sábado, 28 de janeiro de 2012

CONTO Calor

Luiz Vilela

Z- eliseu-visconti

Calor, muito calor ainda — o sol batendo na parede do quarto —, mas ele agora sentia-se melhor.
— Você aqui é como uma brisa...
Ela sorriu, alegre e bonitinha nos seus quinze anos.
— Mais cedo eu tive a visita de uma amiga — ele contou, a cama com a cabeceira erguida: — mas ela é tão feia, tão feia que o meu quadro de saúde até piorou.
Ela riu.
— Quem, tio?...
— Não, isso eu não posso te contar — Por quê?
— Você conta pros outros...
— Juro que eu não conto.
— Só posso te contar isso: que ela é tão feia, que eu quase piorei; quase tive de tomar uma injeção.
Ela deu uma risada.
— Pois é — ele disse; — é isso. Eu estava assim. Mas a. você chegou, e aí eu melhorei; agora eu estou bem...
Sentada numa das três cadeiras do quarto, ela, de shortinho, cruzou as pernas; depois jogou para trás os longos e lisos cabelos castanhos.
— Eu queria vir ontem à tarde — ela disse; — mas a minha professora de inglês trocou o horário, e aí...
— Foi melhor — ele disse, — melhor você ter vindo hoje: ontem eu estava ruim, estava sentindo muita dor ainda.
— Mas a operação correu bem...
— Correu; correu tudo bem, felizmente.
— E o corte, foi grande?
— O corte? Uns... Alguns centímetros. Você quer ver? Você está pensando em ser médica...
— É, eu estou pensando...
Ela se levantou e se aproximou da cama.
Ele, de peito nu, afastou o lençol; depois empurrou um pouco a cueca e...
— Ôp! — cobriu rápido; — o passarinho querendo fugir...
Ela riu.
— Aqui — ele mostrou: — o corte vai daqui ate aqui...
Ela ficou olhando — as tiras de esparadrapo sobre a gaze, a pele vermelha de merthiolate.
— É grande, não é? — ele disse.
Ela balançou a cabeça, concordando
Voltou então a sentar—se.
Os dois calados. Uma tosse de velho lá no fim do corredor.
— Fui te mostrar uma coisa — ele disse, — e você acabou vendo outra...
— Eu? — ela disse. — Eu não vi nada.
— Não?...
— Você cobriu!
— Ah...
— Por que você cobriu?
— Por quê?...
Ela riu:
— Estou brincando, hem tio? Não vai achar que eu...
— Bom — ele disse: — se você quer ver de novo...
— Eu não! — ela disse, olhando assustada para o corredor.
— Não?...
— Não.
— Por quê?
— Por quê?...
Ela riu, mas não respondeu.
— Hum?
— Pra você depois contar pros seus amigos, né?...
— Contar pros meus amigos?...
— Claro — ela disse. — Lá no bar, lá na sua rodinha, depois de tomar umas tantas, você vai dizer: "Sabem aquela minha sobrinha, a Daniela?...”
— Não, não vou falar isso não; não vou falar pra ninguém.
— Sei...
— Palavra de honra.
— Acredito muito...
— Eu prometo. Só nós dois saberemos. Será um segredo nosso: até a morte.
— Hum... Muito bonito...
— Juro. Pode acreditar em mim.
— Você não quis acreditar em mim...
— Eu?
— Agora há pouco.
— Mas aquilo era uma coisa à toa.
— E isso?
— Isso? Bom, isso...
— Hum; o que é isso?
— Eu acho que isso é uma coisa bonita, uma coisa entre um homem e uma mulher; entre um adulto e uma jovem; uma coisa entre um tio e uma sobrinha que se querem.
— Eu, pelo menos...
— Eu também, Daniela; eu também te quero; quero muito, você pode ter certeza.
— Você é o meu tio mais legal, o único de cabeça aberta, o mico com quem dá pra conversar.
— Obrigado...
— Se fossem os outros... Se fossem os outros, eu nem tinha vindo aqui.
— É?
— Tio Breno, por exemplo: Tio Breno mal me cumprimenta; como se eu não existisse. Tio Jerônimo de vez em quando ainda dá umas prosas, mas eu acho que a única coisa no mundo que interessa para ele é boi; ele só fala em boi, e agora na falta de chuva: que se não chover dentro de poucos dias, ele vai perder não sei quantas cabeças de gado e que... Ele só fala nisso. Eu acho que ele nem dorme, pensando nos bois dele...
Ele riu.
— Já a Tia Zilda... Tia Zilda é aquela fera. Ela vive no meu pé. Agora ela deu pra implicar com os meus shortinhos: "Por que essa menina não anda pelada de uma vez?..."
— Ótimo .
— Ótimo?... — ela riu. — Quê que é ótimo?...
— A Zilda falar assim.
— Ah...
— Agora, você andar pelada... Sinceramente: se de shortinho já é isso que a gente vê, pelada...
— Tio...
Ele riu.
— Você está com febre?... — ela perguntou.
— Não...
— Então é o calor.
— Quem sabe?
— Eu nunca te vi assim...
Uma enfermeira passou, em direção ao fundo, e deu uma olhada para dentro do quarto.
A tosse do velho. Um bebê chorando. Vozes. De novo o silêncio.
— Bom, mas então. — ele disse; — quer dizer que você não quer mesmo...
— O quê?
— Ver; ver de novo...
— Não.
— Então tá; fim de papo...
Ela curvou—se para amarrar melhor o cadarço. Depois ergueu o pé, mostrando para ele:
— Que tal? Gostou do meu tênis?
— Gostei. E você, gostou do meu pênis?
— Tio!... — ela disse, se levantando e pondo a mão na boca.
— É só pra fazer um trocadilho...
— Você hoje está impossível, hem?
— Eu não ia perder a oportunidade de fazer esse trocadilho...
— Você hoje... você está precisando de umas palmadas, viu?
— Dá, dá as palmadas; suas palmadas seriam como... seriam como uma chuva de plumas em meu corpo.
— Uai: você agora virou poeta?
Ele riu.
— Você hoje está um perigo...
— Eu?... Que perigo pode ter um homem preso numa cama de hospital?...
— Hum... Muito perigo!...
Ele tornou a rir.
— Você... — ela disse, se abanando com as mãos, os seios saltitando soltos sob a blusa.
A enfermeira passou de volta, sem olhar para o quarto.
— Bom, mas então... — ele disse; — quer dizer que o nosso assunto está mesmo encerrado...
— Que assunto?
— O nosso assunto...
— Está.
— Encerrado?...
— Está.
— Definitivamente?...
— Definitivamente.
— É... — ele disse; — é uma pena...
— Pois é...
Ela então andou devagar até a cama, encostando-se na beirada — as coxas bronzeadas de sol.
Passou a mão de leve no braço dele:
— Tio Leo, Tio Leo...
— O quê
— Não acredite em tudo que eu falo, tá?...
— Não?...
Ela negou com a cabeça.
— Quer dizer que...
Ela sacudiu a cabeça.
— Ótimo... — ele disse.
Olhou pela porta aberta, em direção ao corredor; ela também olhou.
Então ele encolheu as pernas, fazendo com elas uma parede: afastou o lençol, e depois...
— Nossa! — ela disse. — Tio!...
— Pega.
— Pode?...
— Você me daria a maior felicidade.
— Mesmo?...
— Eu seria o homem mais feliz do mundo.
Ela olhou para o corredor
— Está com medo? — ele perguntou.
— Não; eu...
— Pega.
Ela parada.
— Você não quer?
— Quero, mas...
De repente ela puxou o lençol sobre ele.
— Quê que foi?...
— Nada — ela disse, nervosa; — eu que... Desculpe, tio...
— Tudo bem...
Ela foi até a janela e ficou, meio de costas, olhando para baixo.
Da rua, quase sem barulho, veio a buzina de um picolezeiro.
Ela deu um suspiro fundo:
— Tem dia que eu tenho vontade de morrer...
— Por quê?
— Viver é complicado demais...
— É assim mesmo — ele disse.
Ela tornou a sentar-se, as mãos apoiadas nas coxas, o olhar fixo no chão e os cabelos quase cobrindo o rosto.
— Acho que eu já vou...
— Embora?
— É...
— Por quê?
— Eu preciso...
— Fica mais.
— Não posso...
— Fica...
Ela olhou para ele — e de novo para o chão:
— Eu não vou fazer mais nada — disse, com languidez;se é isso...
— Não, não é isso.
— Acho que a gente não devia ter feito o que a gente fez...
— A gente não fez nada!
— Não sei quê que me deu na hora... Às vezes acho que eu não bato bem...
Ele ficou em silêncio.
— Eu...
— Está bem, Daniela — ele disse, ajeitando-se um pouco na cama e depois puxando o lençol até o peito.
— Eu sou uma criança ainda, tio...
Ele sacudiu a cabeça.
— Meu corpo pode não ser mais de criança, mas eu ainda sou uma criança, entende? Eu sou muito inexperiente; eu não sei nada da vida, nada...
— Esqueça o que houve; você esquece, e eu também esqueço. Tá?
— Eu sou uma menina bem-comportada; eu não sou como algumas amigas minhas, algumas que já vão até em motel e...
Ela se calou.
O sol já sumira do quarto, e o calor diminuíra; em breve começaria o crepúsculo.
Ela se levantou:
— Eu já vou: às vezes amanhã, depois da aula, eu dou uma passadinha aqui.
— É melhor você não passar.
— É? — o espanto no rosto. — Então eu não passo.
— Eu acho que...
— Tiau — ela disse, e saiu do quarto.
Ele ficou algum tempo olhando para o corredor.
Depois, estirou as pernas — devagar, para não doer —, estendeu os braços ao longo do tronco e respirou fundo:
— Merda — disse.
Fechou então os olhos, para dormir um pouco. Mas, de súbito, quase num susto, abriu-os: ela estava ao pé da cama, olhando para ele — os olhos vermelhos.
— O que houve?...
— Eu voltei.
— Eu estou vendo.
— Você foi muito rude.
— Rude?...
— Você me magoou muito.
— Eu?..
— Eu vim aqui te fazer uma visita...
Uma lágrima deslizou pelo rosto.
— Eu vim aqui pra...
Limpou com o dedo outra lágrima.
— Eu sei, Daniela, eu compreendo; eu gostei muito de você ter vindo.
— Gostou... Gostou, mas...
— Sabe?... Eu vou te dizer: essa cirurgia, as dores, as injeções, o soro, ficar o dia inteiro nessa cama sem poder mexer direito e, ainda por cima, nesse calor horroroso, tudo isso perturba muito a gente, Daniela...
Ela escutando.
— Tudo isso faz com que... E então... Sabe? É horrível, principalmente passar horas inteiras sozinho nesse quarto, olhando para essas paredes brancas; isso é o pior de tudo. E era por isso que eu queria que você ficasse mais; era por isso...
— Eu fico — ela disse.
— Fica?... Você fica mais?...
Ela balançou a cabeça.
— Que bom...
— Mas tem uma condição — ela disse
— Eu já te falei que é pra esquecer isso, não falei?
— Não, minha condição não é essa...
— Não? Qual que é a condição?
Ela fez uma cara de mistério; deu meia-volta, andou até a porta e afastou com o pé a trava no chão; depois fechou a porta e girou a chave.
Então voltou-se: olhou para ele e sorriu.
— Sabe — ele disse. — Sabe de uma coisa? Você é uma menina surpreendente.
— E bem-comportada; esqueceu?...

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