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Um dia ideal para os peixes-banana e livros e cinema e gibis e nus e ataxia espinocerebelar e 𓋹
terça-feira, 29 de dezembro de 2009
ZAZIE NO METRÔ
– Essa menina estava rodando bolsinha no mercado das pulgas. Espero que pelo menos o senhor não vá vender ela para os árabes.
–Isso nunca, senhor.
–Nem aos poloneses?
–Também não.
–Somente aos franceses e turistas abonados?
–Somente coisa nenhuma.
–Então o senhor nega?
–E como.
–E me diga, meu rapaz, qual é o seu ofício ou sua profissão atrás do qual ou da qual o senhor esconde as suas atividades delituosas?
–Artista.
–O senhor? Um artista? A menina me disse que o senhor era vigia noturno.
–Ela não sabe de nada…
–Então, artista de que tipo?
–Dançarina de cabaré.
Raymond Queneau
domingo, 20 de dezembro de 2009
quarta-feira, 16 de dezembro de 2009
terça-feira, 15 de dezembro de 2009
Trecho de Os Espiões, de Luis Fernando Veríssimo
Formei-me em Letras e na bebida busco esquecer. Mas só bebo nos fins de semana. De segunda a sexta trabalho numa editora, onde uma das minhas funções é examinar os originais que chegam pelo correio, entram pelas janelas, caem do teto, brotam do chão ou são atirados na minha mesa pelo Marcito, dono da editora, com a frase “Vê se isso presta”. A enxurrada de autores querendo ser publicados começou depois que um livrinho nosso chamado Astrologia e Amor — Um Guia Sideral para Namorados fez tanto sucesso que permitiu ao Marcito comprar duas motos novas para sua coleção. De repente nos descobriram, e os originais não param mais de chegar. Eu os examino e decido seu futuro. Nas segundas-feiras estou sempre de ressaca, e os originais que chegam vão direto das minhas mãos trêmulas para o lixo. E nas segundasfeiras minhas cartas de rejeição são ferozes. Recomendo ao autor que não apenas nunca mais nos mande originais como nunca mais escreva uma linha, uma palavra, um recibo. Se Guerra e Paz caísse na minha mesa numa segunda- feira, eu mandaria seu autor plantar cebolas. Cervantes? Desista, hombre. Flaubert? Proust? Não me façam rir. Graham Greene? Tente farmácia. Nem le Carré escaparia. Certa vez recomendei a uma mulher chamada Corina que se ocupasse de afazeres domésticos e poupasse o mundo da sua óbvia demência, a de pensar que era poeta. Um dia ela entrou na minha sala brandindo o livro rejeitado que publicara por outra editora e o atirou na minha cabeça. Quando me perguntam a origem da pequena cicatriz que tenho sobre o olho esquerdo, respondo:
— Poesia.
Corina já publicou vários livros de poemas e pensamentos com grande sucesso. Sempre me manda o convite para seus lançamentos e sessões de autógrafos. Soube que sua última obra é uma compilação de toda a sua poesia e prosa, com quatrocentas páginas. Capa dura. Vivo aterrorizado com a ideia de que ainda levarei esse tijolo na cabeça.
Uma ameaça imediata vinha do Fulvio Edmar, autor do Astrologia e Amor, que nunca recebera os direitos autorais pela sua obra. Ele pagara pela primeira edição e achava que deveria receber os direitos integrais de todas as edições depois que o livro estourara. O Marcito não concordava. E eu é que tinha que responder as cobranças cada vez mais desaforadas de Fulvio Edmar. Há anos trocávamos insultos por cartas. Nunca nos encontráramos. Ele já descrevera com detalhes como faria para que meus testículos substituíssem minhas amídalas, quando isso acontecesse. Eu já o avisara que carregava sempre uma soqueira no bolso.
Mesmo as minhas cartas de rejeição mais violentas, minhas diatribes de segunda-feira, terminam com um P.S. amável. Instrução do Marcito. Se a pessoa estiver disposta a pagar pela edição do seu livro, a editora terá enorme prazer em rever sua avaliação etc. etc. Conheci o Marcito na escola. Os dois com 15 perebentos anos. Ele sabia que as minhas redações eram as melhores da turma e me convidou para escrever histórias de sacanagem, que reunia num caderno grampeado, intitulado O Punheteiro, e alugava para quem quisesse levá-lo para casa, com a condição de devolver no dia seguinte sem manchas. Depois da escola passamos anos sem nos ver até que descobri que ele abrira uma editora e fui procurá-lo. Eu tinha escrito um romance e queria publicá-lo. Não, não era de sacanagem. Demos boas risadas lembrando os tempos de O Punheteiro, mas o Marcito disse que, a não ser que eu pagasse pela edição, não tinha como publicar meu romance, uma história de espionagem sobre um fictício programa nuclear brasileiro abortado pelos americanos. A editora estava recém-começando. Ele era sócio de um tio, fabricante de adubo, cujo único interesse na editora era a publicação de um almanaque mensal distribuído entre seus clientes no interior do estado. Mas Marcito me fazia uma proposta. Tinha planos para criar uma editora de verdade. Precisava de alguém que o ajudasse. Se eu fosse trabalhar com ele, eventualmente publicaria meu romance. Não podia pro- meter um grande salário, mas... Me lembrei que ele não dividia comigo o dinheiro do aluguel de O Punheteiro. Ia certamente me explorar de novo. Mas a ideia de trabalhar numa editora me seduzia. Afinal, eu me formara em Letras e na época era funcionário de uma loja de vídeos. Estava com 30 anos. Tinha recém me casado com a Julinha. O João (a Julinha não aceitou que ele se chamasse le Carré) estava para nascer. Topei. Isso foi há 12 anos. Minha primeira tarefa na editora foi copiar um texto sobre camaleões de uma enciclopédia, para incluir no almanaque. Escolha profética: o camaleão é um bicho que se adapta a qualquer circunstância e desaparece contra o fundo. Desde então é isso que eu faço. Leio originais. Escrevo cartas. Redijo quase todo o almanaque para ajudar a vender adubo. Me lamento e bebo. E, lentamente, desapareço contra o fundo.
A editora cresceu. Descobri que o Marcito não era só um filho de pai rico cretino como eu sempre imaginara. Tinha um gosto, que eu jamais suspeitaria num colecionador de motos, pelo Simenon. Depois do sucesso de Astrologia e Amor, começamos a publicar mais livros, na maioria pagos pelo autor. Alguns até vendem, se tivermos sorte ou a família do autor for grande. Vez que outra eu recomendo a publicação de um original que chega à minha mesa. Principalmente se o examino numa sexta- feira, quando estou cheio de boa vontade com a humanidade e suas pretensões literárias, pois sei que o dia acabará na mesa do bar do Espanhol, onde começa o meu porre semanal. Meus três dias de consciência embotada pela cachaça e a cerveja em que me livro de mim mesmo e de mi puta vida. Meu companheiro mais frequente na mesa do Espanhol é o Joel Dubin, que vai na editora duas vezes por semana, quartas e sextas, para fazer a revisão do almanaque ou de provas de eventuais livros em preparação e cujos olhos azuis, dizem, alvoroçam as meninas no cursinho pré-vestibular em que dá aulas de português, apesar da sua baixa estatura. Ele jura que nunca comeu nenhuma aluna, embora prometesse loucas noites de amor às que passassem no vestibular. Sei pouco sobre a vida sexual real do Dubin, fora a certeza de que é melhor do que a minha. As cadeiras do bar do Espanhol têm uma vida sexual melhor do que a minha. Dubin costumava se enternecer por namoradas impossíveis. Certa vez estava quase brigando com uma quando ela perguntou a um garçom se não tinham frisante sem bolinha. Decidiu que não poderia deixá-la solta no mundo, e quase se casaram. Fazia poemas, maus poemas. Se apresentava como “Joel Dubin, poeta menor”. Tinha um poema que repetia sempre para namoradas em potencial, algo sobre ser uma hipotenusa em riste atrás de um triângulo que a acomodasse, e que chamava de “cantada geométrica”. As que entendiam o poema ou sorriam só para agradá-lo ele descartava porque não queria nada com intelectuais. Preferia as que gritavam “O quê?!”
Dubin e eu tínhamos longas discussões, na editora e na mesa do bar, sobre literatura e gramática, e discordávamos radicalmente quanto à colocação de vírgulas. Du- bin é um oficialista, diz que há leis para o uso da vírgula que devem ser respeitadas. Eu sou relativista: acho que vírgulas são como confeitos num bolo, a serem espalhadas com parcimônia nos lugares onde fiquem bem e não atrapalhem a degustação. Não é raro eu re-revisar uma revisão do Dubin e cortar as vírgulas que ele acrescentou ou acrescentar esparsas vírgulas minhas em desafio às regras, onde acho que cabem. No bar, nossas conversas começavam com a vírgula e depois se expandiam, abrangendo a condição humana e o Universo. Ficavam mais vitriólicas e estridentes à medida que nos embebedávamos, até o Espanhol vir pedir para baixarmos a bola. Difamávamos todos os escritores da cidade, com rancor crescente. Ainda hoje não sei se o Dubin me acompanha até o fundo nos meus mergulhos semanais na inconsciência. Não sei como chego em casa nas sextas-feiras. Talvez seja carregado por ele, que não bebeu tanto. Nunca perguntei. No fim das tardes de sábado nos encontrávamos outra vez na mesma mesa do bar do Espanhol e retomávamos a mesma bebedeira e a mesma conversa insana. Era uma maneira de dramatizar nossa própria mediocridade sem saída, uma forma de flagelação mútua pela banalidade. Dubin chamava nossas discussões intermináveis de pavanas para mortos-vivos. Uma vez ficamos quase uma hora gritando um para o outro, a respeito de não me lembro que dúvida gramatical:
— Ênclise!
— Próclise!
— Ênclise!
— Próclise!
— Ênclise!
— Próclise!
Até o Espanhol fazer sinal, de trás do balcão, para baixarmos a bola.
Também não sei como chego em casa nas madrugadas de domingo. Passo os domingos dormindo. A Julinha e
o João iam almoçar na casa da irmã dela. Ficávamos só eu e o cachorro, o Black. A doce Julinha com quem me casei porque estava grávida desapareceu dentro de uma mulher gorda e amarga do mesmo nome e nunca mais foi vista. Aos domingos ela só deixava comida para o cachorro. Se eu quisesse comer, precisava negociar com o Black. Ela não falava mais comigo. O João estava com 12 anos e também não falava mais comigo. Só quem falava comigo era o Black. Pelo menos seu olhar parecia dizer “Eu entendo, eu entendo”. No fim das tardes de domingo vou de novo encontrar o Dubin no bar do Espanhol. Que não é espanhol. Chama-se Miguel e começou a ser chamado de “Dom Miguel” pelo professor Fortuna, e depois de “Espanhol”. O professor Fortuna também não é professor. Frequentava o bar, mas não se sentava conosco. Dizia que não gostava de se misturar, referindo-se não a nós, mas à humanidade em geral. Explicava que chamava o Espanhol de Espanhol porque ele lhe lembrava Miguel de Unamuno, que conhecia pessoalmente. Pelo que sabíamos, Unamuno nunca estivera em Porto Alegre e o professor nunca saíra daqui. Às vezes desconfiávamos que ele nunca saíra do bar do Espanhol. E, mesmo, as idades não combinariam, embora o professor seja bem mais velho do que eu e o Dubin. “Um blefe”, é o que ele dizia de Unamuno. Suspeitávamos que o professor não lera nenhum dos autores sobre os quais tinha opiniões definitivas. Costumava dizer:
— O homem é Nietzsche. O resto é lixo.
— E Heidegger, professor?
Ele esfregava a cara com as duas mãos, invariável prelúdio para uma das suas sentenças categóricas.
— Enganador.
Marx?
— Já deu o que tinha que dar.
Camus?
— Veado.
O professor Fortuna tinha sempre a barba por fazer e vestia um sobretudo cor de rato molhado, fosse qual fosse a estação do ano. Não é um homem feio, mas era tão difícil acreditar nas peripécias sexuais que contava (“aprendi na Índia”) quanto acreditar que lia grego no original, como também afirmava. Dizia que qualquer dia me entregaria para publicação o livro que estava escrevendo, uma resposta à Crítica da Razão Pura com o título provisório de Anti Kant. Sabíamos quase nada da sua vida, mas tínhamos certeza de que o livro não existia e que ele nunca lera Kant. Ou Nietzsche. Dubin e eu frequentemente o envolvíamos em nossas discussões, mesmo quando a sua mesa estava longe da nossa e tínhamos que gritar para que nos ouvisse.
segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
Trecho de Milagres da Vida, de J.G. Ballard
1. Chegada a Shanghai (1930)
Nasci no Hospital Geral de Shanghai em 15 de novembro de 1930, após um parto difícil que minha mãe, de compleição delicada e quadris estreitos, gostava de descrever para mim em detalhes, falando como se isso revelasse a injustiça reinante no mundo. Durante o jantar ela sempre me contava como a minha cabeça ficara deformada com o parto, e desconfio que acreditava que isso explicava meu comportamento rebelde na adolescência e juventude (amigos médicos me dizem que não há nada fora do comum nesse tipo de parto). Minha irmã Margaret nasceu de cesariana em setembro de 1937, e nunca ouvi minha mãe refletir sobre esse assunto.
Morávamos no número 31 da avenida Amherst, em um bairro residencial na zona oeste de Shanghai, mais ou menos setecentos metros depois da fronteira do Assentamento Internacional, mas dentro da área mais ampla controlada pela polícia de Shanghai. A casa ainda está em pé e, na minha última visita a Shanghai, em 1991, fora transformada na biblioteca do Instituto Estadual de Eletrônica. O Assentamento Internacional que se limitava ao sul com a Concessão Francesa, quase do mesmo tamanho, se estendia des- de o Bund — a larga avenida ao longo do rio Huangpu, com seus bancos, hotéis e lojas comerciais — até uns oito quilômetros mais a oeste. Quase todas as lojas de departamento, restaurantes, cinemas, boates e estações de rádio ficavam no Assentamento Internacional, mas as indústrias se situavam em grandes áreas nos arredores da cidade. Os cinco milhões de habitantes chineses tinham livre acesso ao assentamento, e quase todas as pessoas que eu via na rua eram chinesas. Acredito que havia mais ou menos 50 mil não chineses — entre eles britânicos, franceses, americanos, alemães, italianos, japoneses, e ainda um grande número de russos brancos e refugiados judeus.
Shanghai não era uma colônia inglesa, como a maioria das pessoas imagina, tampouco se parecia com Hong Kong ou Cingapura — locais que visitei antes e depois da guerra e mais se assemelhavam a ancoradouros de navios de guerra e bases de abastecimento da marinha do que a vibrantes centros comerciais. Eram, também, muito dependentes do pink gin e do tradicional brinde à Rainha. Shanghai era, como é até hoje, uma das maiores cidades do mundo, 90% chinesa e 100% americanizada. Estranhos cartazes de propaganda — não sai da minha memória a tropa de honra com cinquenta corcundas chineses na estreia de O corcunda de Notre Dame — faziam parte do dia a dia, embora às vezes eu me pergunte se o que faltava na cidade era, justamente, o dia a dia comum.
Com seus jornais e rádios em todas as línguas, Shanghai era uma cidade da mídia, muito antes que isso fosse moda. Era considerada a Paris do Oriente, e também a cidade mais pervertida do mundo, embora na minha infância eu não soubesse nada sobre seus milhares de bares e prostíbulos. O capitalismo selvagem corria solto pelas ruas cheias de mendigos exibindo suas chagas e feridas. Shanghai tinha importância política e comercial, e por muitos anos foi a principal base do Partido Comunista chinês. Nos anos 1920 houve violentas lutas de rua entre os comunistas e as forças do Kuomintang, comandadas por Chiang Kai-shek; depois, nos anos 1930, foram frequentes os atentados terroristas — embora quase inaudíveis, suponho, abafados pela música das intermináveis noitadas nas boates, os shows de acrobacias aéreas e a corrida desenfreada, implacável, atrás do dinheiro. Enquanto isso, caminhões da prefeitura passavam todos os dias pelas ruas recolhendo os corpos dos chineses miseráveis que morriam de fome pelas calçadas da cidade, as mais duras do mundo. As festas, o cólera e a varíola coexistiam com as animadas idas e vindas de um garotinho inglês para a piscina do Country Club, no banco de trás do Buick da família. As violentas dores de ouvido causadas pela água infectada da piscina eram aliviadas pelo consumo ilimitado de Coca-Cola e sorvete, e pela promessa de que na volta o motorista pararia em uma banca de jornais para comprar revistas em quadrinhos americanas.
Em retrospecto, pensando na criação dos meus filhos em Shepperton, vejo o quanto tive que assimilar e digerir. Em cada passeio de carro por Shanghai, sentado ao lado de Vera, minha babá russa (supostamente para me proteger contra alguma tentativa de sequestro pelo motorista, embora eu nem imagine até que ponto aquela jovem sensível estaria disposta a se arriscar por mim), eu via alguma coisa estranha e misteriosa, mas a encarava como algo normal. Creio que era a única maneira possível de enxergar aquele caleidoscópio brilhante e sangrento que era Shanghai — os prósperos comerciantes chineses parados na rua Bubbling Well para apreciar um fio de sangue escorrendo do pescoço de um ganso furioso, amarrado ao poste telefônico; jovens gângsteres chineses, com seus ternos americanos, espancando um lojista; mendigos brigando por um espaço na calçada; lindas garotas de programa russas, sorrindo para os transeuntes (eu sempre imaginava como seria se elas fossem minhas babás, se comparadas a Vera, sempre emburrada, sempre controlando rigidamente meu cérebro em constante atividade).
Mesmo assim, Shanghai me impressionava como um lugar mágico, uma fonte inesgotável de fantasia que deixava no chinelo a minha própria imaginação infantil. Havia sempre algo de inusitado e incongruente para se ver: um grande espetáculo de fogos de artifício comemorando a inauguração de uma nova boate, enquanto os carros da polícia avançavam contra uma multidão de traba- lhadores aos gritos; o exército de prostitutas de casacos de pele na porta do Park Hotel, "esperando amigos", como me dizia Vera. Os esgotos a céu aberto desaguavam no fedorento rio Huangpu, e a cidade inteira exalava um cheiro de lixo e doenças, mais os miasmas de fritura das incontáveis barraquinhas de comida chinesa. Na Concessão Francesa passavam bondes imensos em alta velocidade, com suas sinetas tocando, pelo meio da multidão. Tudo era possível e qualquer coisa podia ser comprada e vendida. Tu do isso me parece um palco; mas, na época, era real. Creio que grande parte da minha ficção é uma tentativa de evocar essas coisas todas, por outro meio que não a memória.
Ao mesmo tempo, havia um lado estritamente formal na vi da em Shanghai — recepções de casamentos no Clube Francês, onde já fui pajem e provei pela primeira vez canapés de queijo, tão horrorosos que pensei que tivesse contraído alguma terrível doença desconhecida. Havia corridas de cavalo na pista de corrida de Shanghai, com gente muito bem-vestida, e reuniões patrióticas na embaixada britânica no Bund — ocasiões ultraformais, com horas e horas de espera que quase me deixavam louco. Meus pais ofereciam elaborados jantares formais, em que todos os convidados acabavam bêbados, e que para mim costumavam terminar quando algum dos alegres colegas do meu pai me encontrava escondido atrás do sofá, ouvindo conversas que eu não compreendia em absoluto. "Edna, temos um clandestino a bordo..."
Minha mãe me contou sobre uma recepção no início dos anos 1930, quando fui apresentado a madame Sun Yat-sen, viúva do homem que derrotou a dinastia Manchu e se tornou o primeiro presidente da China. Mas acho que meus pais preferiam a irmã dela, madame Chiang Kai-shek, boa amiga dos Estados Unidos e dos grandes empresários americanos. Na época, minha mãe era uma bela jovem na casa dos trinta anos, muito popular no Country Club. Certa vez foi eleita a mulher mais bem-vestida de Shang-hai; mas não tenho certeza se considerou isso um elogio; tampouco se realmente desfrutou do tempo que passou na cidade (mais ou menos de 1930 a 1948). Bem mais tarde, por volta dos sessenta anos, tornou-se uma veterana das longas viagens aéreas e esteve em Cingapura, Bali e Hong Kong, mas não voltou a Shanghai. "É uma cidade industrial", explicava ela, como se isso encerrasse o assunto.
Desconfio de que meu pai, com sua paixão por H. G. Wells e sua crença na ciência moderna como salvadora da humanidade, desfrutou muito mais de Shanghai. Sempre pedia ao motorista que diminuísse a velocidade quando passávamos por algum marco local importante — o Instituto Radium, onde algum dia se descobriria a cura do câncer; a grande propriedade dos Hardoon, no centro do Assentamento Internacional, fundada por um magnata iraquiano do ramo imobiliário. Certa vez uma cartomante lhe disse que, se ele parasse de construir, morreria, e assim Hardoon continuou construindo elaborados pavilhões por toda a cidade — muitos deles sem portas e sem nada dentro. No meio da confusão do trânsito no Bund, meu pai me mostrava o "Cohen Dois-Revólveres", na época um famoso segurança dos chefes das gangues. Eu ficava olhando, com todo o deslumbramento de um garotinho, aquele carrão americano com vários homens armados em pé no estribo, no estilo dos gângsteres de Chicago. Antes da guerra, meu pai sempre me levava à fábrica da sua empresa, do outro lado do rio Huangpu, na margem leste — ainda me lembro do medonho barulho das máquinas nos galpões de fiação e tecelagem, das centenas de imensos teares Lancashire, cada um deles vigiado por uma adolescente chinesa, pronta para desligar a máquina se um único fio se partisse. Essas meninas do interior já tinham ficado surdas há muito tempo com a barulheira dos teares, mas eram todas arrimo de família, e meu pai abriu uma escola ao lado da fábrica para que pudessem aprender a ler, escrever e ter alguma esperança de um dia trabalhar em um escritório.
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
terça-feira, 1 de dezembro de 2009
O JARDIM DO DIABO
Me chame de Ismael e eu não atenderei. Meu nome é Estevão, ou coisa parecida. Como todos os homens, sou oitenta por cento água salgada, mas já desisti de puxar destas profundezas qualquer grande besta simbólica. Como a própria baleia, vivo de pequenos peixes da superfície, que pouco significam mas alimentam. Você talvez tenha visto alguns dos meus livros nas bancas. Todo homem, depois dos quarenta, abdica das suas fomes, salvo a que o mantém vivo. São aqueles livros mal impressos em papel jornal, com capas coloridas em que uma mulher com grandes peitos de fora está sempre prestes a sofrer uma desgraça. Escrevo um livro por mês, com vários pseudônimos americanos, embora meu herói – não sei se você notou – sempre se chame Conrad. Conrad James. Herman Conrad. Um ex-marinheiro de poucas palavras. Um peixe pequeno, mas mais de uma cidade foi salva da catástrofe pela sua ação decisiva entre as páginas 90 e 95. Tenho uma fórmula: a grande trepada por volta da página 40, o encontro final com o vilão, e o desenlace, a partir da página 90. Sobrevivo. Nunca mais vi o mar.
Luis Fernando Veríssimo
segunda-feira, 30 de novembro de 2009
THE ROAD
Acabo de ler A ESTRADA, romance pós-apocaliptico de Cormac Mccarthy. Neste livro, Mccarthy abandona a temática western de seus livros anteriores. Pelo menos na aparência. Aqui, como no resto de sua obra, o caminho é mais importante que o destino. Em Mccarthy, a jornada é sempre a um tempo cruel, bela, poética, violenta… extremamente violenta. A história: Pai e filho seguem para o sul através de um mundo devastado (pelo quê nunca fica claro e também não importa muito). As cinzas, o frio, a fome, as outras pessoas que se tornaram no pior que se poderia esperar da raça humana. Há canibalismo e estrupo, assassinato e tensão contínua. As frases são curtas e evocam imagens belas até no mais triste horror. Cormarc Mccarthy é considerado um dos mais competentes autores americanos da atualidade. Não é o melhor livro de Mccarthy, prefiro ‘Cidades da Planície’, mas com certeza é um grande livro. Triste mas essencial de ser lido. Em tempo: o livro foi adaptado para o cinema, com Viggo Mortensen no papel principal.
sábado, 21 de novembro de 2009
segunda-feira, 16 de novembro de 2009
Os Filhos de Assur
Robert E. Howard
Uma aventura de Solomon Kane
1)
Solomon Kane começou a se mover no escuro, tentando agarrar as armas que jaziam na pilha de peles, a qual lhe servia de catre. Não era o louco tamborilar da chuva tropical, nas folhas do teto da cabana, que o havia acordado, nem o bramir do trovão. Eram gritos de agonia humana; o estrondo do aço que atravessava o barulho da tempestade tropical. Algum tipo de luta estava acontecendo na aldeia nativa na qual ele buscara se refugiar, e soava como um ataque-surpresa em grande escala. Quando Solomon tateou por sua espada, ele se perguntou que homens do mato atacariam uma aldeia à noite e numa tempestade como esta. Suas pistolas estavam ao lado de sua espada, mas ele não as tirou do chão, sabendo que seriam inúteis em tamanha torrente de chuva – uma chuva que molharia instantaneamente suas armas de fogo.
Ele se deitara completamente vestido, exceto por seu chapéu desleixado e manto, e, sem parar para pegá-los, correu até a porta da cabana. Uma linha irregular de relâmpago, a qual parecia abrir o céu, mostrou a ele um vislumbre caótico de figuras se movendo nos espaços entre as cabanas, com o reflexo do brilho ofuscante vindo do aço que faiscava. Acima da tempestade, ele ouviu os gritos estridentes do povo negro e gritos, em tom profundo, numa linguagem que não lhe era familiar. Saltando para fora da cabana, ele sentiu a presença de alguém à sua frente; então, outra explosão trovejante de fogo cortou o céu, clareando tudo numa fantástica luz azul. Naquele instante luminoso, Solomon deu uma estocada selvagem, sentiu a lâmina dobrar em sua mão, e viu uma pesada espada balançando em direção à sua cabeça. Uma explosão de faíscas, mais brilhante que o clarão, estourou diante de seus olhos; logo, uma escuridão maior que a noite da selva o envolveu.
A aurora se espalhava palidamente sobre as extensões de selva gotejante, quando Solomon Kane se moveu e sentou na lama diante da cabana. O sangue havia se empastado em seu couro cabeludo, e sua cabeça doía levemente. Livrando-se de uma leve fraqueza, ele se ergueu. A chuva cessara há muito, e os céus estavam claros. O silêncio jazia sobre toda a aldeia, e Kane viu que era na verdade uma aldeia de mortos. Cadáveres de homens, mulheres e crianças se espalhavam por toda a parte... nas ruas, nas portas das cabanas, dentro das cabanas; alguns deles haviam sido literalmente rasgados em pedaços, fosse em busca de vítimas escondidas, ou em mera lascívia de destruição. Não haviam levado prisioneiros, Solomon percebeu, quem quer que fossem os incursores desconhecidos. Nem haviam levado as lanças, machados, panelas e capacetes emplumados de suas vítimas – este fato parecia demonstrar um ataque de uma raça superior em cultura e artesanato aos rudes aldeões. Mas haviam levado todo o marfim que puderam encontrar, e haviam levado – Kane descobriu – sua longa e fina espada de dois gumes, e seu punhal, pistolas e bolsas de pólvora e munição. E haviam levado seu bastão, de ponta afiada, estranhamente entalhado e com cabeça de gato, o qual seu amigo, N’Longa, o feiticeiro da Costa Oeste, havia lhe dado, assim como o seu chapéu e manto.
Kane se encontrava no centro da aldeia desolada, meditando sobre o assunto – estranhas especulações lhe percorrendo a mente ao acaso. Sua conversa com os nativos da aldeia, à qual havia adentrado na noite anterior, fora da selva castigada pela tempestade, não lhe dera pista sobre a natureza dos atacantes. Os próprios nativos pouco sabiam sobre a terra na qual entraram apenas recentemente, expulsos para uma longa jornada por uma tribo rival e mais poderosa. Eles eram um povo simples, de boa natureza, o qual lhe tinha dado boa acolhida para dentro de suas cabanas e o houvera dado seus benefícios simples. O coração de Kane ardia de fúria contra seus desconhecidos destruidores, mas, mais profundamente que isso, ardia sua insaciável curiosidade – a maldição do homem inteligente.
Pois Kane havia sido espectador de um mistério à noite. E a tempestade – aquela forte chama do relâmpago – o havia mostrado, gravado momentaneamente em seu brilho, um rosto feroz e de barba negra – o rosto de um homem branco. Embora, de acordo com a razão, ali não pudesse haver homens brancos – nem mesmo saqueadores árabes – por centenas e centenas de milhas. Kane não havia tido tempo para observar a roupa do homem, mas ele tinha a vaga impressão de que a figura se vestia bizarramente. E aquela espada que, golpeando rente, o havia derrubado... certamente não era uma tosca arma nativa.
Kane olhou para o rude muro de barro que cercava a aldeia, para os portões de bambu que agora jaziam em ruínas... cortadas em pedaços pelos atacantes. A tempestade havia aparentemente diminuído quando os invasores marcharam para diante, pois ele percebeu uma larga trilha pisada por pés, a qual levava para fora do portão quebrado e para dentro da selva.
Kane apanhou um tosco machado nativo, que jazia próximo. Se alguns dos matadores desconhecidos haviam caído em batalha, seus corpos foram carregados por seus companheiros. Folhas emendadas juntas lhe serviram de chapéu temporário, para lhe proteger a cabeça da força do sol. Logo, Solomon Kane saía pelo portão quebrado, para adentrar a selva gotejante, seguindo a trilha do desconhecido.
Sob as árvores gigantes, as pegadas ficaram mais nítidas, e Kane percebeu que muitas delas eram de sandálias – um tipo de sandália que também lhe era estranho. As pegadas restantes eram de pés nus, indicando que alguns prisioneiros haviam sido levados. Aparentemente haviam partido há muito, pois, embora ele viajasse sem pausa, caminhando incansavelmente sobre suas pernas nômades, não avistou a coluna naquela marcha de um dia.
Alimentou-se com a comida que havia trazido da aldeia em ruínas, e avançou sem parar, consumido pela raiva e com o desejo de desvendar o mistério daquele rosto delineado pelo relâmpago. E mais: os atacantes haviam lhe levado as armas e, naquela terra sombria, as armas de um homem eram sua vida. O dia foi passando. Quando o sol se pôs, a selva deu lugar à terra de florestas e, ao crepúsculo, Kane saiu numa planície coberta de capim e pontilhada de árvores, e viu, na outra extremidade dela, um humilde agrupamento de colinas. As pegadas levavam diretamente para o outro lado da planície, e Kane acreditou que o destino dos incursores fosse aquelas colinas baixas e lisas.
Ele hesitou; de um lado a outro da pastagem, chegavam os rugidos trovejantes de leões, ecoando e retumbando de uns vinte pontos diferentes. Os grandes gatos estavam começando a espreitar sua presa, e seria suicídio se aventurar pelo vasto espaço aberto, armado apenas com um machado. Kane encontrou uma árvore gigante e, escalando-a, se acomodou numa bifurcação tão confortavelmente quanto pôde. Lá fora, do outro lado da planície, ele viu um ponto de luz tremeluzindo entre as colinas. Logo, na planície, se aproximando das colinas, viu outras luzes: a tremeluzente linha serpentina de fogo que se movia em direção às colinas, agora mal visíveis contra as estrelas ao longo do horizonte. Era a coluna de atacantes com seus cativos, ele percebeu. Seguravam tochas e viajavam rapidamente. As tochas eram, sem dúvida, para manterem os leões à distância, e Kane imaginou que o destino deles devia estar bastante próximo, vez que eles arriscavam uma marcha noturna naqueles pastos freqüentados por carnívoros.
Enquanto observava, via os tremeluzentes pontos de fogo se moverem para cima e, por pouco tempo, cintilarem por entre as colinas; logo, não viu mais nada. Especulando sobre o mistério de tudo isso, Kane dormiu, enquanto os ventos noturnos sussurravam mistérios obscuros da antiga África por entre as folhas, e os leões rugiam sob sua árvore, açoitando suas caudas peludas enquanto miravam para o alto com olhos famintos.
A aurora mais uma vez iluminou o dia com rosa e ouro, Solomon desceu de seu poleiro e continuou sua jornada. Comeu o restante do alimento que havia trazido, bebeu de um regato que parecia completamente puro e refletiu sobre a chance de encontrar comida por entre as colinas. Se não achasse, poderia estar numa situação precária, mas Kane já havia passado fome antes – sim, já estivera faminto, passando frio e cansado. Sua estrutura longilínea, de ombros largos, era dura como ferro e flexível como aço.
Assim, ele caminhou corajosamente pelas savanas, cautelosamente atento para leões à espreita, mas sem relaxar o passo. O sol subiu ao zênite e mergulhou a oeste. Quando se aproximou da cordilheira baixa, esta começou a ficar mais nítida. Ele viu que, ao invés de colinas ásperas, se aproximava de um baixo planalto que se erguia abruptamente da planície que o cercava, e parecia ser plano e nivelado. Viu árvores e alta grama nas bordas, mas os penhascos pareciam áridos e rugosos. Contudo, não tinham mais do que vinte e poucos metros de altura, até onde ele podia ver, e não imaginou grande dificuldade em galgá-los.
Aproximando-se deles, ele viu que eram quase rocha sólida, embora coberta por uma camada bastante espessa de terra. Havia matacões caídos em vários lugares, e ele viu que um homem ativo era capaz de escalar os penhascos em várias partes. Mas ele viu algo mais: uma larga estrada que serpenteava para o alto da íngreme inclinação do despenhadeiro, e para o alto levavam as pegadas que ele estava seguindo.
Kane se aproximou do caminho, notando a qualidade do trabalho da estrada – certamente, não se tratava de um mero caminho para animais, ou mesmo uma trilha nativa. A estrada havia sido talhada dentro do penhasco com perfeita habilidade, e era pavimentada com blocos polidamente cortados de pedra.
Cauteloso como um lobo, ele evitou a estrada; mais adiante, achou uma inclinação menos íngreme, à qual subiu. Não era um piso seguro; e os matacões, que pareciam se equilibrar no declive, ameaçavam rolar em sua direção; mas ele concluiu a tarefa sem muito perigo, e chegou à beira do penhasco.
Kane se encontrava sobre uma inclinação áspera e salpicada de matacões, a qual se erguia de forma íngreme sobre uma vastidão plana. De onde se encontrava, ele viu o largo planalto se espalhar sob seus pés, atapetado com luxuriante grama verde. E no meio... ele piscou os olhos e sacudiu a cabeça, pensando que olhava para alguma miragem ou alucinação. Não! Ainda estava lá: uma imponente cidade murada, se erguendo na planície gramada. Viu as ameias, as torres além, com pequenas figuras se movendo ao redor delas. Do outro lado da cidade, percebeu um pequeno lago, sobre cujas margens se estendiam jardins e campos luxuriantes, e vastidões de campinas ocupadas por gado que pastava.
O espanto diante da visão congelou o puritano por um instante; logo, o tinido de um calcanhar de aço numa pedra o colocou rapidamente quase encarando o homem, que havia chegado por entre os matacões. Este homem era forte e de constituição larga, quase tão alto quanto Kane e mais pesado. Seus braços nus tinham os músculos salientes, e suas pernas eram como pilares nodosos de ferro. Seu rosto era uma duplicata daquele que Kane tinha visto no clarão do relâmpago... feroz, de barba negra; o rosto de um homem branco com olhos arrogantes e predatório nariz em forma de gancho. Do pescoço taurino aos joelhos, ele vestia um corselete de escamas de ferro, e na cabeça havia um elmo de ferro. Um escudo de madeira de lei e couro, reforçado com metal, se encontrava em seu braço esquerdo, uma adaga no cinto e uma curta, porém pesada, maça de ferro na mão.
Tudo isso Kane viu num relance, quando o homem rugiu e deu um salto. O inglês percebeu, naquele momento, que não haveria algo como uma discussão, e que seria uma luta até a morte. Como um tigre, ele saltou ao encontro do guerreiro, arremetendo o machado com toda a força de sua constituição longilínea. O guerreiro aparou o golpe no escudo. O gume do machado se dobrou, o cabo se estilhaçou na mão de Kane e o escudo se despedaçou.
Levado pelo movimento de sua investida selvagem, o corpo de Kane colidiu contra seu rival, o qual deixou cair o escudo inutilizado e, cambaleando, se engalfinhou com o inglês. Fazendo força e ofegando, eles cambaleavam sobre pés bem firmados, e Kane rosnava feito um lobo ao sentir toda a força do adversário. A armadura dificultava o inglês, e o guerreiro diminuíra o aperto na maça de ferro e se esforçava ferozmente – para espatifá-la na cabeça desprotegida de Kane.
O inglês se esforçava para prender o braço do guerreiro, mas seus dedos que agarravam falharam, e a maça colidiu repugnantemente contra sua cabeça nua. Novamente, ela caiu, enquanto uma bruma de fogo obscurecia a visão de Kane, mas sua violenta torção instintiva a evitou, embora ela houvesse meio amortecido o ombro dele, rasgando a pele de modo que o sangue brotou em pingos.
Enlouquecido, Kane investiu ferozmente contra o corpo robusto daquele que brandia a maça, e uma mão a agarrar cegamente se fechou no cabo da adaga, no cinto do guerreiro. Puxando-a, esfaqueou cega e selvagemente.
Engalfinhados, os lutadores cambalearam para trás, um esfaqueado em silêncio venenoso, e o outro se esforçando para libertar o braço de modo que pudesse acertar um golpe destruidor. Os golpes curtos e meio estorvados do guerreiro resvalavam na cabeça e ombro de Kane, rasgando a pele e derramando sangue. Lanças vermelhas de agonia perfuravam o cérebro nublado do inglês. E, silenciosamente, a adaga em sua mão a estocar resvalava nas escamas de aço que protegiam o corpo de seu rival.
Ofuscado, atordoado e lutando instintivamente e sozinho como um lobo, Kane afundou os dentes, feito presas, no grande pescoço taurino de seu inimigo. A carne rasgada e um jorro abundante de sangue arrancaram um grito angustiado daquele corpo poderoso. A maça que açoitava cambaleou, e o guerreiro recuou. Eles cambalearam na beira de um precipício baixo e caíram, rolando rapidamente e agarrados. Chegaram ao pé da inclinação, e Kane mais acima. A adaga em sua mão cintilou acima de sua cabeça e reluziu para baixo, afundando até o cabo na garganta do guerreiro. O corpo de Kane balançou para a frente com o golpe, e ele jazeu inconsciente sobre seu inimigo morto.
Jaziam num poço largo de sangue. No céu, apareceram pequenos pontos, negros contra o azul, girando, circulando e mergulhando cada vez mais para baixo. Logo, de dentro dos desfiladeiros, apareceram homens, similares em trajes e aparência ao que jazia morto sob o corpo inconsciente de Kane. Haviam sido atraídos pelos ruídos da luta, e agora estavam próximos, discutindo o assunto em tons ásperos e guturais. Havia escravos um pouco distantes deles em total silêncio.
Eles arrastaram os corpos dali e descobriram que um estava morto, e o outro provavelmente morrendo. Então, após alguma discussão, fizeram uma padiola com suas lanças e suspensórios de couro para bainhas de espadas, e ordenaram a seus escravos que erguessem os corpos e os carregassem. O grupo partiu em direção à cidade, que luzia estranhamente no meio da planície gramada.
2)
Solomon Kane recuperou a consciência. Estava deitado num leito coberto com peles finamente ornamentadas, num quarto espaçoso, cujo chão, paredes e teto eram de pedra. Havia uma janela, fortemente trancada, e uma única porta. Do lado de fora, havia um guerreiro robusto, muito parecido com o homem que ele havia matado.
Então, Kane descobriu outra coisa: havia correntes douradas em seus pulsos, pescoço e tornozelos. Estavam unidas num padrão intrincado, e amarradas a um aro fixo na parede com uma forte tranca de prata.
Kane descobriu que seus ferimentos haviam sido enfaixados, e ponderou sobre sua situação de escravo, acolhido com comida e um tipo de vinho púrpura. O inglês não deu atenção à conversa e bebeu intensamente. O vinho estava drogado e ele logo caiu no sono. Várias horas depois, ele acordou, e percebeu que as ataduras haviam sido trocadas. Um guarda diferente se encontrava do lado de fora da porta... um homem do mesmo aspecto do soldado anterior, contudo: musculoso, de barba negra e vestido em armadura.
Desta vez em que acordou, ele se sentiu forte e revigorado. Kane rapidamente decidiu que, quando o escravo retornasse, ele procuraria aprender algo dos curiosos arredores no qual caíra. O barulho de sandálias de couro nos azulejos anunciou a chegada de alguém, e Kane se ergueu sentado em seu leito quando a figura adentrou o quarto.
No fundo, se movia furtivamente o escravo que havia trazido a comida de Kane. Diante dele, um bando de homens se reunia num pequeno grupo: vestidos com túnicas, inescrutáveis, com rostos barbeados e cabeças raspadas. E, um pouco afastado deles, havia um homem cujo aspecto dominava todo o cenário. Era alto, com roupas de seda presas por um cinto de escamas douradas. Seu cabelo e barba preto-azulados eram curiosamente encaracolados; e seu rosto era aquilino, cruel e predatório. A arrogância dos olhos, a qual Kane percebeu como característica da raça desconhecida, estava muito mais evidente neste homem do que nos outros. Em sua cabeça havia um aro de ouro curiosamente entalhado, e em sua mão um bastão dourado. A atitude dos outros em relação a ele era de extrema subserviência, e Kane acreditou que estava olhando para o rei, ou para o sumo-sacerdote da cidade.
Ao lado desta pessoa, havia um homem mais baixo e gordo, de rosto e cabeça raspados, vestido em túnicas iguais às usadas pelas pessoas menos importantes no fundo, mas muito mais suntuosas. Na mão, ele levava um chicote composto de seis tiras de couro, amarradas a um cabo incrustado de jóias. As tiras terminavam em puas triangulares de metal, e o todo representava o instrumento mais cruel de castigo que Kane já havia visto. O homem que o segurava tinha olhos pequenos, astutos e ardilosos, e toda a sua atitude era uma mistura de bajuladora subserviência ao homem com o cetro, e de intolerante tirania para com os seres inferiores.
Kane lhes devolveu o olhar, tentando reconhecer um indefinível senso de familiaridade. Havia algo nas feições desse povo que sugeria vagamente os árabes – embora fossem estranhamente diferentes de qualquer árabe que ele tivesse visto. Falavam simultaneamente, e sua linguagem tinha, às vezes, um som de alguma forma familiar. Mas ele não conseguia definir estes vagos lampejos de meia-lembrança.
Por fim, o homem alto com o cetro se virou e caminhou majestosamente para a frente, seguido pelos seus companheiros submissos. Kane foi deixado sozinho. Após algum tempo, o gordo segundo-em-comando retornou, com meia-dúzia de soldados e acólitos. Entre eles, estava o jovem escravo que trouxe a comida de Kane, e uma figura alta e sombria, usando apenas uma tanga, e que trazia uma chave grande no cinto. Os soldados cercaram Kane, com as lanças preparadas, enquanto este homem soltava as correntes do aro na parede. Eles o cercaram e, agarrando-lhe as correntes, indicaram para que ele os seguisse. Rodeado por seus captores, Kane saiu do quarto para o que parecia ser uma série de largas galerias, serpenteando ao redor da vasta estrutura. Piso após piso, eles subiram e finalmente adentraram um compartimento muito semelhante ao que haviam deixado e com mobília semelhante. As correntes de Kane foram presas a um aro, na parede de pedra próxima à única janela. Ele podia ficar de pé, deitado ou sentado no leito coberto de peles, mas não conseguia dar meia dúzia de passos em qualquer direção. Vinho e comida foram colocados à sua disposição.
Seus captores o deixaram, e Kane percebeu que a porta não estava trancada e que não havia nenhum guarda colocado diante dela. Ele imaginou que eles achavam suas correntes suficientes para contê-lo, e, após testá-las, percebeu que estavam certos. Do contrário, não haveria outra razão para a aparente negligência deles, como havia percebido.
O inglês olhou para fora da porta, a qual era maior que a outra, e não tão obstruída. Estava olhando para baixo, em direção à cidade, desde uma altura considerável. Abaixo dele, havia ruas estreitas, largas avenidas flanqueadas pelo que pareciam serem colunas e leões de pedra entalhada, e acima, grandes extensões de casas com tetos planos. Muitas das construções eram de pedra, e as outras, de tijolos secos ao sol. Havia uma imponência vagamente desagradável ao redor desta arquitetura – um tema sombrio e pesado, que parecia sugerir um caráter taciturno e levemente inumano dos construtores.
Um muro que cercava a cidade era alto e grosso, com torres espaçadas a intervalos regulares. Ele viu figuras com armaduras se moverem como sentinelas ao longo da muralha, e meditou sobre o aspecto guerreiro deste povo. As ruas e mercados abaixo dele apresentavam um labirinto colorido, enquanto o povo ricamente vestido se movia num panorama sempre mutável.
Quanto à construção que lhe servia de prisão, Kane pouco conseguiu imaginar de sua natureza. Contudo, abaixo de si, ele viu uma série de andares sólidos descendo como degraus gigantes. Deveria ser, ele achou com uma sensação bastante desagradável, construída como a fabulosa Torre de Babel: uma camada sobre outra.
Kane voltou sua atenção ao quarto. Os muros eram ricos em decorações murais, entalhes pintados em várias cores, bem-matizadas e combinadas. De fato, a arte era de um padrão tão elevado quanto qualquer uma que o inglês havia visto na Ásia ou Europa. Muitas das cenas eram de guerra ou de caça – homens fortes, com barbas negras que eram freqüentemente encaracoladas, em armaduras, matando leões ou expulsando outros guerreiros diante deles. Alguns dos guerreiros perseguidos eram negros nus; outros lembravam bastante seus perseguidores.
As figuras humanas não eram tão bem retratadas quanto as das feras; eram convencionadas a um ponto que freqüentemente dava a elas um aspecto um tanto rígido. Mas os leões eram retratados com vívido realismo. Algumas das cenas mostravam os matadores de barbas negras em carruagens, puxadas por cavalos de respiração ardente, e Kane teve novamente aquela estranha sensação de familiaridade, como se já houvesse visto estas cenas – ou cenas semelhantes – antes. As carruagens e cavalos, ele percebeu, eram inferiores aos leões em aparência de vida. A imperfeição não estava na estilização, mas na ignorância do artista em relação ao tema, Kane percebeu, notando erros que pareciam inadequados, considerando-se a habilidade com a qual haviam sido retratados.
O tempo passou rapidamente, enquanto ele refletia sobre os entalhes. No momento seguinte, o escravo silencioso entrou com comida e vinho.
Quando ele serviu os alimentos, Kane falou com ele num dialeto das tribos do mato, a uma das quais ele acreditou que o homem pertencia, pois notara certas cicatrizes em suas feições. O rosto obtuso brilhou levemente, e o homem respondeu numa língua similar o bastante para Kane entendê-lo.
- Que cidade é esta?
- Ninn, mestre.
- Quem é esta gente?
O escravo bronco sacudiu a cabeça, em dúvida:
- Eles ser povo muito antigo, mestre. Têm morado aqui há muito tempo.
- Foi o rei deles que veio ao meu quarto com os homens dele?
- Sim, mestre. Aquele ser Rei Asshur-ras-arab.
- E o homem com o chicote?
- Yamen, o sacerdote, mestre persa.
- Por que me chama assim? – perguntou Kane, embaraçado.
- Os amos lhe nomearam assim, mestre...
O escravo recuou e sua pele ficou pálida, quando a sombra de uma figura alta atravessou o vão da porta. Um gigante seminu, de cabeça raspada, entrou, e o escravo caiu de joelhos, lamentando o próprio terror. Dedos poderosos se fecharam ao redor do pescoço apavorado, e Kane viu os olhos do infeliz escravo se sobressaindo e sua língua saindo rapidamente da boca aberta. Seu corpo se contorcia e agitava em vão; mãos se agarravam cada vez mais fracamente em pulsos de ferro. Logo, ele amoleceu nas mãos de seu matador. Quando o guerreiro de cabeça raspada o soltou, o cadáver despencou flácido ao chão. O guerreiro bateu palmas, e um par de escravos entrou. Seus rostos ficaram pálidos diante da visão do corpo de seu companheiro, mas com um gesto, eles indiferentemente agarraram os pés do homem morto e lhe arrastaram o corpo.
O guerreiro se virou para a porta, e seus olhos escuros e implacáveis encontraram o olhar de Kane, como que em aviso. O ódio latejou nas têmporas de Kane, e foram os olhos sombrios que caíram diante da fúria fria do olhar feroz do inglês. O homem partiu silenciosamente, deixando Kane com suas meditações.
Quando a comida foi novamente trazida para Kane, ela foi levada por um jovem escravo, de membros longos e esguios, e aparência benévola e inteligente. Kane não tentou falar com ele; aparentemente, os amos não desejavam que seu cativo aprendesse qualquer coisa sobre eles por algum motivo ou outro.
Por quantos dias Kane ficou no quarto alto, ele nunca soube. Cada dia era exatamente como o anterior, e ele perdeu a conta do tempo. Às vezes, o sacerdote Yamen aparecia e o observava com um ar satisfeito, que fazia os olhos de Kane se avermelharem com o desejo de matar; às vezes, o gigante assassino aparecia silenciosamente, para desaparecer também silenciosamente.
Os olhos de Kane se firmavam na chave que pendia do cinto do gigante silencioso. Se ele pudesse por apenas um momento alcançar... Mas seu captor tinha o cuidado de ficar fora do alcance, exceto quando Kane era cercado por guerreiros com azagaias prontas.
Então, uma noite naquele quarto, chegou o sacerdote Yamen, com o gigante silencioso chamado Shem e uns 50 acólitos e soldados. Foi Shem quem destrancou as correntes de Kane da parede e, entre duas colunas de soldados e sacerdotes, o inglês foi escoltado ao longo dos corredores serpenteantes, que eram iluminados por tochas resplandecentes, fixas nos nichos ao longo das paredes, e seguras nas mãos dos sacerdotes.
Naquela luz, Kane observou novamente as figuras entalhadas, que avançavam interminavelmente ao redor das paredes maciças dos corredores. Muitas delas estavam em tamanho natural; algumas obscurecidas e um tanto desfiguradas como se pela idade. Muitas delas, Kane notou, retratavam homens em carruagens puxadas por cavalos, e ele concluiu que as figuras posteriores e imperfeitas, de montarias e carruagens, haviam sido copiadas destes entalhes mais velhos. Aparentemente, não havia mais cavalos ou carruagens na cidade. Várias diferenças raciais eram evidentes nas figuras humanas – os narizes curvos e negras barbas encaracoladas da raça dominante se mostravam claramente distintos. Seus oponentes eram, às vezes, homens negros; às vezes, homens como eles; e ocasionalmente, homens altos, de membros longos, com feições inconfundivelmente árabes. Era surpreendente notar que, em algumas das cenas mais antigas, os homens desenhados tinham aparência e feições totalmente diferentes das dos ninnitas. Estes estranhos eram sempre retratados em cenas de batalhas e de forma significativa, Kane notou; mas nem sempre em retratos. Freqüentemente, pareciam estar ganhando a luta, e em nenhum lugar o inglês conseguiu encontrá-los retratados como escravos. Mas o que o interessava era a familiaridade: aquelas feições entalhadas eram como a fisionomia de um amigo, numa terra estranha ao aventureiro. Apesar de suas armas e roupas estranhas e bárbaras, poderiam ser ingleses, com suas feições européias e cachos amarelos.
Em algum lugar, há muito, muito tempo, Kane sabia, os ancestrais dos homens de Ninn haviam guerreado contra homens aparentados com os próprios ancestrais dele. Mas, em que era, e em qual terra? Certamente, as cenas não estavam postas no país que agora era a terra dos ninnitas, pois estas cenas mostravam planícies férteis, colinas cobertas de grama e rios largos. Sim, e grandes cidades como Ninn, mas estranhamente diferentes.
E, subitamente, Kane se lembrou onde tinha visto entalhes semelhantes, onde reis com negras barbas encaracoladas matavam leões, desde as carruagens. Ele os vira em pedaços desagregados de alvenaria, que marcavam o local de uma cidade há muito esquecida da Mesopotâmia, e os homens haviam lhe dito que aquelas ruínas eram tudo e que restava de Nínive a Sangrenta, a amaldiçoada por Deus.
O inglês e seus captores haviam alcançado a camada térrea do grande templo, e passaram por entre colunas enormes, atarracadas e esculpidas como as paredes. Finalmente, chegaram a um vasto espaço circular, entre a parede maciça e os pilares que flanqueavam. Esculpido da pedra da enorme parede, havia um ídolo colossal – feições entalhadas, tão desprovidas da fraqueza e bondade humana quanto o rosto de um monstro da Idade da Pedra.
Diante do ídolo, num trono de pedra na sombra dos pilares, sentava-se o Rei Asshur-ras-arab. A luz da fogueira salpicava-lhe o rosto fortemente esculpido, de modo que Kane, a princípio, pensou que fosse um ídolo que se sentasse no trono.
Diante do deus e de frente para o trono do rei, havia um trono menor. Um braseiro, num tripé dourado, se encontrava diante deste; carvões ardiam no braseiro, e a fumaça se encaracolava indolentemente para cima.
Uma graciosa túnica, de tremeluzente seda verde, foi posta sobre Kane, escondendo suas roupas esfarrapadas e manchadas, e as correntes douradas. Ele foi levado a se sentar no trono diante do braseiro, e o fez silenciosamente. Então, seus calcanhares e pulsos foram habilmente presos ao trono, escondidos pelas dobras da túnica de seda.
Os sacerdotes menores e os soldados foram embora, deixando apenas Kane, o sacerdote Yamen e o rei sobre seu trono. Atrás das sombras, por entre as colunas em forma de árvores, se vislumbrava ocasionalmente um brilho de metal, como vagalumes no escuro. Guerreiros ainda estavam à espreita lá, fora da luz. Ele sentiu que algum tipo de cena seria estabelecido. Kane percebeu uma sugestão de charlatanismo em todo o procedimento.
Agora, Asshur-ras-arab erguia um bastão dourado e batia uma vez sobre um gongo que pendia próximo ao seu trono. Uma nota cheia e doce, como um carrilhão distante, ecoou entre as extensões obscuras do templo sombreado. Ao longo da avenida escura por entre as colunas, veio um grupo de homens, os quais Kane imaginou serem os nobres daquela cidade fantástica. Eram homens altos, de barbas negras e modos soberbos, vestidos em seda tremeluzente e ouro lampejante. E, entre eles, caminhava alguém preso por correntes douradas: um jovem, cuja atitude parecia uma mistura de apreensão e desafio.
O grupo se ajoelhou diante do rei, curvando suas cabeças até o chão. A uma palavra dele, eles se levantaram, e encararam o inglês e o deus atrás dele. Agora Yamen – com a luz da fogueira reluzindo em sua cabeça raspada e dentro de seus olhos malignos, de modo que parecia um demônio barrigudo – gritou algum tipo de canto sobrenatural e lançou um punhado de pó dentro do braseiro. Instantaneamente, uma fumaça esverdeada se encapelou para o alto, ocultando parcialmente o rosto de Kane. O inglês teve ânsias de vômito; o cheiro e sabor eram extremamente desagradáveis. Ele se sentiu embriagado e drogado. Seu cérebro ficou tonto, como o de um bêbado, e ele puxou violentamente suas correntes. Apenas semi-consciente do que dizia, pragas fora do comum explodiram de seus lábios.
Ele estava fracamente consciente de que Yamen bradou ferozmente diante de suas pragas, o sacerdote se curvando para a frente em atitude de escuta. Então, o pó se apagou, a fumaça diminuiu e Kane ficou embriagado e desnorteado sobre o trono.
Yamen se virou em direção ao rei e se curvou profundamente. Endireitou-se e, com os braços estendidos, falou num tom sonoro. O rei solenemente repetiu suas palavras e Kane viu o rosto do nobre prisioneiro ficar branco. Então, seus captores lhe agarraram os braços, e o grupo se afastou devagar, seus passos voltando medonhamente pela vastidão sombreada.
Como fantasmas silenciosos, os soldados saíram das sombras e o desacorrentaram. Novamente, eles se agruparam ao redor de Kane e o levaram cada vez mais para cima, através dos corredores obscuros, até seu quarto, onde Shem novamente lhe prendeu as correntes à parede. Kane se sentou em seu leito, com a mão no queixo, tentando achar alguma razão em todas as ações bizarras que havia testemunhado. E, dali a pouco, ele percebeu que havia uma agitação exagerada nas ruas abaixo.
O inglês olhou, curioso, para fora de sua janela. Grandes fogos brilhavam na praça do mercado e silhuetas de homens, curiosamente destacadas, iam e vinham. Pareciam estar se ocupando ao redor de uma figura no centro do mercado, mas se reuniam tão densamente ao redor dela, que ele não conseguiu entender nada daquilo. Um círculo de soldados rodeava o grupo; a luz das fogueiras se refletia em suas armaduras. Ao redor deles, gritava uma multidão desordenada e turbulenta, berrando e bradando.
Súbito, um grito de agonia medonha atravessou a algazarra, e os gritos se apagaram por um instante, para serem renovados com mais força que antes. A maior parte do clamor soou como protesto, Kane pensou, embora, misturado com ele, houvesse o som de escárnios, uivos zombeteiros e risada diabólica. E, durante toda a tagarelice, soaram aqueles guinchos horríveis e insuportáveis.
Um rápido ruído de pés descalços soou nos ladrilhos, e o jovem escravo chamado Sula correu para dentro e enfiou a cabeça na janela, ofegando de agitação. A luz das fogueiras lá de fora brilhava em seu rosto contorcido.
- O povo luta com os lanceiros. – ele exclamou, esquecendo, em sua agitação, a ordem de não conversar com o forasteiro cativo – A maioria do povo amava muito o jovem Príncipe Bel-lardath... ó, mestre, não havia perversidade nele! Por que você ordenou que o rei o esfolasse vivo?
- Eu?!! – exclamou Kane, surpreendido e assombrado – Não falei nada! Nem sequer conheço este príncipe! Nunca o vi.
Sula virou a cabeça e olhou diretamente para o rosto de Kane.
- Agora sei o que eu havia pensado secretamente, mestre. – ele disse na língua Bantu que Kane entendia – Você não é deus, nem porta-voz de um deus, mas um homem como eu havia visto, antes que os homens de Ninn me capturassem. Outrora, quando eu era pequeno, vi homens fundidos em seu molde, os quais vieram com seus servos nativos e mataram nossos guerreiros com armas que falavam com fogo e trovão.
- De fato, sou apenas um homem. – respondeu Kane, atordoado – Mas, o que... Eu não entendo. O que estão fazendo lá na praça do mercado?
- Estão esfolando vivo o Príncipe Bel-lardath – respondeu Sula – Foi dito livremente entre os mercados que o rei e Yamen odiavam o príncipe, que é do sangue de Abdulai. Mas ele tinha muitos seguidores entre o povo, especialmente entre os Arbii, e nem mesmo o rei ousava condená-lo à morte. Mas quando você foi trazido para dentro do templo, secretamente, sem que ninguém na cidade o soubesse, Yamen disse que você era porta-voz dos deuses. E disse que Baal havia revelado a ele que o Príncipe Bel-lardath havia despertado a fúria dos deuses. Assim, lhe trouxeram para diante do oráculo dos deuses...
Kane praguejou nauseado. Que coisa incrível... e horrível... pensar que suas fortes blasfêmias em Inglês haviam condenado um homem a uma morte horrível. Sim... o astuto Yamen havia traduzido suas palavras impensadas ao seu próprio modo. E assim, o príncipe, a quem Kane nunca tinha visto antes, se contorcia diante das facas esfoladoras de seus executores na praça do mercado lá embaixo, onde a multidão guinchava ou escarnecia.
- Sula – ele disse –, como se chama este povo?
- Assírios, mestre. – respondeu o escravo, desatento, olhando com horrorizado fascínio para a cena pavorosa abaixo.
3)
Nos dias seguintes, Sula encontrava oportunidades, de tempos em tempos, para conversar com Kane. Ele pouco podia dizer ao inglês sobre as origens dos homens de Ninn. Só sabia que eles tinham vindo do leste há muito, muito tempo, e construído sua imponente cidade no planalto. Apenas as lendas obscuras de sua tribo falavam dele. Seu povo vivia nas planícies onduladas bem ao sul, e havia guerreado contra o povo da cidade por eras incalculáveis. Sua tribo era chamada de Sulas, e eles eram fortes e guerreiros, ele disse. De tempos em tempos, faziam ataques-surpresa aos ninnitas, e ocasionalmente os ninnitas retribuíam a incursão, mas não se aventuravam freqüentemente para longe do planalto. Num daqueles ataques-surpresa, Sula havia sido capturado. Ultimamente, os ninnitas haviam sido forçados a irem mais longe, em busca de escravos, quando as tribos evitavam o planalto sombrio, e geração a geração, voltavam cada vez mais para dentro da selva.
A vida de um escravo em Ninn era dura, disse Sula, e Kane acreditava nele ao ver as marcas de chicote, cavalete e ferro quente no corpo do jovem. O passar das eras não havia suavizado o espírito dos assírios, nem lhes modificado a violência... uma máxima no Leste antigo.
Kane tinha muita curiosidade diante da presença deste povo antigo nesta terra desconhecida, mas Sula não tinha mais nada para dizê-lo. Vieram do Leste, há muito, muito tempo – era tudo o que Sula sabia. Agora o inglês sabia por que suas feições e linguagem haviam parecido remotamente familiares. Suas feições eram os traços originais semitas, agora modificados nos habitantes modernos da Mesopotâmia, e muitas de suas palavras tinham uma inconfundível semelhança com certas palavras e frases hebraicas.
Kane soube, através de Sula, que nem todos os habitantes eram de um só sangue. Eles não se miscigenavam com seus escravos; ou, se o faziam, o filho de tal união era instantaneamente morto. A raça dominante, Sula havia aprendido, era assíria; mas havia algumas pessoas do povo, tanto plebeus quanto nobres, que eram chamadas “Arbii”. Eram como os assírios, embora um pouco diferentes.
Outro grupo eram os “Kaldii” – feiticeiros e adivinhos, que não eram grandemente estimados pelos verdadeiros assírios. Shem, disse Sula, e a classe dele, era elamita, e Kane se sobressaltou diante do termo bíblico. Não havia muitos deles, mas eles eram os instrumentos dos sacerdotes – matadores e autores de feitos estranhos e desumanos. Sula havia sofrido nas mãos de Shem, como todos os outros escravos do templo.
E era neste mesmo Shem em quem Kane concentrava os olhos ansiosos. No seu cinto pendia a chave dourada que significava liberdade. Mas, com que lendo a expressão nos olhos frios do inglês, Shem andava com cuidado – um lúgubre gigante escuro, com um sombrio rosto entalhado. Ele não chegava ao alcance dos longos braços de aço do cativo, exceto quando acompanhado por guardas armados.
Não passou um dia sem que Kane ouvisse o bater do açoite, os gritos de escravos agonizantes sob o ferro quente, o chicote ou a faca de esfolar. Ninn era um verdadeiro Inferno, ele refletiu, governado pelo demoníaco Asshur-ras-arab e seu ardiloso e lascivo subalterno, o sacerdote Yamen. O rei também era sumo-sacerdote, como haviam sido seus ancestrais da realeza na antiga Nínive. E Kane percebeu por que eles o chamavam de persa, vendo em si próprio uma semelhança com aqueles selvagens e antigos homens tribais arianos, que haviam cavalgado de suas montanhas para varrerem o império assírio da terra. Certamente, foi fugindo daqueles conquistadores loiros que o povo de Ninn havia adentrado a África.
Os dias passaram, e Kane permaneceu prisioneiro na cidade de Ninn. Mas ele não foi mais ao templo como oráculo.
Um dia, houve confusão na cidade. Kane ouviu as trombetas soando sobre o muro, e o rufar de timbales. O aço retiniu nas ruas e o som de homens marchando se ergueu até seu ninho. Olhando para fora, além do muro e de um lado a outro do planalto, ele viu uma horda de desnudos homens negros se aproximar da cidade em formação livre. Suas lanças cintilavam ao sol, seus capacetes de plumas de avestruz esvoaçavam na brisa, e seus gritos chegavam levemente até ele.
Sula entrou correndo, com os olhos brilhando.
- Meu povo! – ele exclamou – Eles vêm contra os homens de Ninn. Meu povo é de guerreiros! Bogaga é chefe de guerra... Katayo é o rei. Os chefes de guerra dos Sulas defendem suas honras pela força de suas mãos, pois qualquer homem forte o bastante para matá-lo com as mãos nuas se torna chefe de guerra em seu lugar. Assim, Bogaga ganhou o cargo de chefe, mas demorarão muitos dias antes que alguém o mate, pois ele é o mais forte chefe de guerra deles todos!
A janela de Kane fornecia uma visão melhor por cima do muro do que qualquer outra, pois seu quarto estava no andar mais alto do templo de Baal. Yamen veio ao seu quarto, com seus guardas sombrios, Shem e outro elamita sombrio. Estavam fora do alcance de Kane, olhando através de uma das janelas.
Os enormes portões se abriram: os assírios estavam marchando para fora, para encontrarem seus inimigos. Kane calculou que ali havia 1500 guerreiros armados; ainda havia 300 na cidade, a guarda pessoal do rei, as sentinelas e tropas residenciais dos vários nobres.
A hoste, Kane notou, estava dividida em quatro partes. A central, que consistia em 600 homens, enquanto cada flanco ou ala era composto de 300. Os 300 restantes marchavam em formação compacta atrás da central, entre as alas.
Os guerreiros estavam armados com azagaias, espadas, maças e pesados arcos curtos. Em suas costas, havia aljavas eriçadas de flechas.
Os ninnitas saíram em marcha para a planície em perfeita formação e tomaram suas posições, aparentemente aguardando o ataque. Este não demoraria a acontecer. Kane estimou que os atacantes fossem pelo menos 3000 guerreiros, e mesmo àquela distância, ele pôde apreciar sua esplêndida estatura e coragem. Mas eles não tinham sistema ou formação para a guerra. Era numa grande, irregular e desordenada horda que eles corriam para a frente, para serem encontrados por uma fulminante chuva de flechas que lhes atravessava os escudos de pele de touro, como se fossem feitos de papel.
Os assírios haviam suspendido seus escudos ao redor dos pescoços, e estavam puxando e atirando metodicamente, não em rajadas regulares, como os arqueiros de Crécy e Azincourt fariam, mas firmemente e sem pausa. Com coragem indiferente, os Sulas se arremessavam para a frente, para dentro dos dentes da terrível saraivada. Kane viu linhas inteiras se dissiparem, e a planície ficar coberta de mortos. Mas os invasores avançavam, desperdiçando suas vidas como água. Kane se maravilhava diante da perfeita disciplina dos soldados semitas, que atravessavam seus movimentos como se estivessem na área de exercícios. As alas haviam se movido para a frente, suas pontas frontais se unindo ao fim da fila central e apresentando uma frente intacta. Os homens na companhia entre as alas mantinham suas posições, imóveis, não tendo ainda tido qualquer participação na batalha.
A horda invasora foi quebrada, cambaleando para trás sob os disparos mortíferos, contra os quais carne e sangue eram incapazes de resistir. A grande crescente desorganizada foi partida em pedaços e os Sulas estavam caindo desordenadamente, devido aos disparos do flanco direito e central, perseguidos pelas linhas de tiro das setas dos guerreiros ninnitas. Mas, no flanco direito, uma turba espumante de talvez 400 lutadores selvagens havia irrompido através da temível barragem e, gritando feito demônios, se chocaram contra a ala assíria. Mas, antes que as lanças se colidissem, Kane viu a subdivisão da reserva entre as alas girar e marchar aceleradamente para apoiar a ala ameaçada. Contra essa dupla muralha de 600 guerreiros encouraçados, o furioso ataque cambaleou, se quebrou e oscilou para trás.
Espadas lampejavam por entre as lanças, e Kane viu os guerreiros nus caindo como trigo diante da foice e as azagaias dos assírios dizimando-os. Nem todos os cadáveres no solo sangrento eram dos atacantes, mas onde jazia um assírio morto ou ferido, dez Sulas haviam morrido.
Agora, os atacantes estavam em fuga total pela planície, e as fileiras de ferro se moviam para a frente em passo rápido, porém organizado, disparando a cada passo, caçando os vencidos de um lado a outro do planalto e brandindo a adaga nos feridos. Não levaram prisioneiros. Os Sulas não eram bons escravos, como Solomon acabava de ver.
No quarto de Kane, os espectadores estavam aglomerados nas janelas, com os olhos grudados de fascínio diante da cena selvagem e sangrenta. O peito de Sula ofegava de fúria; seus olhos resplandeciam com a sede de sangue do selvagem, à medida que os gritos, a matança e as lanças dos homens de sua tribo inflamavam toda a ferocidade dormente em sua alma de guerreiro
Com o grito de uma pantera louca por sangue, ele se lançou às costas de seus amos. Antes que qualquer um pudesse erguer a mão, ele se apoderou da adaga no cinto de Shem e enfiou-a até o cabo entre as espáduas de Yamen. O sacerdote guinchou como uma mulher ferida e caiu de joelhos, com o sangue jorrando, e os elamitas se aproximaram do escravo furioso. Shem tentou lhe agarrar o pulso, mas o outro elamita e Sula giraram rapidamente para um abraço mortífero, brandindo suas facas, as quais ficaram instantaneamente vermelhas até o cabo.
Com os olhos resplandecendo e espuma em seus lábios, eles rolaram e se revolveram, talhando e apunhalando. Shem, tentando agarrar o pulso de Sula, foi atingido pelos corpos que colidiam, sendo lançado violentamente para o lado. Ele escorregou e se estatelou contra o leito de Kane.
Antes que ele pudesse se mover, o inglês acorrentado estava sobre ele, como um grande gato. Finalmente, havia chegado o momento pelo qual esperava! Shem estava ao seu alcance e, quando tentou se erguer, o joelho de Kane lhe golpeou o peito, quebrando-lhe as costelas. Os dedos de ferro de Kane se fecharam na sua... garganta. Solomon mal percebia os terríveis esforços de animal selvagem do elamita, que procurava em vão se livrar daquele aperto. Uma bruma vermelha cobria a visão do inglês e, através dela, ele viu o horror crescendo nos olhos inumanos de Shem... viu aqueles olhos se dilatando e ficando injetados de sangue... viu a boca escancarar e a língua sair, quando a cabeça raspada foi curvada para trás num ângulo horrível; logo, o pescoço de Shem se quebrou como um galho grosso, e o corpo retesado ficou mole nas mãos de Kane.
O inglês se apoderou da chave no cinto do morto e, no instante seguinte, se ergueu livre, sentindo uma onda selvagem de alegria cair sobre ele enquanto flexionava os membros tolhidos. Olhou ao redor do quarto. Yamen perdia a vida entre golfadas sobre os ladrilhos, e Sula e o outro elamita jaziam mortos, agarrados aos braços férreos uns dos outros, literalmente cortados em pedaços.
Kane correu rapidamente do quarto. Não tinha nenhum plano, exceto escapar do templo ao qual passara a odiar como um homem odeia o Inferno. Desceu correndo as escadas sinuosas, sem se deparar com ninguém. Evidentemente, os criados do templo estiveram amontoados nos muros, assistindo à batalha. Mas, no andar mais baixo, ele ficou cara a cara com um dos guardas do templo. O homem ficou estupidamente boquiaberto diante dele... e o punho de Kane se espatifou contra seu queixo barbudo, deixando-o inconsciente ao chão. Kane se apoderou de sua pesada azagaia. Veio-lhe o pensamento de que talvez as ruas estivessem desertas enquanto o povo assistia à batalha, e ele podia atravessar a cidade e escalar o muro, no lado próximo ao lago.
Correu através do templo arborizado por colunas e para fora do enorme portal. Havia um grupo disperso de pessoas, que guincharam e fugiram à visão da estranha figura que saía do templo sombrio. Kane desceu apressadamente a rua, em direção ao portão oposto, não vendo mais que umas poucas pessoas. Logo, ao virar para uma rua lateral, pensando em cortar caminho, ele ouviu um rugido trovejante.
À sua frente, ele viu quatro escravos carregando uma liteira ricamente ornamentada, como as que os nobres usam para passear. O ocupante era uma jovem, cujas roupas enfeitadas de jóias mostravam sua importância e riqueza. E agora, ao redor da esquina, vinha rugindo uma grande forma castanho-amarelada. Um leão, solto nas ruas da cidade!
Os escravos largaram a liteira e fugiram, guinchando, enquanto as pessoas no alto das casas gritavam. A garota deu um só grito, se arrastando para cima no próprio caminho do monstro que atacava. Ela ficou encarando-o, congelada de terror.
Solomon Kane, ao primeiro urro da fera, experimentou uma feroz satisfação. Ninn se tornara tão odiável para ele, que o pensamento de um animal selvagem, rugindo por entre suas ruas e devorando seus cruéis habitantes, tinha dado ao puritano uma indiscutível satisfação. Mas agora, ao ver a figura lastimosa da jovem encarando o devorador de homens, ele sentiu um tormento de piedade por ela, e agiu.
Quando o leão se lançou no ar, Kane arremessou a azagaia com toda a força de sua constituição férrea. Ela atingiu bem atrás da grande espádua, trespassando o corpo castanho-amarelado. Um urro ensurdecedor irrompeu da fera, que girou a uma grande distância para o lado, como se houvesse deparado com uma parede sólida; e, ao invés de garras dilacerantes, foi o pesado ombro peludo que bateu na figura frágil de sua vítima, arremessando-a para o lado enquanto a grande fera se espatifava na terra.
Kane, esquecido de sua própria situação, se lançou para a frente e ergueu a garota, tentando verificar se ela estava ferida. Esta foi uma tarefa fácil, vez que a roupa dela, assim como a da maioria das mulheres nobres assírias, era tão escassa a ponto de consistir mais em ornamentos que em revestimento. Kane se certificou de que ela estava apenas machucada e muito assustada.
Ele ajudou-a a se levantar, ciente de que uma multidão de espectadores curiosos o cercava. Passou por entre eles, que não fizeram qualquer tentativa de pará-lo. Súbito, um sacerdote apareceu e gritou algo, apontando para ele. O povo instantaneamente recuou, mas meia dúzia de soldados em armadura se adiantou, com as azagaias prontas. Kane encarou o sacerdote, a fúria lhe fervendo na alma. Estava pronto para saltar no meio deles e fazer o maior estrago possível, com as mãos nuas, antes de morrer... quando de cima das pedras da rua, soou o caminhar de homens em marcha. Um grupo de guerreiros apareceu, com as lanças vermelhas pela luta recente.
A garota gritou e correu para a frente, para lançar os braços ao redor do pescoço robusto do jovem oficial no comando. Seguiu-se um rápido ardor de conversa, a qual Kane naturalmente não conseguiu entender. Então, o oficial falou laconicamente com os guardas, os quais se afastaram. Ele avançou em direção a Kane, com as mãos vazias estendidas e um sorriso nos lábios.
Sua atitude era extremamente amigável, e o inglês percebeu que ele estava tentando expressar sua gratidão pelo salvamento da garota, a qual era sem dúvida sua irmã ou namorada. O sacerdote espumou e praguejou, mas o jovem nobre lhe respondeu em poucas palavras e fez sinais para Kane acompanhá-lo. Então, quando o inglês hesitou, desconfiado, ele puxou a própria espada e a ofereceu para Kane, com o cabo em direção a este. Kane pegou a arma; poderia ser uma forma de cortesia tê-la recusado, mas Kane estava pouco disposto a arriscar-se, e sentiu muito mais seguro com uma arma na mão.
Tradução: Fernando Neeser de Aragão.
Do blog Crônicas da Ciméria.