terça-feira, 26 de abril de 2011

SUBMARINO

Joe Dunthorne

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Um trecho:

Capítulo I
Triscedecofobia

Manhã de domingo. Escuto nosso modem para conexão discada tocar um jazz de má qualidade, enquanto mamãe se conecta com a internet. Estou no banheiro.
Descobri recentemente que mamãe tem digitado nomes de doenças mentais ainda não inventadas no buscador Yahoo: “adolescente com síndrome delirante”, “problema de imaginação hiperativa”, “estabilizadores comportamentais holísticos”.
Se o sujeito digita “adolescente com síndrome delirante” no Yahoo, a primeira página que ele lhe oferece tem a ver com a Síndrome de Cotard. A Síndrome de Cotard é uma ramificação do autismo em que as pessoas acham que estão mortas. O site oferece algumas citações seletas de vítimas da doença. Durante algum tempo, andei introduzindo essas frases nos hiatos de conversa na hora do jantar, ou quando a mamãe perguntava por meu dia na escola.

“Meu corpo foi substituído por uma concha.”
“Meus órgãos internos são de pedra.”

“Faz anos que eu morri.”

Parei de dizer essas coisas. Quanto mais eu fingia ser um cadáver, menos franca ela se tornava em matéria de questões de saúde mental.

Eu costumava escrever questionários para meus pais. Queria conhecê-los melhor. Perguntava coisas como:

Que doenças hereditárias tenho probabilidade de herdar?

Quanto dinheiro e imóveis tenho probabilidade de herdar?

Se o seu filho fosse adotivo, com que idade você optaria por lhe falar sobre sua mãe verdadeira?

a) 4-8

b) 9-14

c) 15-18

Tenho quase 15 anos.

Eles davam uma olhada nos questionários, mas nunca os respondiam.

Depois disso, passei a usar a análise disfarçada para descobrir os segredos de meus pais.

Uma das coisas que descobri foi que, embora a barba do papai pareça cor de gengibre, a uma certa distância, chegando perto a gente vê que, na verdade, ela é uma mescla sutil de preto, louro e morango.

Também descobri que meus pais não transam há dois meses. Controlo sua intimidade por meio do regulador da intensidade da luz que eles têm no quarto. Sei quando andaram fazendo das suas porque, na manhã seguinte, o botão ainda continua regulado na metade.

Também descobri que meu pai sofre de surtos depressivos: encontrei um vidro vazio de antidepressivos tricíclicos na cesta de vime que fica embaixo da sua mesinha de cabeceira. Ainda tenho o vidro entre os meus Transformers velhos. A depressão vem em surtos. Feito os assaltos do boxe.

O papai fica no córner azul. Azul de melancolia.

Preciso de toda a minha intuição para descobrir quando começa um dos surtos depressivos do meu pai. Dois sinais são estes: um, do meu quarto no sótão eu o escuto esvaziar a lavadora de louça; dois, ele faz tanta pressão ao escrever que, sob uma certa luz, é possível ver dois ou três dias de bilhetes seus calcados na superfície da nossa toalha de mesa de plástico limpa-fácil:

Fui à ioga,

cordeiro na geladeira,

Ll

Fui à Sainsbury’s,

Ll

Por favor, grave o Canal 4, 21h

Lloyd

Meu pai não assiste à televisão. Só grava coisas.

Há maneiras de identificar quando um surto depressivo acabou: é quando papai faz um trocadilho complicado, ou uma imitação de um gay ou um oriental. São bons sinais.

Para planejar com a devida antecedência, é do meu interesse saber dos problemas mentais de meus pais desde a mais tenra idade.

Não me decidi pela palavra correta para designar a doença da mamãe. Ela tem sorte, porque seus problemas de saúde mental podem ser confundidos com traços de caráter: afabilidade, charme e calma.

Aprendi mais sobre a natureza humana assistindo de manhã aos programas de entrevista da ITV nos dias de semana, do que ela em sua vida inteira. Eu lhe digo: “Você não está querendo abordar o vazio das suas experiências interpessoais”, mas ela não escuta.

Há alguns indícios de que o trabalho da mamãe é responsável pelo estado da sua saúde mental. Ela trabalha no departamento de serviços jurídicos e democráticos do Conselho Municipal. Tem muitos colegas. Uma das regras no escritório dela é que, quando a pessoa faz aniversário, é sua a responsabilidade de levar seu próprio bolo para o trabalho.

E tudo isso me traz de volta ao armário dos remédios.

Afasto para um lado a porta corrediça espelhada; meu rosto desaparece pela lateral, substituído pelas caixas em preto e branco de cremes vendidos mediante receita, comprimidos em embalagens de plástico duro transparente e vidros marrons tampados com fibra de algodão. No armário tem Imodium, Canesten, Piriton, Benylin, Robitussin (antidiarreico, antimicótico, anti-histamínico, xarope antitussígeno e antialérgico, expectorante) e mais uns tratamentos holísticos de aparência suspeita: arnica, equinácea, erva-de-são-joão e umas folhas desidratadas de aloé.

Eles acreditam que tenho problemas afetivos. Acho que é por isso que não querem me sobrecarregar com os seus. O que não parecem entender é que os problemas deles já são meus. Posso herdar os canais lacrimais frágeis da mamãe. Quando ela anda na brisa, as lágrimas lhe saem pelo canto externo dos olhos e descem em direção ao lóbulo das orelhas.

Resolvi que a melhor maneira de fazer meus pais se abrirem é lhes dar a impressão de que sou emocionalmente estável. Direi a eles que consultei um terapeuta e que ele ou ela disse que estou bem, em linhas gerais, só que me sinto isolado de meus pais e que eles deviam  ser mais generosos com suas histórias.

Há uma clínica não muito longe da minha casa que contém uma variedade numerosa de terapeutas: fisio, psico e ocupacionais. Ponderei qual deles me daria menos problemas. Meu corpo é praticamente perfeito, por isso optei pelo Dr. Andrew Goddard, um fisioterapeuta com bacharelado e mestrado.

Quando telefonei, atendeu um secretário. Eu lhe disse que precisava marcar hora cedo, porque tinha de ir à escola. Ele respondeu que eu podia ficar com um horário na quinta-feira de manhã. Perguntou se eu já estivera na clínica. Eu disse que não. Perguntou se eu sabia onde era e respondi que sim, ficava perto dos balanços.

Fiquei admirado ao descobrir que existem agências de detetives nas Páginas Amarelas. Agências de detetives de verdade.Uma delas tem esse lema: “Você pode fugir, mas não conseguirá se esconder.” Dobrei o canto da página para facilitar a consulta.

Manhã de quinta-feira. Em geral, deixo mamãe me acordar, mas hoje ajustei o despertador para as sete horas. Mesmo embaixo do meu edredom grosso, consigo ouvi-lo berrando do outro lado do quarto. Escondi-o dentro do meu engradado de plástico para joysticks defeituosos, para ter que me levantar da cama, atravessar o quarto, arrancá-lo lá de dentro pelo fio e só então apertar o botão da soneca. Foi uma manobra tática feita pelo meu eu anterior. Ele sabe ser muito cruel.

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