sexta-feira, 8 de abril de 2011

A MORTE DE BUNNY MUNRO

Nick Cave

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Um trecho:

«Estou lixado», pensa Bunny Munro num súbito momento de autoconsciência reservado para quem está prestes a morrer. Sente que algures pelo meio do caminho cometeu um grande erro, mas a percepção passa como uma pulsação horrível e desaparece ? deixando-o num quarto no Hotel Grenville, de roupa interior, com nada mais do que ele próprio e os seus apetites. Fecha os olhos e revê uma vagina ao acaso, depois senta-se na borda da cama e encosta-se lentamente na cabeceira acolchoada. Tira o telemóvel de debaixo do queixo e, com os dentes, parte o selo de uma garrafa miniatura de brandy. Esvazia a garrafa pela garganta abaixo, atira-a para o outro lado do quarto, depois estremece e engasga--se, e diz ao telemóvel:
- Não te preocupes, amor, vai correr tudo bem.
- Estou com medo, Bunny - diz a mulher dele, Libby.
- Estás com medo de quê? Não há nada para teres medo.
- Tudo, estou com medo de tudo ? diz ela.
Bunny percebe que algo mudou na voz dela, os violoncelos suaves desapareceram e surgiu um violino áspero, tocado por um macaco fugitivo, ou coisa assim.
Regista a mudança, mas ainda não compreende exactamente o que possa querer dizer.
- Não fales assim. Já sabes que não te leva a lado nenhum - diz Bunny, e chupa com mais força um cigarro Lambert & Butler. É neste momento que cai a ficha - o babuíno ao violino, a espiral descendente e inconsolável da deriva dela - e diz «foda-se!» e expele duas presas de fumo furioso pelas narinas.
- Não tomaste o Tegretol? Libby, diz-me se tens tomado o Tegretol!
Há um silêncio do outro lado da linha e depois um soluço engasgado e distante.
- O teu pai ligou outra vez. Não sei o que lhe diga. Não sei o que ele quer. Grita comigo. Está furioso - diz ela.
- Por amor de Deus, Libby, sabes muito bem o que disse o médico. Se não tomas o teu Tegretol, ficas deprimida. Estás farta de saber que é perigoso ficares deprimida. Quantas vezes é que tenho de to dizer?
O soluço tropeça noutro soluço e depois tropeça outra vez, até se transformar num choro suave e infeliz que faz com que Bunny se lembre da primeira noite juntos - Libby deitada nos braços dele, tomada por um inexplicável ataque de choro, num hotel desmazelado em Eastbourne. (...)
- Toma mas é a porra do Tegretol - diz ele, mais suave.
- Tenho medo, Bun. Anda um tipo por aí a atacar as mulheres.
- Que tipo?
- Pinta a cara de vermelho e usa uns cornos em plástico como os do Diabo.
- O quê?
- Na Zona Norte. Está na TV.
Bunny pega no controlo remoto em cima da mesa-de-cabeceira e, com uma série de golpes e contragolpes, liga o aparelho de televisão que está em cima do minibar. Com o som desligado, passa pelos canais até encontrar imagens a preto-e-branco de uma câmara de vigilância, feitas num centro comercial em Newcastle. Um homem de tronco nu com calças de ginástica circula no meio da multidão de compradores aterrorizados. Tem a boca aberta, num grito silencioso. Parece que está a usar uns cornos do Diabo e acena com o que parece ser um cacete grande.
Bunny murmura alguns palavrões e naquele momento toda a energia, sexual ou outra, o abandona. Atira com o comando ao televisor, que se apaga com estalidos eléctricos, enquanto Bunny deixa cair a cabeça para trás. Concentra-se na mancha de humidade no tecto, que tem a forma de uma pequena campainha, ou de um seio de mulher.
- Bunny? Estás aí?
- Libby. Onde estás?
- Na cama.
Bunny olha para o relógio, aproxima a mão, mas não consegue focar os olhos.

- Por amor de Deus, querida. Onde está o Bunny Júnior?
- No quarto, acho eu.
- Olha, Libby, se o meu pai voltar a ligar...
- Ele tem um tridente - diz a sua mulher.
- O quê?
- Um ancinho.
- O quê? Quem?
- O tipo lá do Norte.
Bunny percebe que o som gritante e gorgolejante vem de fora. Agora ouve-o por cima do aparelho de ar condicionado a bombar e é suficientemente apocalíptico para quase lhe despertar a curiosidade. Mas não o suficiente. A mancha de humidade no tecto está a crescer e a mudar de forma ? um seio maior, umas nádegas, um joelho feminino sensual - e forma-se uma gota, alonga-se e vibra, separa-se do tecto, cai e explode no peito de Bunny. Bunny dá-lhe uma palmada como se estivesse num sonho e pergunta:
- Libby, querida, onde é que vivemos?
- Brighton.
- E onde é Brighton? - pergunta, a passar um dedo pela fila de miniaturas de garrafas alinhadas na mesa-de-cabeceira. Escolhe uma Smirnoff.
- No Sul.
- Que é o mais longe possível do «lá do Norte» que se pode ir sem cair na gaita do mar. Agora, querida, desliga a TV, toma o teu Tegretol e um comprimido para dormir... merda, toma dois... e eu volto amanhã. Cedo.
- O cais está a arder - diz Libby.
- O quê?
- O Cais Ocidental está a arder. Consigo sentir o cheiro daqui.
- O Cais Ocidental?
Bunny esvazia a minúscula garrafa de vodca pela garganta abaixo, acende outro cigarro e levanta-se da cama. O quarto agita-se ao ser invadido pela percepção de que está muito bêbedo. A andar em bicos de pés com os braços abertos, Bunny faz uma espécie de dança para ir até à janela. [...] As pupilas de Bunny contraem-se dolorosamente quando ele olha para a luz que atravessa a janela. Vê uma nuvem negra de estrelinhas a tremeluzir loucamente por cima da massa fumegante do Cais Ocidental, irremediavelmente estacionado no mar em frente ao hotel. Fica a pensar porque é que não o tinha visto, depois considera há quanto tempo está no quarto e por fim lembra-se da mulher e ouve-a perguntar:
- Bunny, estás aí?
- Estou - diz Bunny, siderado pela visão do cais a arder e os mil pássaros a gritar.
- Os estorninhos endoideceram. Que coisa horrível! Os filhotes a arder nos ninhos. Não suporto isto, Bun - diz Libby, o violino cada vez mais agudo.
Bunny volta para a cama e ouve a mulher a chorar do outro lado da linha. Dez anos, pensa ele, dez anos e aquelas lágrimas ainda o apanham - aqueles olhos turquesa, a rata alegre, eh pá, e aqueles soluços insondáveis - e encosta-se no espaldar da cama enquanto dá umas palmadas nos genitais, como um macaco.
- Volto amanhã, querida, cedo.
- Gostas de mim, Bun? - pergunta Libby.
- Sabes que gosto.
- Juras pela tua vida?
- Por Cristo e todos os santos. Até aos pezinhos, querida.
- Não podes vir para casa esta noite?
- Ia se pudesse - diz Bunny, vasculhando a cama à procura dos cigarros -, mas estou a milhas de distância.
- Oh, Bunny... meu mentiroso de merda...
A linha cai e Bunny fica a perguntar:
- Libby? Lib?
Olha perplexo para o telefone, como se acabasse de descobrir que o tem na mão, e depois fecha-o como uma concha, ao mesmo tempo que outra gota de água lhe explode no peito. Bunny faz um pequeno «o» com a boca e enfia-lhe o cigarro. Acende-o com o Zippo e inala profundamente, depois emite um fluxo calculado de fumo cinzento.
- Tens aí uma grande empreitada, querido.
Com grande esforço, Bunny vira a cabeça e olha para a prostituta, que está de pé em frente da porta da casa de banho. As cuecas cor-de-rosa fluorescente pulsam sobre a pele cor de chocolate. Coça as tranças coladas à cabeça e uma nesga de carne cor-de-laranja espreita por trás do lábio inferior, descaído por causa da droga. Bunny pensa que os mamilos dela se parecem com as espoletas daquelas minas que ficam a flutuar no mar para fazer explodir os navios, ou coisa assim, e quase que lho diz, mas acaba por se esquecer, inala o cigarro repetidas vezes e diz-lhe:
- Era a minha mulher. Tem uma depressão.
- Nisso não é a única, amorzinho - diz ela, e avança aos sacões pela alcatifa Axminster, com a ponta da língua cor-de-rosa a aparecer por entre os lábios. Ajoelha-se e mete o cacete de Bunny na boca.
- Não, é um caso clínico. Está a ser medicada.
- Ela e eu, querido - diz a rapariga, com a cara em cima da barriga de Bunny.
Bunny parece considerar devidamente a resposta, enquanto mexe as ancas. Uma mão preta e mole descansa na sua barriga e, olhando para baixo, Bunny vê que cada uma das unhas está pintada com uma representação pormenorizada de um pôr-do-sol tropical.
- Às vezes, é muito mau - diz ele. 
- É aquilo a que se chama a neura, querido - diz ela, mas Bunny mal consegue ouvir, pois a voz chega-lhe como um grasnar abafado e incompreensível. A mão agita-se e pula na sua barriga. 
- Ãh? O quê? - pergunta ele, a inalar o ar pelos dentes, e de repente sente um baque e, como numa torrente vinda do peito, é assolado outra vez por aquela sensação de que o fim está próximo - «Estou lixado» - enquanto cobre os olhos com um braço e arqueia ligeiramente o corpo.
- Estás bem, querido? - pergunta a prostituta.
- Acho que há uma banheira a transbordar no andar de cima - diz Bunny.
- Agora cala-te, querido.
A rapariga levanta a cabeça e olha rapidamente para Bunny, que tenta encontrar o centro dos seus olhos negros com as pupilas contraídas, reveladoras, mas o olhar perde a intenção e desfoca-se. Coloca uma mão na cabeça dela, sente o brilho húmido da nuca.
- Agora cala-te, querido - diz ela outra vez.
- Chama-me Bunny - diz ele, a ver outra gota de água a tremer no tecto.
- Chamo-te qualquer porra que tu queiras, querido.
Bunny fecha os olhos e aperta as tranças ásperas do cabelo dela. Sente a explosão suave da água no peito, como um soluço.
- Não, chama-me Bunny - murmura.

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