quarta-feira, 17 de julho de 2013

TRECHO Viva O Povo Brasileiro

João Ubaldo Ribeiro

Ogum desceu sobre o campo de batalha como um vendaval, nada deixando à sua frente, pois que ignora qualquer barreira e é conhecido como o que vai primeiro. Na sua frente, sobre um morrote verde, um grupo de soldados combatia em torno do estandarte da Segunda Companhia de Zuavos dos Voluntários da Pátria, da ilha de Itaparica, estandarte mantido no ar pelo Sargento Matias Melo Bonfim, feito de Ogum desde os sete anos, um de seus filhos mais valorosos. Vinha de Amoreiras, onde florescem os mimos-do-céu e os passarinhos cantam mais. Deixara seus dois filhinhos, Matilde e Baltazar, sua mulher Maricota e sua roça de milho e feijão, deixara sua mãe viúva e sua criação, prometendo voltar assim que ganhasse a guerra. Beijara a filhinha Matilde e o filhinho Baltazar na beira do atracadouro, antes de embarcar com seu vistoso uniforme para lutar pelo Brasil, abraçara sua mulher Maricota e sua mãe viúva e partira com o mesmo sorriso orgulhoso que estampava agora, portando o estandarte intocável da companhia insulana, que flutuava na brisa acima da batalha. Alegre por ser seu filho, Ogum se preparou para animá-lo e dar-lhe conforto, mas o chumbo fervente de uma bala inimiga mordeu o pescoço tenro do rapaz de Amoreiras, apagou seu sorriso e lhe toldou os olhos com o véu pardo da Morte, a qual lhe aspirou a alma pela boca, boca que nunca mais beijaria Matilde e Baltazar, nem nunca mais falaria para contar das belezas de Amoreiras, onde os mimos-do-céu florescem e cantam mais os passarinhos.

Ogum soltou um grito superior à canhonada e suas lágrimas quentes, de dor pelo filho morto, regaram o chão, tornando mais fumegante o sangue dos caídos. O estandarte oscilou, foi para um lado, foi para o outro, até que seu mastro tombou e ele se perdeu entre as cabeças dos combatentes. Como um cardume de atuns desbaratando uma manta de tainhas, como onças acossando a presa, como um enxame de abelhas enfurecidas, como matilhas de guarás despedaçando uns aos outros, paraguaios e itaparicanos se atiraram à luta pela posse do estandarte. Os Cabos Benevides e Arimatéa, brandindo as carabinas como cacetes, fizeram uma parede em torno do estandarte, para que seu companheiro Cabo Líbio o levantasse outra vez. Mas Cabo Líbio, ao erguer-se, teve a cabeça fendida pela cutilada de um sabre e caiu morrendo, a lembrança de sua linda Gamboa, terra onde os mariscos são fartos e as tardes frescas, esvoaçando ao ar de seus miolos partidos. Uma mão paraguaia apoderou-se do hastil, uma lançada no peito derrubou o Cabo Benevides e já o inimigo se preparava para amarfanhar o pavilhão intocável, quando Ogum, senhor das batalhas, mestre das armas, cujo nome é a própria guerra, disparou do alto e arrebatou a bandeira num puxavão que por um momento fez com que ela tremulasse entre as nuvens. Disse então o grande Ogum, ao Cabo Arimatéa:

– José de Arimatéa, mantém firme o estandarte intocável de tua terra, que agora te passo às mãos! Quem te fala é teu pai Ogum, senhor das batalhas, invencível no combate, cujo nome é a própria guerra! Não esqueci os meus filhos e estou aqui para não deixar que pereçam nas mãos do cruel inimigo. É imensa a minha dor, porque demorei a chegar e não pude evitar que matassem um de meus filhos mais valorosos, Matias Melo Bonfim, galardão de Amoreiras, onde florescem os mimos-do-céu e os passarinhos cantam mais. E pela mesma razão é também desmedida a minha fúria, que agora farei desabar sobre o inimigo. Estou a teu lado, vencerás! Ogum-ê!

E logo, como um redemoinho, como um catavento de aço, como vinte mil facões esfarinhando o ar, o grande Ogum, invencível no combate, cercou seu filho Cabo Arimatéa, enquanto ele suspendia bem alto o pavilhão, imune às balas e estocadas do inimigo.

todoprosa.

Nenhum comentário: