J.M. Coetzee
OPINIÕES FORTES:
13. Do corpo
Falamos do cachorro com a pata machucada e do pombo de asa quebrada. Mas o cachorro não pensa em si mesmo nesses termos, nem o pássaro. Para o cachorro, quando ele tenta andar existe apenas Sou dor; para o pássaro, quando ele se lança em vôo, simplesmente Não consigo.
Conosco parece ser diferente. O fato de existirem expressões tão comuns quanto"minha perna","meu olho","meu cérebro" e mesmo"meu corpo" sugere que acreditamos que exista alguma entidade não-material, talvez irreal, que mantém uma relação de possuidor/possuído no que se refere às"partes" do corpo e mesmo ao corpo todo. Ou então a existência dessas expressões mostra que a linguagem não encontra um ponto de apoio, não consegue se desenvolver enquanto não tiver fracionado a unidade da experiência.
Todas as partes do corpo não estão catexizadas no mesmo grau. Se um tumor fosse extraído de meu corpo e me apresentado numa bandeja cirúrgica como"seu tumor", eu sentiria repulsa por um objetio que é, em certo sentido,"de" mim, mas que repudio, e de cuja eliminação até mesmo me alegro; enquanto se uma de minhas mãos fosse cortada fora e mostrada para mim, eu sem dúvida sentiria a mais aguda dor.
Sobre cabelo, unhas cortadas e outros que tais não há sentimentos, uma vez que essas perdas pertencem a um ciclo de renovação. Dentes são mais misteriosos. Os dentes da"minha" boca são"meus" dentes, partes de"mim", mas minha sensação deles é menos íntima do que meus sentimentos, digamos, por meus lábios. Os dentes não me parecem nem mais nem menos"meus" do que as próteses de metal ou porcelana em minha boca, obras de dentistas cujos nomes esqueci. Eu me sinto mais dono ou tutor de meus dentes do que sinto que meus dentes sejam parte de mim. Se um dente estragado tivesse de ser extraído e me fosse mostrado, eu não sentiria grande pena, embora meu corpo ("eu") nunca vá regenerá-lo.
Esses pensamentos sobre o corpo não ocorrem no abstrato, mas em relação a uma pessoa específica, X, sem nome. Na manhã do dia em que morreu, X escovou os dentes, cuidando deles com a diligência que aprendemos na infância. De suas abluções, ele emergiu para enfrentar o dia, e antes que o dia terminasse estava morto. Seu espírito partiu, deixando para trás um corpo que não servia para nada; pior do que não servir para nada, porque logo começaria a se deteriorar e a se transformar em ameaça à saúde pública. Parte desse corpo morto era o conjunto completo de dentes que ele escovou de manhã, dentes que também morreram no sentido de que o sangue cessou de correr por suas raízes, ainda que eles, paradoxalmente, tenham deixado de entrar em decomposição à medida que o corpo esfriava e que suas bactérias orais também esfriavam e se extinguiam.
Se X tivesse sido enterrado na terra, as partes de"seu" corpo que viveram mais intensamente, que eram mais"ele", teriam apodrecido, enquanto"seus" dentes, que ele podia sentir como coisas apenas sob seus cuidados ou custódia, teriam sobrevivido.
Mas é claro que X não foi enterrado, e sim cremado; e as pessoas que construíram o forno em que ele foi consumido certificaram-se de que estivesse quente o bastante para transformar tudo em cinzas, mesmo os ossos, mesmo os dentes. Mesmo os dentes.
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