Clarice Lispector
Trechos:
Sabia de um modo vago que já vivera alguma vez ultrapassando os momentos numa cegueira feliz que lhe dava o poder de seguir a sombra de um pensamento através de um dia, de uma semana, de um ano. E isso misteriosamente era viver se aperfeiçoando na obscuridade sem obter um fruto sequer dessa imponderável perfeição.
Tinha a impressão de que já vivera tudo apesar de não poder dizer em que momentos. E ao mesmo tempo sua vida inteira parecia poder resumir-se num pequeno gesto para frente, numa ligeira audácia e depois num recuo suave sem dor, e nenhum caminho então para onde se dirigir – sem pousar direito no solo, suspensa na atmosfera quase sem conforto, quase confortável, com a languidez cansada que precede o sono. No entanto ao seu redor as coisas viviam por vezes tão violentas. O sol era fogo, a terra sólida e possível, plantas brotavam vivas, trêmulas, caprichosas, casas eram feitas para nelas se abrigarem corpos, braços, contornavam-se ao redor de cinturas, para cada ser e para cada coisa havia um outro ser e uma outra coisa numa união que era um fim ardente sem além.
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