Um trecho:
I
CLARA
1950-2
1.
Terry é a espora. A farpa debaixo de minha unha. Para falar a verdade, estou começando esta carnificina, que é a verdadeira história de minha vida arruinada (quebrando uma promessa solene, ao rabiscar um primeiro livro nesta minha idade avançada), como uma resposta às torpes acusações que Terry McIver me faz em sua autobiografia prestes a ser publicada: que fala de mim, de minhas três esposas, também conhecidas como a Tróica de Barney Panofsky, da natureza de minha amizade com Boogie, e, naturalmente, do escândalo que levarei comigo até o túmulo como uma corcova. O "som de duas mãos batendo palmas", O tempo e suas febres, que logo vai ser lançado por "O Grupo" (desculpe, o grupo), uma pequena editora de Toronto, subsidiada pelo governo, que também publica um periódico mensal, A Boa Terra, impresso em papel reciclado, não tenha dúvida.
Terry McIver e eu, ambos nascidos e criados em Montreal, nos encontrávamos em Paris no começo da década de 50. O pobre Terry mal era tolerado pelo meu grupo, um bando de jovens escritores sem dinheiro, arrojados e campeões de obras recusadas por editores, mas confiantes de que tudo era possível - fama, admiradoras à beira do desmaio de tanta adoração, e a fortuna esperando logo ali na esquina, como o legendário camelô das gomas de mascar Wrigley de minha meninice. O tal camelô, segundo se dizia, abordava crianças na rua para as presentear com uma nota de um dólar, desde que tivessem um invólucro da goma de mascar Wrigley no bolso. Nunca topei com o generoso enviado do sr. Wrigley, mas a fama bafejou muitos do meu grupo: o arrebatado Leo Bishinsky; Cedric Richardson, embora sob um outro nome; e, naturalmente, Clara. Clara, que atualmente goza de uma fama póstuma de ícone feminista, forjada na bigorna da insensibilidade machista chauvinista. Minha bigorna, como elas dizem.
Eu era uma anomalia. Não, uma anomia. Um empresário nato. Jamais ganhara prêmios na Universidade McGill, como Terry, nem estudara em Harvard ou Columbia, como alguns dos outros. Eu mal dera conta do curso secundário, tendo passado mais tempo nas mesas da Academia de Bilhar de Mount Royal que nas aulas, jogando sinuca com Duddy Kravitz. Não sabia escrever. Não pintava. Não tinha a menor pretensão artística, a menos que assim se considere o sonho que eu acalentava de ser cantor e dançarino de music hall, agitando meu chapéu de palha para a boa gente da platéia ao me retirar elegantemente do palco, dando lugar a Peaches, a Ann Corio, a Lili St. Cyr ou a alguma outra dançarina exótica, que levaria seu número a uma apoteose de tambores, quando então se veria de relance um peito nu, bem antes de o striptease se tornar comum em Montreal.
Eu era um leitor voraz, mas seria um erro ver nisso uma prova de minha virtude. Ou sensibilidade. Na verdade, sou obrigado a confessar, com a discreta anuência de Clara, a baixeza de minha alma. Minha horrível inclinação para a competição mesquinha. O que me animava não era A morte de Ivan Ilitch de Tolstoi, nem O agente secreto de Conrad, mas a velha revista Liberty, cujos artigos se iniciavam sempre com uma notinha informando quanto tempo se levaria para lê-los: digamos, cinco minutos e trinta e cinco segundos. Depois de colocar meu relógio de pulso de Mickey Mouse na mesa da cozinha forrada com uma toalha de linóleo xadrez, eu corria os olhos pela matéria em, digamos, quatro minutos e três segundos, e me considerava um intelectual. De Libertypassei a Mr. Moto, um romance em brochura de John Marquand, comprado por uma pechincha na barbearia Jack & Moe, na esquina da Park Avenue com a Laurier, no coração do bairro operário judeu de Montreal, onde cresci. Um bairro que elegera o único comunista (Fred Rose) a integrar o Parlamento, que produziu dois pugilistas passáveis (Louis Alter, Maxie Berger), a legião de médicos e dentistas de praxe, um famoso dono de cassino, mais advogados implacáveis do que seria desejável, bom número de professores primários e milionários da indústria têxtil, uns poucos rabinos e pelo menos um suspeito de homicídio.
Eu.
Lembro-me de montes de neve de um metro e meio de altura acumulando-se na frente de escadas, que tinham de ser desobstruídas com pás, sob um frio abaixo de zero, e numa época bem anterior à dos pneus próprios para neve, do matraquear dos carros e caminhões que passavam com as rodas cobertas por correntes. Lençóis congelados, duros feito pedra, nos varais do quintal. Em meu quarto, onde o aquecedor chiava e matraqueava noite adentro, terminei por me deparar com Hemingway, Fitzgerald, Joyce, Gertie e Alice, e também com o nosso Morley Callaghan. Cheguei à maioridade invejando suas aventuras no exterior e, por causa disso, tomei uma séria decisão em 1950.
Ah, 1950. Foi o último ano em que Bill Durnan, cinco vezes ganhador do troféu Vezina, melhor goleiro da Liga Nacional de Hóquei, iria guardar as redes da minha querida equipe Montreal Canadiens. Em 1950, nos glorieux já podiam exibir uma formidável linha de defesa, liderada pelo jovem Doug Harvey. A linha de ataque estava reduzida a apenas dois terços, dada a ausência de Hector Blake, que abandonou a competição em 1948. Com Maurice Richard ("o Foguete"), Elmer Lach e Floyd Curry (o "Perna-de-Pau"), eles terminaram a rodada em segundo lugar, atrás dos malditos porcos de Detroit e, para sua eterna vergonha, perderam de quatro a um para os New York Rangers nas semifinais da Copa Stanley. Mas pelo menos "o Foguete" teve um ano razoável, pois terminou em segundo lugar na classificação individual, com quarenta e três gols marcados e vinte e dois passes que levaram à finalização.
De todo modo, em 1950, com vinte e dois anos de idade, separei-me da corista com quem estava morando num apartamento do porão de um edifício na Tupper Street. Saquei meu modesto pé-de-meia no City and District Savings Bank, dinheiro que ganhara trabalhando como garçom no velho Normandy Roof (emprego arranjado por meu pai, o investigador Izzy Panofsky), e reservei uma passagem para a Europa no Queen Elizabeth, que navegava com destino a Nova York. Ingenuamente, eu estava resolvido a buscar a amizade-e enriquecer-me com ela - daqueles que então eu considerava os puros de coração, "os legisladores desconhecidos deste mundo, os artistas". E aqueles eram tempos em que se podia ficar de amorzinho com colegiais impunemente. Um, dois, chachachá. Canções como "If I Knew You Were Coming, I'd've Baked a Cake". Noites de luar com belas garotas usando crinolina, cinta, argolas nos tornozelos, sapatos bicolores - e se podia ficar sossegado, pois elas não iriam processar você por assédio sexual dali a quarenta anos, depois de recuperarem a lembrança do estupro ajudadas por uma senhora psicanalista que faz a barba todo santo dia.
Terminei por encontrar não a fama, mas a fortuna. Essa fortuna, tenho de admitir, era de origem humilde. Para começar, fui ajudado por um sobrevivente de Auschwitz, Yossel Pinsky, que trocava dólares para nós por debaixo do pano, pela cotação do mercado negro, numa loja de artigos fotográficos da rue des Rosiers. Certa noite, Yossel sentou-se à minha mesa no The Old Navy, pediu um café filtre, colocou sete cubinhos de açúcar na xícara e disse: "Preciso de alguém que tenha um passaporte canadense válido".
"Para quê?"
"Para ganhar dinheiro. Para que mais?", perguntou ele, sacando um canivete suíço Swiss Army e começando a limpar as unhas que lhe tinham sobrado. "Mas primeiro a gente precisa se conhecer melhor. Você já comeu?"
"Não."
"Então vamos jantar. Ei, eu não mordo. Vamos lá, garotão."
E foi assim que, apenas um ano depois, orientado por Yossel, tornei-me exportador de queijos franceses para o Canadá do pósguerra, que ia ficando cada vez mais rico. Quando voltei do exterior, Yossel conseguiu para mim a gerência de uma revendedora de Vespas, aquelas lambretas italianas que na época vendiam feito banana. Ao longo dos anos, em sociedade com Yossel, também negociei com azeite de oliva, da mesma forma que o jovem Meyer Lansky; peças de tecido procedentes das ilhas de Lewis e Harris; ferro-velho comprado e vendido sem que eu nunca tivesse visto metal nenhum; DC-3s obsoletos, alguns dos quais ainda fazendo a rota para o extremo norte do Canadá; e-depois que Yossel se mudou para Israel-, debaixo do nariz dos gendarmes, objetos do antigo Egito, roubados de túmulos menos importantes do vale dos Reis. Mas tenho cá os meus princípios. Nunca negociei com armas, drogas ou alimentos naturais.
Por fim me tornei um pecador. No final da década de 60, comecei a produzir filmes canadenses subvencionados-que não eram exibidos por mais de uma semana em lugar nenhum -, mas que no final das contas me valeram, e vez por outra também aos meus patrocinadores, centenas de milhares de dólares, graças à sonegação fiscal. Comecei então a produzir em larga escala séries de tevê de temas canadenses, vagabundas o suficiente para serem distribuídas nos Estados Unidos. E, no caso de nossa série de sucesso "McIver da polícia montada", que é o máximo em termos de cenas de pancadarias em canoas e iglus, no Reino Unido e em outros países.
[...]
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