domingo, 6 de novembro de 2016

A MAIOR PRESA DE MING

PATRiCiA HiGHSMiTH

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Ming descansava ao pé do beliche de sua dona quando o homem o agarrou pela nuca, jogou-o no convés e fechou a porta da cabina. Ming arregalou de espanto e de uma raiva fugaz os seus olhos azuis que quase se fechavam por causa do sol forte. Não era a primeira vez que o atiravam para fora da cabina, o homem fazia sempre isso quando a dona, Elaine, não estava olhando.

O veleiro não tinha proteção contra o sol mas o calor não incomodava Ming. Pulou fácil para o teto da cabina e daí para o rolo de corda atrás do mastro. Gostava de deitar no rolo de corda, bem no centro do barco: lá de cima enxergava tudo e se protegia do vento e não sentia tanto o balanço do White Lark. Elaine e o homem tinham almoçado e costumavam fazer a sesta depois de comer. Ming sabia que o homem não gostava de vê-lo na cabina nessa hora. Mas tudo bem. Também acabara de almoçar - um peixe grelhado delicioso e um pedaço de lagosta. Bocejou, deitado na curva do rolo de corda, e semicerrando os olhos contra o sol forte, olhou para as colinas, as casas e os hotéis brancos e rosados da baía de Acapulco. Entre o White Lark e a praia, onde gente chapinhava inaudivelmente na água, o sol cintilava no mar como milhares de luzes elétricas piscando. Passou um esquiador levantando borrifos brancos atrás de si. Quanta atividade! Ming cochilou, sentindo o calor no pêlo.

Vinha de Nova York e Acapulco era bem melhor se comparado ao lugar de suas primeiras semanas de vida. lembrava-se de uma caixa sem sol, com palha no fundo, junto com outros três ou quatro gatinhos e uma janela onde formas gigantescas paravam, tentavam chamar-lhe a atenção batendo no vidro e seguiam em frente. Não lembrava da mãe. Um dia uma moça com cheiro agradável entrou e levou-o consigo - para longe do cheiro ruim e assustador de cães, de remédios e de cocô de papagaio. Depois entraram no que Ming agora sabia ser um avião. Acostumara-se muito bem aos aviões e gostava bastante deles: ia sentado ou dormindo no colo de Elaine e, se sentia fome, sempre havia alguma coisa para comer.

Elaine passava o dia numa loja em Acapulco. Havia vestidos, blusões e roupas de praia pendurados nas paredes. O lugar cheirava a limpeza. Havia flores em vasos e, do lado de fora, em caixas. O chão era de ladrilhos brancos e azuis. Ming tinha liberdade para sair para o pátio no fundo, ou dormir em sua cesta num canto. Na frente havia mais sol, mas havia garotos malvados que tentavam pegá-lo e ali Ming nunca se descontraía.

Gostava mesmo era de se deitar ao sol com a dona numa das espreguiçadeiras de lona no terraço de casa. Mas não gostava das pessoas que ela às vezes convidava, dezenas de pessoas que passavam a noite, que ficavam acordadas até tarde, comendo e bebendo, ouvindo discos ou tocando piano - pessoas que o separavam de Elaine. Pessoas que lhe pisavam nas patas; pessoas que, às vezes, o pegavam por trás, desprevenido, e ele tinha de lutar para se soltar; pessoas que lhe passavam a mão com rudeza; pessoas que às vezes fechavam alguma porta, deixando-o trancado. Gente! Ming detestava gente. No mundo inteiro, só gostava de Elaine. Ela o amava e compreendia.

Detestava agora, em especial, aquele homem chamado Teddie. Teddie agora vivia por perto o tempo todo e Ming não gostava do jeito que o homem o encarava quando Elaine não estava olhando. Às vezes, na ausência da dona, Teddie murmurava coisas que Ming entendia como uma ameaça, ou uma ordem para que saísse. Ele reagia com calma: era preciso preservar a dignidade. Além do mais, não tinha a dona a seu lado? O homem é que era o intruso. Quando Elaine estava perto Teddie fingia gostar dele. Só que Ming sempre se afastava.

Seu cochilo foi interrompido. Elaine e o homem riam e falavam. O grande sol alaranjado estava perto do horizonte.
- Ming! - Elaine chegou perto dele - Você não está se torrando nesse sol, meu querido? Pensei que estivesse lá dentro! - Eu também! - mentiu Teddie.
Ming ronronou. A dona aninhou-o nos braços e levou-o para baixo, para a sombra fria da cabina. Falava com o homem, aborrecida. Pousou Ming diante da tigela de água. Ele bebeu uns goles, mesmo sem sede, para agradá-la. Cambaleava um pouco, meio tonto por causa do calor.
Elaine pegou uma toalha úmida e passou-lhe na cara, nas oreIhas e nas patas. Deitou-o gentilmente no beliche que tinha o perfume dela mas também o cheiro do homem a quem Ming detestava.

Ming sabia que estavam brigando pelo tom das vozes. Ela sentou-se na beirada do beliche e ficou com ele. Depois Ming ouviu o mergulho de Teddie. Teve a esperança de que o homem se afogasse e não voltasse nunca mais. Elaine molhou uma toalha de banho, torceu-a, estendeu-a sobre o beliche e colocou Ming sobre ela. Trouxe água, que ele, agora com sede, tomou. Deixou-o dormir enquanto lavava e guardava os pratos. Sons confortantes que Ming gostava de ouvir. Mas logo houve outro plesh-plop: os pés molhados de Teddie no convés. Ming acordou.

A discussão recomeçou. Elaine subiu a escadinha até o convés. Ming ficou de olho na porta, tenso mas ainda com o queixo apoiado na toalha úmida. Ouvira os pés de Teddie descendo. Levantou a cabeça, ciente de que estava encurralado na cabina. O homem parou e olhou para ele, com uma toalha na mão. Ming se espreguiçou como se preparasse um bocejo e deixou que a língua meio para fora da boca. O homem fez que ia dizer alguma coisa, deu a impressão de querer jogar a toalha em cima dele, mas hesitou e não disse nada. Jogou a toalha na pia e lavou o rosto. Não era a primeira vez que Ming lhe mostrava a língua. Muita gente ria quando ele fazia isso, principalmente em festas, e Ming gostava da reação. Mas sentia que para Teddie aquilo era como um gesto hostil e por isso lhe mostrava a língua de propósito, enquanto que para os outros costumava ser por acidente.

A briga continuou. Elaine fez café. Ming começou a se sentir melhor e voltou para o convés. O sol tinha-se posto. O barco ia em direção à praia. Ming ouviu pássaros e um ou outro guincho das aves que só gritavam ao pôr-do-sol. Olhou para a casa sobre o penhasco onde morava com a dona. Sabia que ela não o deixava lá (onde ele ficaria mais confortável) quando saía de barco por temer que alguém tentasse pegá-lo e até mesmo matá-lo. Ming entendia. Haviam tentado agarrá-lo diante de Elaine. Uma vez o enfiaram de repente num saco de pano. Lutou muito mas não sabia se escaparia sem Elaine. Ela bateu no garoto e arrancou o saco da mão dele.

Ming ia pular de novo para o teto da cabina mas decidiu poupar forças. Agachou-se no convés com os pés embaixo do corpo. Ficou olhando para a praia. Agora ouvia música de violão, que vinha de lá. As vozes da dona e do homem calaram. O barulho mais forte era o tchag-tchag-tchag do motor. Depois Ming escutou o homem subir a escada da cabina. Não se virou mas suas orelhas torceram-se para trás. Ming olhava a água logo abaixo, bem perto. Estranhou quando o som dos pés do homem atrás dele parou. O pêlo de sua nuca se arrepiou. Olhou de relance por cima do ombro direito. Nesse momento, o homem inclinou-se para a frente e veio de braços abertos contra Ming.

O gato disparou na direção do homem - a única direção segura no convés sem amurada. O homem atingiu Ming no peito com o braço esquerdo. O gato voou para trás, as garras arranhando o convés, mas as pernas traseiras passaram por cima da borda. Sem muito apoio, ele se agarrou na madeira fina com as patas dianteiras. Agitando as patas traseiras tentou voltar. O homem avançou com um pé contra as patas de Ming, mas bem nessa hora Elaine subiu da cabina.
- O que está acontecendo? Ming!!
As fortes pernas traseiras do gato o traziam pouco a pouco de volta ao convés. O homem ajoelhara-se como se fosse ajudar. Elaine também se ajoelhou e pegou-o pela nuca.
- Ele caíu! - dísse Teddíe. - Verdade! Ele está tonto. Cambaleou e caiu quando o barco adernou.
- É o sol. Coitadinho!
Elaine segurou-o contra o peito e levou-o para a cabina. - Teddie... você manobra? - perguntou ela, quando o homem também desceu. Elaine deitara Ming no beliche e conversava baixinho com ele. O coração do gato ainda estava acelerado. Ainda estava atento ao homem. Sabia que já iam desembarcar.

Ali estavam os amigos e aliados de Teddie, a quem Ming detestava por associação, os meninos mexicanos. Dois ou três deles, de shorts, chamaram o "señor Teddie" e quiseram ajudar Elaine a subir no cais, ofereceram-se para levar "Ming!, Ming!" para o cais, mas ele pulou sozinho e agachou-se à espera de Elaine, pronto para fugir. Várias mãos morenas vieram em sua direção e Ming teve de se esquivar. Houve risos, gritos, batidas de pés descalços. Mas também houve a voz tranqüilizadora de Elaine afastando-os. Ming sabia que ela estava ocupada trancando a cabina. Teddie e um dos meninos estendiam a lona por cima da cabina. Os pés de Elaine, de sandálias, pararam ao lado de Ming, que a seguiu quando ela se afastou.

Entraram no carro grande sem teto de Teddie, rumo à casa de Elaine e Ming. Um dos meninos dirigia. Elaine e Teddie conversavam num tom mais mais calmo. O homem ria. Ming ia sentado tenso no colo da dona. Sentia a preocupação de Elaine pelo modo como ela lhe afagava a nuca. O homem estendeu a mão para tocar as costas do gato e Ming rosnou baixo.
- Ora, ora - disse o homem, que fingiu achar graça mas afastou a mão.
A voz de Elaine parou no meio de alguma coisa que ela dizia. Ming, cansado, só queria dormir na cama grande coberta pela manta de lã. Quando se deu conta já estava em sua casa, suavemente colocado na cama com a coberta de lã macia. A dona beijou-lhe a cara e disse alguma coisa com a palavra "fome". Ele entendeu que deveria avisar quando tivesse fome. Adormeceu.

Acordou com as vozes que vinham do terraço com as portas de vidro abertas. Era noite. Ming via um lado da mesa e entendeu, pelo tipo de luz, que havia velas sobre ela. Concha, a empregada que morava na casa, tirava a mesa. Ming ouviu a voz dela, depois a de Elaine e a do homem. Sentiu cheiro de charuto. Pulou para o chão e sentou-se com os olhos no terraço. Bocejou, arqueou as costas, espreguiçou-se e se exercitou arranhando o tapete grosso de palha. Foi até o terraço e desceu em silêncío a escada comprida de pedra que ia para o jardim. O jardim era como uma floresta. Abacateiros e mangueiras chegavam à altura do terraço, havia buganvílias no muro, orquídeas nas árvores e magnólias e camélias plantadas por Elaine. Ming ouvia pássaros piando e se mexendo nos ninhos. Às vezes subia nas árvores até os ninhos, mas hoje não estava com vontade. As vozes da dona e do homem perturbavam-no. Hoje não se falavam como amigos. Concha ainda devia estar na cozinha, Ming resolveu ir pedir algo para comer.

O terraço estava vazio e Ming voltou para o quarto. Entrou e sentiu a presença do homem. O homem abria uma caixa na penteadeira. Ming rosnou um rosnado gutural que aumentava e diminuia. Ficou imóvel na posição em que estava, com a pata direita estendida para dar o próximo passo quando viu o homem. Preparou-se para pular em qualquer direção. O homem não o tinha visto.
- Ssssst- fez o homem para o gato. - Passa! - e bateu o pé sem muita força.
Ming não se mexeu. Ouviu o retinir do colar branco de sua dona. O homem enfiou o colar no bolso, passou pelo gato e seguiu para a sala. Ming ouviu uma garrafa bater contra um copo e o som de líquido correndo. Foi até a porta e tomou a direção oposta, da cozinha.

Miou e foi recebido por Elaine e Concha. Vinha música do rádio da empregada.
- Peixe? Porco. Ele gosta de porco - disse Elaine com as palavras engraçadas com que conversava com Concha. Ming deu a entender que preferia carne de porco, e foi atendido. Estava com fome. A dona falava com Concha, que exclamava "Aaaaaai!", e se agachou para acariciá-lo. Ming se deixou acariciar, de olhos fixos no prato, até Concha se cansar e ele poder comer em paz. Elaine saiu. Concha deu a Ming leite de lata. Ele adorava e deixou o pires limpo. Esfregou-se contra a perna dela em agradecimento e foi para a sala, para ir até o quarto. Elaine e o homem estavam no terraço. Assim que entrou no quarto Ming ouviu sua dona chamando:- Ming? Você está aí?

Ele foi até a porta do terraço e sentou-se. A luz da vela iluminava os cabelos longos, loiros e realçava a calça branca de Elaine, sentada à cabeceira da mesa. Deu uma palmada na coxa e Ming pulou em seu colo. O homem disse alguma coisa desagradável. Elaine respondeu no mesmo tom, mas riu um pouco. O telefone tocou e Elaine foi atender na sala.

O homem terminou a bebida, resmungou para Ming e deixou o copo na mesa. Levantou-se e tentou cercar o gato ou forçá-lo para a beirada do terraço. Ming percebeu a intenção do homem e também viu que ele estava bêbado: por isso movia-se desajeitado e devagar. O parapeito do terraço chegava à altura dos quadris do homem e tinha grades em três pontos. As barras das grades eram espaçadas e Ming podia passar entre elas, mas nunca passava. Só espiava por ali às vezes. O gato percebeu que o homem queria empurrá-lo pelas grades ou atirá-lo por cima do parapeito, e esquivou-se com facilidade. O homem pegou uma cadeira e acertou com ela o quadril do gato. Foi rápido e machucou. Ming fugiu pela primeira saída que viu, a escada para o jardim.

O homem descia atrás dele. Ming disparou de volta para cima, bem rente ao muro, pelo lado escuro. Sabia que o homem não o tinha visto. Pulou para o parapeito e lambeu uma pata para se recompor. Seu coração estava acelerado, como se estivesse no meio de uma briga. O ódio corria-lhe pelas veias e ardia-lhe nos olhos. Agachou-se. Ouvia o homem subir a escada com passos inseguros até aparecer à sua frente. Ming preparou-se para pular. E pulou com toda a força. Aterrissou com as quatro patas no braço direito do homem, perto do ombro. Agarrou-se ao paletó branco. Os dois rolaram escada abaixo. O homem gemeu. Ming continuou agarrado. Galhos estalavam. Ming não distinguia o que estava em cima e o que estava embaixo. Soltou-se do homem e caiu de lado. Quase que ao mesmo tempo, ouviu o baque do homem chegando ao chão lá embaixo, o corpo rolando - e o silêncio. O gato respirou de boca aberta até seu peito parar de doer. Do homem vinha o fedor de bebida e charuto e o cheiro que significava medo. O homem não se mexia.

Ming enxergava bem agora. Havia luar. Fez um longo caminho por entre arbustos, sobre pedras e areia, para chegar à escada. Subiu para o terraço. Elaine saía para lá.
- Teddie? - chamou e voltou para o quarto. Acendeu a luz. Foi até a cozinha. Ming seguiu-a. A luz estava acesa e Concha estava no quarto dela, de onde vinha o som do rádio. Elaine abriu a porta da frente. Ming viu que o carro do homem continuava parado na entrada. O quadril doía, mancava um pouco. Elaine notou, roçou-lhe as costas. Ming ronronou.
- Teddie? Onde você está? - chamou Elaine.
A mulher olhou com uma lanterna para o jardim, por entre os troncos dos abacateiros, por entre as orquídeas e flores cor-de-rosa das buganvílias. Ming, seguro a seu lado, no parapeito do terraço, seguia com os olhos a luz da lanterna e ronronava feliz. O homem não estava ali embaixo, estava mais adiante e para a direita. Elaine aproximou-se da escada e, com cuidado (porque não havia corrimão nem grade) apontou o facho de luz para baixo. Ming nem se deu ao trabalho de olhar.

- Teddie! Teddie!
Elaine desceu correndo. Ming não a seguiu. Ouviu-a gritar:- Concha!!
Voltou para cima. Elaine falou com Concha, que ficou muito nervosa. Elaine telefonou e depois desceu a escada junto com Concha.

Ming acomodou-se no terraço. Chegou um carro. Elaine foi abrir a porta da frente. Ming retirou-se para um canto mais escuro. Três ou quatro estranhos apareceram e desceram a escada. Houve muito falatório lá embaixo, passos e galhos quebrados e depois o cheiro deles todos escada acima - o cheiro de tabaco, o cheiro de suor e o cheiro familiar de sangue: sangue do homem. Ming estava satisfeito como quando matava um pássaro e sentia esse cheiro de sangue sob os próprios dentes. Presa grande, aquela. Quando o grupo passou carregando o cadáver, sem que ninguém notasse, ergueu-se e inspirou o perfume de sua vitória.

De repente todos tinham ido embora, até Concha. Ming bebeu água na cozinha. Depois foi para a cama da dona, enroscou-se nos travesseiros e dormiu. Acordou com o ronco de um carro estranho. Reconheceu os passos de Elaine e de Concha. As duas conversaram baixo, depois Elaine entrou no quarto. A luz continuava acesa. Ming viu sua dona abrir a caixa sobre a penteadeira e colocar ali o colar branco. Fechou a caixa e desabotoava a blusa mas antes se atirou na cama e acariciou a cabeça de Ming, levantou sua pata esquerda e apertou-a de leve até que as unhas aparecessem.
- Ah, Ming... Ming... e o gato reconheceu o tom da voz do amor.

sosgatinhos.

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