domingo, 20 de março de 2016

CONTO: BIDISHA

JOSÉ MARCELO
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De uma coisa eu sei: o sangue coagulado que escorria do olho direito de Bidisha, o esperma que secara no canto de sua boca, os pêlos pubianos e escuros nas palmas de suas mãos enrijecidas como garras e a umidade entre suas pernas entreabertas – tudo aquilo contribuía para formar uma imagem que era como um quadro expressionista ou surrealista ou algo desse tipo. As molduras eram o altar empoeirado e o Cristo sem cabeça e crucificado.
Estávamos, eu e ela, em uma igreja abandonada em algum lugar de uma cidadezinha fétida em um desses cus de mundo que o resto da humanidade não se importou em esquecer.
Bidisha linda e morta.
Eu estava agachado a  mais ou menos um metro, sem conseguir despregar os olhos dela, tentando esconder o tremor de minhas mãos enfiando-as nos bolsos da minha jaqueta surrada. No bolso esquerdo eu segurava o celular de Bidisha que começara a tocar de-repente uma música de Norah Jones. No bolso direito eu segurava minha arma.
Eu podia ouvir os passos arrastados às minhas costas, porém não conseguira coragem suficiente ainda para olhar.
Não muito tempo antes, Bidisha havia se sentado na cama do hotel, o lençol mal cobrindo sua nudez, e sorrido para mim. O caso não vai levar mais que um fim de semana, ela disse, enquanto se levantava e ia até a porta do banheiro, ainda com o lençol. Ela sempre se tornava pudica depois do sexo. Felizmente era exatamente o contrário enquanto trepávamos.
Ela continuou, é apenas uma velha igreja no fim do mundo que o Vaticano não conseguiu exorcizar, nada demais, algum pequeno demônio que teima em assombrar o lugar.
Demônios?
Um pequeno, nada demais. Eu preciso saber agora. Você vai?
Eu disse, claro, não tenho nada para fazer mesmo.
É bom esclarecer que eu e Bidisha não éramos amantes, apenas amigos que ocasionalmente dormíamos juntos. Não que no começo, quando a conheci, eu não tivesse me apaixonado desesperadamente por ela. Mas isso ficara no passado.
Eu a vi pela primeira vez numa sessão espírita, numa noite quente de outubro, a alguns anos. As velas não davam conta da escuridão, as chamas eram alaranjadas e trêmulas. Havia pelo menos umas dez pessoas ao redor da mesa, não me lembro muito bem delas e isso também não é importante. As pessoas conversavam em voz baixa, como se estivéssemos em um enterro, mas na verdade era quase o oposto. Não estávamos ali para falar com os mortos?
A sessão ainda não iniciara, quando Bidisha se sentou ao meu lado. Lembro-me que me encantei imediatamente por sua beleza indiana, seu sorriso franco, seus olhos suaves e sua boca, que eu descobriria, era suave e saborosa.
Você vai acabar se apaixonando por mim, disse ela, se continuar a me olhar assim. Ela sorria e provavelmente estava de brincadeira, mas suas palavras foram como uma profecia. Na hora, fiquei sem jeito, e não disse nada.
Bidisha, disse ela, estendendo-me a mão.
A mulher gorda (não me lembro seu nome, Madame alguma coisa) que era a dona da casa disse, vamos começar.
Foi a primeira vez que vi um ectoplasma que não fosse em uma filmagem ou uma foto. Ele escorreu da boca de Madame como um lençol fino que , depois de alguns instantes pavorosos, tomou a forma de um garotinho lindo que aproximou a ponta dos dedos e tocou o rosto de Bidisha e não disse nada, não importando quantas perguntas fossem feitas, antes de desaparecer ou se desfazer no ar a nossa frente.
Nossa, que mão fria, disse Bidisha, ainda meio espantada. Demorou um instante para eu entender que ela falava da minha mão. Bidisha virou-se para mim, não foi a coisa mais maravilhosa que você já viu? completou, sorrindo.
Bidisha morta.
O odor de carne era adocicado e o ruído do arrastar dentro da igreja imunda era um arrastar que fazia com que eu estremecesse involuntariamente. A voz também era arrastada, como quer a sua morte?
Eu me levantei com alguma dificuldade. A cabeça doía, pontadas finas e em chamas dentro do meu cérebro.
Como quer a sua morte? continuou a voz. Quer algo depravado e excitante como a dela?
Bidisha certa vez me disse que tinha um trabalho para mim em sua agência. Preciso de um guarda-costas. Não é sempre que um exorcismo de uma garotinha ou a limpeza de uma casa assombrada dá certo. Às vezes as amarras se arrebentam, o lustre cai do teto sobre a mesa de jantar.
Por que eu?
Você não se assusta facilmente com essas coisas.
Não, retruquei. Apenas fico louco.
Não falemos sobre isso, disse Bidisha. Ela não gostava de lembrar do tempo que passei no hospício depois de minha possessão por uma deusa pagã.
Na verdade eu também não.
E então?, perguntou Bidisha. Eu pago muito bem.
Eu disse que topava.
Agora, Bidisha está morta e eu finalmente olho para a criatura que a matou. A menina me olha de volta, uma garotinha loira e nua, deve ter uns nove, talvez dez anos, manchas de sangue cobrem seu sexo e seus olhos são suaves. Ela me estende sua mão e diz, Como deseja morrer? Sua voz não é mais arrastada, é clara e límpida e inocente. Por Deus, é apenas uma criança.
Você não é real, eu falo.
Quando chegamos à porta da igreja, apenas a algumas horas, o padre que nos esperava mal falou conosco, entrou em seu carro e saiu rapidamente de lá. A única coisa que ele disse foi, esse lugar deveria ser queimado.
Caia uma garoa fina. Fazia calor e Bidisha não pode deixar de olhar para a igreja com um certo tomar.
Os fatos sobre a igreja são: Igreja de Santa Clara, abandonada a pelos menos uns cinquenta anos, lugar de ocasionais aparições brancas e brilhantes em suas janelas, nada mais, tudo meio assustador mas inofensivo. Ninguém se aproximava. Até que o Vaticano considerou uma afronta que algo que não eles mesmos usassem a velha construção. Dois padres foram enviados, nenhum voltou – não vivo. Os detalhes de suas mortes incluíam fornicação e castração com os dentes. Ambos sangraram pelas cavidades entre as pernas até a morte, não obstante a expressão de prazer em seus rostos em rigor mortis.
A Igreja de Santa Clara ficava – e ainda fica – em uma colina e, de longe, com o sol se pondo atrás dela, era um lugar belo e cheio de luzes que refletiam rubras em seus vitrais. Ao cair da noite, entretanto, as luzes eram de outro tom e fonte.
Bidisha tinha uma agencia que lidava com casos paranormais e era bastante conceituada em seu ramo. Não demorou para que ela fosse chamada para resolver o problema de Santa Clara.
Eu me lembro do cheiro de vinho barato do padre que entrou em nosso escritório, sem bater. Bidisha estava ajoelhada ao meu lado, fazendo um curativo em meu braço (eu me me machucara ao me debater durante a noite anterior, em uma de minhas crises de terror. Flashback psicológico da possessão ou a deusa tentando voltar ao meu corpo, eu e Bidisha ainda não sabíamos). O padre disse, como vão vocês?
Ele não falou nada imediatamente, apenas sentou-se lá e ficou olhando para o sol da manhã que entrava pela janela revelando uma poeira fina que flutuava em pelo lugar todo.
Esperamos.
Ele contou sua história. Bidisha disse quanto. Ele nem hesitou, apesar de nosso preço ser mais do que ele arrecadaria em mais de um ano de pregação de regras e castigos infernais. O preço sempre variava de acordo com o cliente.
Quando entramos na igreja, eu sabia que qualquer preço, seria barato demais. Nada havia de terrível à mostra, apenas poeira e bancos quebrados e um Cristo sem cabeça e vitrais quebrados e uma mancha enorme mas que tanto poderia ser de sangue como de umidade. Havia buracos enormes no teto e podíamos ver nuvens passando lá no alto, lentamente, ainda despejando uma garoa fina. Algumas flores haviam brotado nos cantos e dava para sentir o perfume que exalava delas.
Tudo era muito calmo e até idílico.
Eu ia dizer isso para Bidisha, quando algo me acertou e fui arremessado para fora da igreja. Senti uma pancada forte e lembro de ter pensado, esta é aminha morte, enfim. Então, não pensei mais nada. Bosta de guarda-costas.
Quando acordei, não havia mais garoa nem claridade. Levantei-me e corri para dentro da igreja. E vi Bidisha.
Houve uma época em que eu passava os meus dias babando e minhas noites estremecendo de olhos arregalados numa sala acolchoada em algum hospício de merda. Bidisha vinha me visitar todos os dias e me contava histórias banais como se eu não fosse louco, apenas excêntrico, talvez um pouco avoado. Mais tarde ela confessaria que se nunca desistira de mim fora por puro egoísmo. Nunca entendi muito bem isso. E agora não importa mais.
A garotinha nua me estende a mão. Eu saco a arma e atiro nela. De novo. De novo. E de novo. E. Clic Clic Clic Clic Clic Clic. Mas não adianta. Ela não cai. Eu solto a arma.
Como quer a sua morte? a garotinha pergunta, sorrindo e  estendendo a mão.
Você não é uma garotinha, eu falo. Você. Não é. Uma. Garotinha.
Não, diz ela, a voz arrastada novamente, não sou, não é?
Ela gesticula e, às minhas costas, Bidisha se ergue como uma boneca, uma marionete. Seus passos são desajeitados e seus braços se movem em ângulos impossíveis ao som de ossos estalando. Ela começa a rasgar seu vestido e o sangue preto é uma gosma dentro de sua boca. Ela cambaleia em minha direção. Ela cai. Ergue-se novamente. Seu pé se rasga em um prego exposto, mas não há sangue, os mortos não sangram. Eu recuo. Trêmulo.
Ela quer uma última trepada com você, diz a garotinha, novamente com a voz inocente. Ela quer foder com você como eu fodi com ela.
Então, eu corro para cima da garotinha e a acerto com toda força. Eu a derrubo no chão e piso em seu pescoço e ela se debate e o sangue começa a espirrar de sua boca e ela se engasga e, então, ela não se debate mais. Eu ouço Bidisha desabar. E o estalar de madeira. Um ruído alto como o de um trovão. O Cristo sem cabeça desceu do altar e está andando lentamente na direção da garotinha – na minha direção. Cada passo é dado como se ele quisesse alcançar a maior distância em menos tempo. Ele enfia a mão dentro dos panos que cobrem sua nudez e dá para perceber que está muito excitado. Ele pisa sobre uma coxa de Bidisha e a perna dela quase se separa do resto do corpo. Ele continua vindo.  Ele me ignora e ergue a garotinha e começa a carrega-la para fora da igreja como uma boneca. Eles saem para fora.
Eu vou atrás e observo quando eles atravessam a estrada e sobem pelo pasto. Eu corro para o carro, abro o porta-malas e pego o galão de gasolina. Então derramo sobre o Cristo decapitado. Ele continua me ignorando, apenas andando em frente. Eu acendo o isqueiro. O fogo lambe a madeira do crucificado e a carne da  menina.
Eles continuam andando e depois de muito tempo eu ainda posso vê-los à distância, em chamas, enquanto lá no alto as nuvens tornam a despejar água.
Eu entro na igreja. Nada me resta a fazer a não ser ficar ao lado de Bidisha.
 

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