Marguerite Duras
O ruído da cidade é intenso, na lembrança é o som de um filme alto demais, ensurdecedor. Lembro-me bem, o quarto está escuro, não falamos., ele está cercado pelo rumor contínuo da cidade, está situado na cidade, numa rua movimentada da cidade. As janelas não têm vidros, só cortinas e persianas. Nas cortinas as sombras das pessoas que passam ao sol na calçada.Multidões sempre enormes. As sombras regularmente estriadas pelas frestas das persianas. Os tamancos de madeira na calçada martelam minha cabeça, as vozes são estridentes, o chinês é uma língua gritada como sempre imagino serem as línguas dos desertos, é uma língua incrivelmente estrangeira.
Lá fora o dia chega ao fim, percebe-se pelo ruído das vozes e o aumento das sombras que passam, cada vez mais misturados. É um bairro de prazer que vive seu auge à noite. E a noite começa agora, com o pôr-do-sol.
A cama está separada da cidade pelas persianas de treliça, pela cortina de algodão. Nenhum material resistente nos separa das outras pessoas. Quanto a elas, ignoram nossa existência. Percebemos alguma coisa das suas vidas, o conjunto das suas vozes, dos seus movimentos, como uma sirene que lançasse um grito entrecortado, triste, sem eco.”
Chegam até o quarto cheiros de caramelo, de amendoim torrado, sopa chinesa, carne assada, ervas, jasmim, poeira, incenso, carvão vegetal, o carvão aqui é transportado em cestos, vendido nas ruas, o cheiro do bairro é o das aldeias do interior, da floresta (…)
(…) O ruído da cidade está muito próximo, tão perto que o ouvimos ressoar na madeira das persianas. É como se as pessoas atravessassem o quarto. Acaricio o corpo dele em meio a esse ruído, a essa movimentação. O mar, a imensidão que reflui, se afasta, volta. Eu lhe pedira que fizesse mais uma vez e mais outra. Que me fizesse aquilo. E ele o fizera. Fizera-o em meio à untuosidade do sangue. E foi mesmo como morrer. Foi como morrer disso (…)
(…) Ficamos assim abraçados, gemendo por entre o clamor da cidade lá fora. Ainda o ouvíamos. E depois não o ouvíamos mais (…)
(…) Pelas persianas a noite chegou. O barulho é maior. Mais estridente, menos surdo. Lampiões avermelhados se acendem.
Saímos da garçonnière (…) Na rua a multidão segue em todas as direções, lenta ou rápida, abre passagem, sarnenta como os cães abandonados, cega como os mendigos, uma multidão da China, vejo-a ainda nas imagens de prosperidade de hoje, no modo como caminham todos juntos sem jamais demonstrar impaciência, aquele modo de estar só no meio da multidão, sem alegria, sem tristeza, sem curiosidade, andando sem parecer ir a lugar algum , sem intenção de ir, mas apenas avançando, por aqui e não por ali, isolados e no meio do povo, jamais sozinhos de verdade, sempre sozinhos no meio da multidão…
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