meu pai me encontrava escondido atrás do sofá, ouvindo conversas que eu não compreendia em absoluto. "Edna, temos um clandestino a bordo..."
Minha mãe me contou sobre uma recepção no início dos anos 1930, quando fui apresentado a madame Sun Yat-sen, viúva do homem que derrotou a dinastia Manchu e se tornou o primeiro presidente da China. Mas acho que meus pais preferiam a irmã dela, madame Chiang Kai-shek, boa amiga dos Estados Unidos e dos grandes empresários americanos. Na época, minha mãe era uma bela jovem na casa dos trinta anos, muito popular no Country Club. Certa vez foi eleita a mulher mais bem-vestida de Shang-hai; mas não tenho certeza se considerou isso um elogio; tampouco se realmente desfrutou do tempo que passou na cidade (mais ou menos de 1930 a 1948). Bem mais tarde, por volta dos sessenta anos, tornou-se uma veterana das longas viagens aéreas e esteve em Cingapura, Bali e Hong Kong, mas não voltou a Shanghai. "É uma cidade industrial", explicava ela, como se isso encerrasse o assunto.
Desconfio de que meu pai, com sua paixão por H. G. Wells e sua crença na ciência moderna como salvadora da humanidade, desfrutou muito mais de Shanghai. Sempre pedia ao motorista que diminuísse a velocidade quando passávamos por algum marco local importante — o Instituto Radium, onde algum dia se descobriria a cura do câncer; a grande propriedade dos Hardoon, no centro do Assentamento Internacional, fundada por um magnata iraquiano do ramo imobiliário. Certa vez uma cartomante lhe disse que, se ele parasse de construir, morreria, e assim Hardoon continuou construindo elaborados pavilhões por toda a cidade — muitos deles sem portas e sem nada dentro. No meio da confusão do trânsito no Bund, meu pai me mostrava o "Cohen Dois-Revólveres", na época um famoso segurança dos chefes das gangues. Eu ficava olhando, com todo o deslumbramento de um garotinho, aquele carrão americano com vários homens armados em pé no estribo, no estilo dos gângsteres de Chicago. Antes da guerra, meu pai sempre me levava à fábrica da sua empresa, do outro lado do rio Huangpu, na margem leste — ainda me lembro do medonho barulho das máquinas nos galpões de fiação e tecelagem, das centenas de imensos teares Lancashire, cada um deles vigiado por uma adolescente chinesa, pronta para desligar a máquina se um único fio se partisse. Essas meninas do interior já tinham ficado surdas há muito tempo com a barulheira dos teares, mas eram todas arrimo de família, e meu pai abriu uma escola ao lado da fábrica para que pudessem aprender a ler, escrever e ter alguma esperança de um dia trabalhar em um escritório.
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
terça-feira, 1 de dezembro de 2009
O JARDIM DO DIABO
Me chame de Ismael e eu não atenderei. Meu nome é Estevão, ou coisa parecida. Como todos os homens, sou oitenta por cento água salgada, mas já desisti de puxar destas profundezas qualquer grande besta simbólica. Como a própria baleia, vivo de pequenos peixes da superfície, que pouco significam mas alimentam. Você talvez tenha visto alguns dos meus livros nas bancas. Todo homem, depois dos quarenta, abdica das suas fomes, salvo a que o mantém vivo. São aqueles livros mal impressos em papel jornal, com capas coloridas em que uma mulher com grandes peitos de fora está sempre prestes a sofrer uma desgraça. Escrevo um livro por mês, com vários pseudônimos americanos, embora meu herói – não sei se você notou – sempre se chame Conrad. Conrad James. Herman Conrad. Um ex-marinheiro de poucas palavras. Um peixe pequeno, mas mais de uma cidade foi salva da catástrofe pela sua ação decisiva entre as páginas 90 e 95. Tenho uma fórmula: a grande trepada por volta da página 40, o encontro final com o vilão, e o desenlace, a partir da página 90. Sobrevivo. Nunca mais vi o mar.
Luis Fernando Veríssimo