quarta-feira, 29 de abril de 2009

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Trecho de Associação Judaica de Policia, de Michael Chabron

1.

Landsman passou nove meses enfurnado no hotel Zamenhof sem que um único residente conseguisse ser assassinado. Mas eis que acabavam de estourar os miolos do ocupante do quarto 208, um yid que se apresentava como Emanuel Lasker.

"Ele não atendia ao telefone, não abria a porta", explica Tenenboym, o gerente noturno, logo depois de tirar Landsman da cama. Landsman mora no 505, com vista para o letreiro de neon do hotel do outro lado da rua Max Nordau: o Blackpool, um no- me que povoa seus pesadelos. "Eu fui obrigado a entrar no quarto."

O gerente noturno é um antigo fuzileiro que se livrou da heroína nos anos 60, depois de voltar da carnificina da guerra cubana. Tem uma preocupação maternal com a população adicta do Zamenhof. Dá-lhes crédito e garante que sejam deixados sozinhos quando é disso que precisam.

"Você mexeu em alguma coisa?"

Tenenboym responde: "Só no dinheiro e nas jóias".

Landsman põe a calça e os sapatos, enfia os suspensórios. A seguir, ambos olham para a maçaneta, na qual está pendurada uma gravata vermelha com uma grossa listra marrom, o nó já pronto para evitar perda de tempo. O próximo turno de Landsman é só daqui a oito horas. Oito longas horas de solitária vadiagem, enxugando a garrafa no seu cantinho. Ele exala um suspiro e pega a gravata. Mete-a na cabeça e ajusta o nó no colarinho. Veste o paletó, apalpa-o em busca da carteira e do distintivo no bolso do peito, bate no sholem que traz no coldre debaixo do braço, um Smith & Wesson cano curto, modelo 39.

"Desculpe te acordar, detetive", diz Tenenboym. "É que eu reparei que, no fundo, você não dorme."

"Durmo, sim", diz Landsman. Pega o seu inseparável copinho, um suvenir da Feira Mundial de 1977. "Mas é que eu durmo de cueca e camisa." Ergue um brinde aos trinta anos da Feira Mundial de Sitka. O supra-sumo da civilização judaica no norte, dizem, e quem se atreve a duvidar? Naquele verão, Meyer Landsman tinha catorze anos e estava começando a descobrir as glórias da mulher judia, para as quais 1977 também deve ter sido uma espécie de supra-sumo. "Sentado numa cadeira." Esvazia o copo. "E sempre com o sholem ao alcance da mão."

Segundo os médicos, os terapeutas e inclusive sua ex-mulher, Landsman bebe para se medicar, para sintonizar os tubos e os cristais de seus estados de espírito com a martelada brutal de uma excelente aguardente de ameixa. Mas a verdade é que ele só tem dois estados de espírito: trabalhando e morto. Meyer Landsman é o shammes mais badalado do distrito de Sitka, o homem que desvendou o assassinato da bela Froma Lefkowitz pelo marido peleteiro e que capturou Podolsky, o Estripador Hospitalar. Seu depoimento mandou Hyman Tsharny para o presídio federal até o fim da vida, a primeira e última vez em que acusações criminais contra um verbôver insolente renderam condenação. Ele tem memória de presidiário, colhões de bombeiro e visão de assaltante. Quando se trata de combater o crime, Landsman percorre Sitka feito um homem com a perna da calça presa num foguete. É como se uma trilha sonora vivesse tocando atrás dele, com uma enorme bateria de castanholas. Os problemas aparecem nas horas em que Landsman não está trabalhando, quando as idéias irrompem pela janela aberta de seu cérebro como as páginas de um volumoso boletim de ocorrências. Às vezes, é preciso um robustíssimo peso de papéis para segurá-las.

"Desculpe te dar mais trabalho ainda", murmura Tenenboym.

Na época em que estava lotado no Narcóticos, Landsman prendeu Tenenboym cinco vezes. Essa é a base da suposta amizade entre eles. Quase suficiente.

"Não é trabalho, Tenenboym. Eu faço isso por amor."

"Eu também posso dizer o mesmo", diz o gerente noturno. "De ser gerente noturno de um hotelzinho vagabundo."

Landsman pousa a mão no ombro de Tenenboym, e eles descem para examinar o falecido, espremendo-se no único elevador do Zamenhof, ou melhor, ELEVATORO, como outrora anunciava uma plaquinha de latão na porta. Cinqüenta anos atrás, quando o hotel foi inaugurado, todos os avisos, indicações, informações e advertências eram gravados em esperanto em placas de latão. A maioria delas desapareceu há muito tempo, vítimas do descuido, do vandalismo e do código de incêndio.

A porta e o batente do apartamento 208 não apresentam sinais de arrombamento. Landsman cobre a maçaneta com o lenço e empurra delicadamente a porta com a ponta do sapato.

"Eu tive uma sensação esquisita", diz Tenenboym ao entrar no quarto atrás dele. "Na primeira vez em que vi o cara. Sabe, aquela expressão de 'homem fracassado'."

Sei, Landsman sabe muito bem.

"A maioria das pessoas a que ela se aplica não a merece", diz Tenenboym. "Para começar, acho que a maioria dos homens não tem muito no que fracassar. Mas o tal Lasker. Era como esses gravetos que você quebra e eles pegam fogo. Sabe como é? Queimam por algumas horas. E você chega a ouvir o vidro quebrado crepitar dentro dele. Não sei, deixa pra lá. É só uma sensação esquisita."

"Hoje em dia, todo mundo tem sensações esquisitas", diz Landsman, fazendo algumas anotações em seu bloco preto sobre a situação do quarto, muito embora tais anotações sejam supérfluas, pois raramente se esquece de qualquer detalhe da cena do crime. Aquela mesma confederação informal composta por seus médicos, psicólogos e pela sua ex já tinha lhe dito que o álcool iria acabar lhe arruinando o dom da memória, mas até agora, para sua infelicidade, a afirmação vinha se revelando falsa. Sua visão do passado continua intacta. "Nós tivemos de instalar uma linha telefônica separada só para atender as chamadas."

"É uma época estranha para ser judeu", concorda Tenenboym. "Quanto a isso, não há dúvida."

Há uma pequena pilha de brochuras sobre a cômoda laminada. No criado-mudo de Lasker, um tabuleiro de xadrez. Parece que ele estava em plena partida, um meio-jogo bagunçado, o rei preto sendo atacado no centro do tabuleiro e o branco com vantagem de algumas peças. Material de segunda: o tabuleiro é um quadrado de papelão dobrável no meio; as peças, ocas, com saliências de plástico no lugar em que foram prensadas.

Uma luz continua acesa numa luminária de chão perto do televisor. Todas as outras lâmpadas do quarto, com exceção da do banheiro, foram retiradas ou estão queimadas. No peitoril da janela, uma caixinha de laxante de marca conhecida. A janela está entreaberta, não mais que dois centímetros, e as persianas metálicas, empurradas pelo vento teimoso que chega do Golfo do Alasca, batem a intervalos de segundos. O vento traz um ranço azedo de madeira compensada, um cheiro de diesel de barco e de matança e enlatamento de salmão. Segundo "Noch Amol", uma canção que Landsman e todos os outros judeus alasquianos de sua geração aprenderam na escola, o cheiro do vento do golfo enche as narinas judias de uma sensação de promessa, de oportunidade, de chance de recomeço. "Noch Amol" data da época do Urso Polar, o começo da década de 1940, e é considerada uma expressão de gratidão por mais uma libertação miraculosa: "Outra vez". Atualmente, os judeus do distrito de Sitka tendem mais a ouvir o lado irônico que nela sempre esteve presente.

"Eu conheci um bocado de jogadores de xadrez yids que usavam heroína", diz Tenenboym.

"Este aqui também." Landsman olha para o defunto e se dá conta de que já viu aquele yid no Zamenhof. Cara de passarinho. Olhos brilhantes, bico arrebitado. Um pouco de corado nas bochechas e na garganta, o que bem podia ser acne rosácea. Não um caso grave, não um sujeito repugnante, não um pobre coitado. Um yid talvez não muito diferente de Landsman, a não ser na escolha da droga. Unhas limpas. Sempre de gravata e chapéu. Chegou a ler um livro com notas de rodapé. Agora se acha em decúbito ventral na cama embutida, o rosto virado para a parede, vestindo apenas a imprescindível cueca branca. Cabelo castanho e sardas castanhas, barba dourada de três dias. Um vestígio de queixo duplo induz Landsman a se referir ao morto como "gorducho". Olhos esbugalhados nas órbitas escuras. Na nuca, um pequeno orifício chamuscado, uma pérola de sangue. Nenhum sinal de luta. Nada indica que Lasker tenha sentido o golpe ou ao menos registrado o último momento de sua existência. O travesseiro, Landsman repara, não está na cama. "Se eu soubesse, talvez o tivesse convidado para uma ou duas partidas."

"Eu não sabia que você jogava xadrez."

"Jogo mal", diz Landsman. Perto do closet, no carpete felpudo de um verde-amarelo de pastilha para tosse, ele avista uma pluminha branca. Abrindo a porta do armário, dá com o travesseiro no chão, baleado no coração para silenciar a concussão de gases expandindo-se dentro de uma concha. "Eu me atrapalho um pouco no meio-jogo."

"Pela minha experiência, detetive", diz Tenenboym, "o meio-jogo é tudo."

"Disso eu sei."

Landsman liga para acordar o parceiro Berko Shemets.

"Detetive Shemets", diz ao celular, um Shoyfer AT de loja de departamentos. "Aqui é o seu parceiro."

"Eu já te pedi para não fazer mais isso, Meyer", resmunga Berko. Desnecessário dizer que ele também só estará de plantão daqui a oito horas.

"Tem razão de ficar bravo", reconhece Landsman. "Eu pen- sei que talvez você ainda estivesse acordado."

"Eu estava acordado."

Ao contrário de Landsman, Berko Shemets não transformou

o casamento e a vida pessoal numa mixórdia. Dorme toda noite nos braços da excelente esposa, cujo amor por ele é merecido, correspondido e valorizado pelo marido fiel que nunca lhe dá motivos de tristeza ou sobressalto. "Que maldição, Meyer", diz Berko e, a seguir, em legítimo americano, "puta que o pariu."

"Eu estou com um aparente homicídio aqui no hotel. Um morador. Tiro na nuca. Abafado pelo travesseiro. Muito preciso."

"Na mosca."

"É por isso que estou te incomodando. Pelo inusitado do crime."

Com uma população de três milhões e duzentas mil na longa faixa irregular da região metropolitana, Sitka tem em média uns setenta e cinco homicídios por ano. Alguns são cometidos por quadrilhas: shtarkers russos a se dilacerarem mutuamente. O res to dos assassinatos são os chamados crimes passionais, maneira taquigráfica de expressar o produto matemático do álcool com as armas de fogo. As execuções a sangue-frio são tão raras que dificilmente saem do grande quadro branco da sala dos investigadores, no qual afixam a lista de casos em aberto.

"Você está de folga, Meyer. Passa isso pra frente. Tabatchnik e Karpas que se encarreguem."

Tabatchnik e Karpas, os outros dois detetives que formam a Equipe B do Setor de Homicídios da polícia distrital, a Delegacia Central de Sitka, estão fazendo o plantão noturno neste mês. Landsman é obrigado a reconhecer certo encanto na idéia de deixar esse cocô de pomba cair no chapéu dos dois.

"Até que não seria ruim", diz. "Mas acontece que eu moro aqui."

"Você conhecia o yid?", pergunta Berko, abrandando a voz.

"Não. Conhecer, não conhecia."

Ele desvia a vista do lívido firmamento sardento do morto estendido na cama embutida. Às vezes não consegue deixar de sentir pena deles, mas é melhor não criar o hábito.

"Olha, volta pra cama. Amanhã a gente fala nisso. Desculpa o incômodo. Boa noite. Pede desculpas a Ester-Malke." "Parece que você não está muito bem, Meyer. Algum problema?" Nos últimos meses, Landsman deu para telefonar para o parceiro nos horários mais impróprios da madrugada e discursar no etílico dialeto da dor, lamentando o fim de seu casamento, que fracassara havia cerca de dois anos, e a triste sina de sua irmãzinha caçula, esborrachada com seu monomotor Piper Super Cub contra o flanco do Monte Dunkelblum, em abril passado. Mas agora ele não está pensando na morte de Naomi nem no vexame do divórcio. Está é tomado por uma visão: ele sentado num sofá outrora branco, no encardido saguão do hotel Zame nhof, jogando xadrez com Emanuel Lasker, ou fosse qual fosse o nome verdadeiro do defunto. Um a projetar no outro o pouco que restava de seu brilho e a escutar o suave repique de vidro quebrado dentro de si. O fato de Landsman detestar xadrez não tornaria o quadro menos comovente. "O cara jogava xadrez, Berko. E eu nem sabia. Só isso." "Por favor, Meyer, eu te peço pelo amor de Deus, não vem com choradeira." "Eu estou bem, eu estou bem. Boa noite." Landsman liga para a delegacia, pedindo que o designem investigador encarregado do caso Lasker. Um caso de merda a mais ou a menos não há de comprometer sua avaliação como detetive encarregado. Não que isso tenha tanta importância assim. No dia 1o de janeiro, a soberania da totalidade do distrito federal de Sitka, um tortuoso parêntese na costa rochosa ao longo da borda ocidental das ilhas Baranof e Chicagof, será revertida ao estado do Alasca. A polícia distrital, à qual durante vinte anos Landsman dedicou a pele, a cabeça e a alma, se dissolverá. Não está claro se ele, Berko Shemets e os outros continuarão em suas funções. Aliás, nada está claro no tocante à reversão iminente, por isso esta é uma época estranha para ser judeu.

sábado, 11 de abril de 2009

Branded to Kill (1967) [Trailer]

Mais um filmaço de Seijun Suzuki, considerado a sua obra prima no gênero!

tóquio violenta

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Para fãs de John Woo, Takeshi Kitano, Jim Jamursh, Tarantino...

Seijun Suzuki fez um filme - desculpe, filmaço - com todos aqueles elementos que os fãs de gangsters e filmes violentos adoram. Estiloso e original - para a época - é daqueles filmes obscuros que na verdade são clássicos, do tipo que é imitado e reverenciado à exaustão.