domingo, 22 de janeiro de 2012

TRECHO Sou feliz na hora errada

Clarice Lispector

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De repente as coisas não precisam mais fazer sentido (…). Satisfaço-me em ser.
Redondo sem início e sem fim, eu sou o ponto antes do zero e do ponto final.
Do zero ao infinito vou caminhando sem parar. Mas ao mesmo tempo tudo é tão fugaz. O dia corre lá fora à toa e há abismos de silêncio em mim. A sombra de minha alma é o corpo. O corpo é a sombra de minha alma (…).
Sou feliz na hora errada. Infeliz quando todos dançam (…).
Nunca a vida foi tão atual como hoje: por um triz é o futuro.
Tempo para mim significa a desagregação da matéria. O apodrecimento do que é orgânico como se o tempo tivesse como um verme dentro de um fruto e fosse roubando a esse fruto toda a sua polpa. O tempo não existe.
O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o tempo em si não existe. Ou existe mutável e nele nos transladamos. O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta. Então - para que eu não seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa - eu cultivo um certo tédio. Degusto assim cada detestável minuto. E cultivo também o vazio silêncio da eternidade da espécie. Quero viver muitos minutos num só minuto. Quero me multiplicar para poder abranger até áreas desérticas que dão a idéia da imobilidade eterna.
Na eternidade não existe o tempo. Noite e dia são contrários porque são o tempo e o tempo não se divide. De agora em diante o tempo vai ser sempre atual. Hoje é hoje. Espanto-me ao mesmo tempo desconfiado por tanto me ser dado. E amanhã eu vou ter de novo um hoje (…). Mas há o hábito e o hábito anestesia. O aguilhão da abelha do dia florescendo de hoje. Graças a Deus, tenho o que comer. O pão nosso de cada dia.

Rachinha.

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