DASHIELL HAMMETT
Em Poisonville, as lutas de boxe eram realizadas num antigo cassino, um prédio grande de madeira, construído no interior do que havia sido um parque de diversões, na periferia da cidade. Às oito e meia, quando cheguei, a maior parte da população parecia estar lá, espremida nas fileiras de cadeiras dobráveis que ocupavam a platéia principal e mais espremida ainda nos bancos dos dois minúsculos balcões.
Fumaça. Fedor. Calor. Barulho.
Meu lugar ficava na terceira fila, perto do ringue. Ao me dirigir para lá, avistei Dan Rolff num assento perto do corredor, não muito distante da minha cadeira, com Dinah Brand a seu lado. Ela tinha finalmente cortado e ondulado o cabelo, e transpirava dinheiro metida num casacão de pele cor de cinza.
– Carregou no Cooper? – indagou depois de trocarmos olás.
– Não. Apostou muito nele?
– Menos do que eu gostaria. A gente quis esperar para ver se pegava um preço melhor, mas a cotação dele não parava de subir.
– A cidade inteira parece saber que o Bush vai entregar os pontos – eu disse. – Agora há pouco vi um monte de gente apostando no Cooper a quatro por um. – Inclinei-me sobre Rolff e aproximei minha boca do lugar onde a gola de pele cor de cinza escondia a orelha da moça, cochichando: – O acerto deu para trás. É melhor cobrir o que vocês apostaram enquanto é tempo.
Seus olhos grandes e injetados dilataram-se e escureceram em meio a ansiedade, cobiça, curiosidade, suspeita.
– Está falando sério? – perguntou com voz rouca.
– Estou.
Mordeu os lábios pintados de vermelho, franziu o cenho e perguntou:
– Como soube disso?
Fiquei quieto. Ela voltou a morder os lábios e perguntou:
– O Max sabe?
– Não o vi. Ele está aqui?
– Imagino que sim – disse distraidamente, com uma expressão distante nos olhos. Seus lábios moviam-se como se ela estivesse fazendo contas consigo mesma.
Eu disse: – É pegar ou largar, mas o palpite é bom.
Ela se inclinou para a frente a fim de olhar penetrantemente nos meus olhos, trincou os dentes, abriu a bolsa e tirou um maço de notas do tamanho de uma lata de café. Estendeu parte do maço para Rolff.
– Tome aqui, Dan, carregue no Bash. Mas vá com calma, você ainda tem uma hora para ver como é que estão indo as apostas.
Rolff pegou o dinheiro e saiu para se desincumbir da tarefa. Ocupei se lugar. Ela pousou uma mão no meu antebraço e disse:
– Que Deus te ajude se me fizer perder essa bolada.
Fiz de conta que a idéia era ridícula.
As lutas preliminares estavam em andamento, combates de quatro rounds entre maus atores dos mais variados tipos. Eu olhava ao redor, à procura de Thaler, mas não o via. A meu lado, a garota não parava de se contorcer. Sem dar a menor atenção às lutas, dividia o tempo entre perguntar onde eu tinha obtido a informação e ameaçar-me com o fogo do inferno e a danação eterna se aquilo não passasse de um engodo.
A semifinal já tinha começado quando Rolff voltou e entregou à garota um punhado de bilhetes. Enquanto ela os examinava com atenção, levantei-me para ir para o meu lugar. Sem erguer os olhos, ela gritou para mim:
– Espere a gente lá fora no final.
Quando Kid Cooper subiu no ringue, eu estava tentando abrir passagem para chegar ao meu lugar. Era um rapaz corado, cabelo cor de palha, corpo robusto, cara amassada e com um excesso de carnes na parte de cima de seu tronco cor de lavanda. Ike Bush, vulgo Al Kennedy, atravessou as cordas no campo oposto. Seu corpo parecia melhor – esbelto, bem delineado, sinuoso –, mas o rosto estava pálido, preocupado.
Os lutadores foram apresentados, dirigiram-se aos centro do ringue para ouvir as recomendações e costume, retornaram para os respectivos cantos, tiraram o roupão, estiraram-se contra as cordas e o combate começou.
Cooper era um molenga desajeitado. Tinha um par de golpes longos que podiam machucar, mas qualquer sujeito com dois pés seria capaz de se manter fora de seu alcance. Bush tinha classe – pernas ágeis, uma esquerda veloz que batia fácil e uma direita que escapava rápido. Teria sido assassinato colocar Cooper no ringue com o rapaz esbelto, se ele estivesse se esforçando. Mas não estava. Isto é, não estava tentando ganhar. Esforçava-se para não ganhar e mantinha as duas mãos ocupadas nisso.
Com os pés firmes no chão, Cooper gingava ao redor do ringue, disparando seus golpes longos contra tudo o que encontrasse pela frente, das lâmpadas de iluminação aos postes do ringue. Não tinha outra tática senão soltar o braço para ver no que dava. Bush entrava e saía, atingindo o rapaz rosado sempre que queria, mas usando apenas golpes leves.
O público começou a vaiar antes do fim do primeiro round. O segundo round foi a mesma lengalenga. Eu não me sentia muito bem. Bush não dava a impressão de ter sido muito influenciado por nossa breve conversa. Com o canto dos olhos eu podia ver Dinah Brand tentando atrair minha atenção. Parecia estar fervendo. Concentrei-me em não deixar que ela não capturasse meu olhar.
No ringue, a briga de comadres avançava pelo terceiro round ao som dos berros de "fora com eles", "aproveita e dá um beijo no desgraçado", "ponham esses dois para lutar", vindos da platéia. No exato momento em que as vaiastinham feito uma pausa, a valsa dos pugilistas os trouxe para junto do canto mais próximo de onde eu estava.
Formei um megafone com as mãos e vociferei:
– Volte para a Filadélfia, Al!
Bush estava de costas para mim. Desferiu golpes que fizeram ele e Cooper trocar de posição e empurrou o adversário contra as cordas, de modo que ele, Bush, ficou de frente para onde eu estava.
De algum ponto bem mais para trás, noutra parte da platéia, soou outro brado:
– Volte para a Filadélfia, Al!
MacSwain, pensei.
Em uma fileira próxima à minha, um bêbado ergueu o rosto balofo e gritou a mesma coisa, rindo como se fosse uma piada engraçadíssima. Outros adotaram o mesmo brado, sem motivo algum, a não ser o fato de que ele parecia perturbar Bush.
Seus olhos moviam-se de um lado para o outro sob a barreira negra das sobrancelhas.
Um dos golpes impensados de Cooper acertou a lateral do queixo do rapaz esbelto.
Ike Bush desabou aos pés do juíz.
O juíz contou até cinco em dois segundos, mas o gongo o interrompeu.
Olhei para Dinah Brand e ri. Não havia outra coisa a fazer. Ela olhou para mim e não riu. Seu rosto tinha uma expressão tão aborrecida quanto a de Dan Rolff, mas mais furiosa.
Os treinadores de Bush arrastaram-no até o seu canto e o refrescaram para tentar fazê-lo despertar, mas sem muito empenho. Ele abriu os olhos, fitou os pés. O gongo soou.
Kid Cooper avançou hesitante, suspendendo o calção. Bush esperou o molengão chegar ao centro do ringue e então foi ligeiro até ele.
A luva esquerda de Bush desceu e sumiu, praticamente sumiu na barriga de Cooper, que soltou um "Ui!" e recuou, arqueando o corpo.
Bush endireitou-o com um murro de direita na boca e afundou a esquerda de novo. Mais uma vez Cooper disse "Ui!" e seus joelhos bambearam.
Bush socou-o uma vez de cada lado da cabeça, preparou a direita, colocou cuidadosamente o rosto de Cooper na posição certa com uma esquerda longa e de um ponto abaixo de seu queixo desferiu um direto de direita que foi parar no queixo de Cooper.
A audiência inteira sentiu o soco.
Cooper caiu no chão, tentou se reerguer, mas lá ficou. O juíz levou meio minuto para contar dez segundos. Nem que levasse meia hora, não faria diferença. Kid Cooper estava fora de combate.
Quando finalmente encerrou a contagem, o juiz levantou o braço de Bush. Nenhum dos dois parecia feliz.
Meus olhos captaram uma cintilação no alto da platéria. Um risco curto e prateado partiu obliquamente de um dos balcões acanhados.
Uma mulher gritou.
O cintilar oblíquo do risco prateado foi parar no ringue com um som que era um parte um baque surdo, em parte um estalido.
Ike Bush soltou o braço da mão do juiz e caiu pesadamente sobre Kid Cooper. Da nuca de Bush sobressaía o cabo preto de uma faca.
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