domingo, 17 de junho de 2012

TRECHO A VIDA DE UM IDIOTA

Masao Kume

akutagawa250div


Deixo-lhe toda a liberdade de publicar ou não este manuscrito, assim como o direito de escolher o momento e a maneira de fazê-lo. Você conhece, penso eu, a maior parte dos personagens que aparecem neste texto. Mas, no caso de sua publicação, desejaria que nenhum índice de nomes fosse acrescentado. Vivo, no momento, a mais infeliz das felicidades. Mas, por estranho que possa parecer, não me arrependo de nada. Lamento somente aqueles que tiveram o mau marido, o mau filho, o mau pai que eu fui. Sendo assim, adeus. Neste manuscrito, não creio que tenha, ao menos conscientemente, tentado defender minha posição pessoal.
Uma última coisa: confio este manuscrito a você, em particular, pois creio que certamente é quem melhor me conhece. Tente - se puder - rir-se de minha idiotice visível neste manuscrito (isso se você desnudar minha máscara de homem urbano).
20 de junho de 1927
Ryûnosuke Akutagawa


1 ÉPOCA
Era no primeiro andar de uma livraria. Ele, aos vinte anos, montado numa escada de estilo europeu apoiada contra a prateleira, procurava livros novos. Maupassant, Baudelaire, Strindberg, Ibsen, Shaw, Tolstói... Enquanto isso, o fim do dia se aproximava. Mas ele continuava a ler, avidamente, os títulos inscritos nas lombadas dos livros. Mais do que livros, enfileirava-se ali o próprio fim do século. Nietzsche, Verlaine, os irmãos Goncourt, Dostoiévski, Hauptmann, Flaubert... Lutando contra a penumbra, ia enumerando seus nomes. Mas os livros começaram, um após o outro, a se fundir na sombra letárgica. Finalmente, abandonou sua perseverança e começou a descer a escada de estilo europeu. Nesse momento, uma lâmpada nua se acendeu, de repente, bem sobre sua cabeça. Detendo-se na escada, ele observou de cima os vendedores e os clientes que se moviam entre os livros. Estavam estranhamente pequenos. E ainda mais: pareciam tão miseráveis...
"A vida humana não vale nem mesmo um verso de Baudelaire."
Do alto da escada, durante algum tempo, ele deixou seu olhar percorrer aqueles seres...
2 A MÃE
Todos os loucos estavam igualmente vestidos de cinzaescuro. A ampla sala, por causa disso, parecia ainda mais deprimente. Sentado ao órgão, um dos loucos tocava com fervor um hino cristão. Ao mesmo tempo, bem no meio da sala, outro dançava ou, mais exatamente, se agitava.
Ele observava o espetáculo em companhia de um médico de aspecto saudável. Sua própria mãe, dez anos atrás, não diferia em nada daqueles seres. Em nada... - em seu mau cheiro, ele reconhecia perfeitamente o de sua mãe.
- Bem, vamos!
Precedendo-o no corredor, o médico se dirigiu a uma outra sala. Lá, num canto, havia alguns cérebros mergulhados em enormes garrafas arredondadas, de vidro, cheias de álcool. Sobre um dos cérebros, ele percebeu uma substância esbranquiçada. Era bem parecido com uma clara de ovo escorrida. Enquanto conversava com o médico, de pé, pensou ainda uma vez em sua mãe.
- Mas, sabe? Este cérebro era de um engenheiro da firma de instalações elétricas. Ele pensava que era um grande dínamo, de cor preta, brilhante.
Evitando os olhos do médico, contemplava a vista além da janela. Mas lá nada havia além de um muro de tijolos coberto por cacos de vidro. Naquele muro, cresciammusgos ralos que deixavam áreas de um vago brilho esbranquiçado.
3 A CASA
Ele ocupava um quarto no primeiro andar de uma casa no subúrbio. Por causa da instabilidade do solo, era um pavimento estranhamente inclinado. Era lá que muitas vezes sua tia brigava com ele e, não raro, seus pais adotivos também intervinham. No entanto, a pessoa a quem mais amava era sua tia. Permanecera solteira a vida toda e era, já na época em que ele tinha vinte anos, uma senhora de quase sessenta. No primeiro andar dessa casa de subúrbio, várias vezes ele se perguntara se os que se amam deveriam necessariamente se atormentar uns aos outros. Sentindo, enquanto isso, na inclinação do primeiro andar, qualquer coisa de sinistro...
4 TÓQUIO
O rio Sumida estava carregado de nuvens pesadas. Ele contemplava as cerejeiras de Mukôjima pela janela de um pequeno barco a vapor. As cerejeiras em flor eram, a seus olhos, tão deprimentes quanto uma fileira de trapos. Mas naquelas árvores - naquelas cerejeiras de Mukôjima que lá estavam desde a era Edo -, ele reconhecia sua própria imagem.
5 O EGO
Sentado à mesa de um café em companhia de um de seus colegas mais velhos,¹ ele tirava sem parar baforadas de seu cigarro. Pouco abria a boca. No entanto, ouvia atentamente as palavras do colega.
- Hoje passei metade do dia andando de carro.
- Você tinha algum assunto a tratar?
O queixo apoiado na mão, o colega lhe respondeu com a maior espontaneidade:
- Não, foi apenas porque tive vontade.
Aquelas palavras o libertaram em direção a um mundo que ele desconhecia - o reino do Ego próximo dos deuses. Sentiu uma espécie de dor. Ao mesmo tempo, no entanto, sentiu também alegria. Aquele café era minúsculo. Contudo, sob o quadro do deus Pã, uma seringueira plantada num vaso vermelho deixava pender preguiçosamente suas folhas polpudas.

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