sábado, 7 de abril de 2012

CONTO Animal Crackers in my Soup

Charles Bukowski

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Tinha saído de uma longa bebedeira, durante a qual perdi um emprego mixa, o meu quarto e (talvez) a cabeça. Depois de passar a noite dormindo num beco, vomitei no sol, esperei cinco minutos e aí então acabei com o resto da garrafa  de vinho  que achei no bolso do paletó. Comecei a andar pela cidade, assim, ao léu. Enquanto caminhava, me veio a sensação de que estava percebendo, em parte, o sentido das coisas. Claro que não estava. Mas ficar lá parado, no beco, não resolvia nada.

Andei bastante, com pouca lucidez. Considerei, vagamente,  a fascinante possibilidade de morrer de fome. Só queria encontrar um lugar pra deitar e ficar esperando. Não sentia nenhum rancor contra a sociedade porque não fazia parte dela. Há muito tempo que já tinha me conformado com esse fato.

Cheguei logo à periferia da cidade. As casas estavam cada vez mais distanciadas umas das outras. Viam-se campos e chácaras. Me sentia antes doente que faminto. Fazia muito calor, tirei o paletó e levei pendurado no braço. Comecei a ficar com sede. Não havia vestígio de água em parte alguma. Estava com o rosto ensanguentado e todo escabelado por causa de um tombo que tinha levado na véspera. Morrer de sede não era a minha ideia de uma morte agradável; resolvi pedir um copo d’água. Passei adiante da primeira casa, que, não sei por quê, me pareceu antipática, e segui andando pela estrada até chegar num casarão verde, enorme, de três andares, cercado por trepadeiras, arbustos e arvoredo. Ao entrar na varanda da frente, ouvi barulhos estranhos lá dentro e também senti cheiro de carne crua, urina e fezes. No entanto, o aspecto era acolhedor; toquei a campainha.

Uma mulher de seus 30 anos veio abrir a porta. Tinha cabelo comprido, de um ruivo acastanhado, bastante comprido e ficou me fitando com aqueles olhos castanhos. Era bonita, estava de blue jeans apertados, botas e camisa cor-de-rosa. O rosto e os olhos não demonstravam medo nem apreensão.

- Pois não? – disse, quase sorridente.

- Estou com sede – explicou. – Podia me dar um copo d’água?

- Entre, por favor – convidou, e acompanhei-a até a sala.

- Sente-se.

Sentei na beira de uma poltrona velha. Foi buscar água na cozinha. Enquanto estava ali sentado, escutei algo que veio correndo pelo corredor, entrou na sala, deu uma volta na minha frente, depois parou e ficou olhando pra mim. Era um orangotango. Deu pulos de alegria quando me viu. De repente saiu correndo na minha direção e saltou pro meu colo. Encostou o focinho na minha cara. Olhou um pouco bem no fundo dos meus olhos e logo recuou a cabeça. Pegou meu paletó, saltou de novo no chão e saiu na disparada pelo corredor afora, levando o paletó, fazendo barulhos estranhos.

Ela voltou com o copo d’água e me entregou.

- Meu nome é Carol – disse.

- E o meu é Gordon – retruquei – , mas agora não tem mais importância.

- Por que não tem?

- Ah, tô liquidado. No fim. Sabe como é.

- O que foi? Bebida? – perguntou.

- É – confirmei e depois acenei pra além das paredes – e eles.

- Também tenho problemas com “eles”. Vivo completamente só.

- Quer dizer que mora sozinha neste casarão?

- Bom, não é bem assim.

Deu uma risada.

- Ah, pois é, tem aquele baita macaco que roubou meu paletó.

- Ah, aquele é o Bilbo. Uma gracinha. Ele é doido.

- Vou precisar daquele paletó pra logo mais. De noite faz frio.

- Hoje você vai pernoitar aqui. Está com cara de quem precisa descansar um pouco.

- Se descansar, sou capaz de continuar com esse jogo.

- Acho que deve. Olhando direito, até que o jogo não é tão ruim.

- Não é o que eu penso. E, ademais, porque você quer me ajudar?

- Sou que nem o Bilbo – respondeu. – Maluca. Pelo menos pensaram que eu fosse. Passei três meses no hospício.

- Tá brincando – disse eu.

- Não tô, não. A primeira coisa que vou fazer é te preparar um pouco de sopa.

Depois explicou:

- A prefeitura está querendo me tirar esta casa. Tá correndo um processo. Ainda bem que o meu pai me deixou alguma grana. Posso lutar contra eles. Me chamam de Carol Maluca do Zoológico em Liberdade.

- Não leio jornal. Zoológico em Liberdade?

- E, só porque adoro animais. Com as pessoas eu não me entendo. Mas com os animais, puxa vida, eu me relaciono de verdade. Talvez seja biruta. Sei lá.

- Te acho muito bacana.

- É mesmo?

- É, sim.

- Parece que as pessoas têm medo de mim. Que bom que você não tem.

Os olhos castanhos se arregalaram. Eram escuros, sombrios, mas à medida que se conversava, iam perdendo a reserva.

- Escuta aqui – disse eu -, me desculpa, mas tenho que ir no banheiro.

- É  no fim do corredor, a primeira porta à esquerda.

- Tá legal.

Fui até o fim do corredor, depois dobrei à esquerda. A porta estava aberta. Estaquei. Empoleirado no cano do chuveiro havia um papagaio. E no tapete jogado no chão, estava deitado um tigre enorme. O papagaio fingiu que não me viu e o tigre me olhou entediado, sem o menor interesse. Voltei rapidamente pra sala da frente.

- Carol! Pelo amor de Deus, tem um tigre lá no banheiro!

-  Ah, é o Zé Soneca. Ele não vai te fazer mal.

- Bom, mas eu não posso cagar com um tigre me olhando.

-Ah, que bobagem. Vem cá!

Segui Carol pelo corredor. Ela entrou no banheiro e disse pro Tigre:

- Anda, Soneca, você tem que sair. O moço não pode cagar com você olhando pra ele. Ele acha que você quer comer ele.

O tigre olhou pra Carol com o maior desinteresse.

- Soneca, seu cretino, não me faz repetir outra vez! Agora vou contar até três! Aí vai! Já: um… dois… três.

O tigre nem se mexeu.

-Ah, é? Depois não fala que não avisei!

Pegou a fera pela orelha e, puxando com força, tirou daquela posição reclinada. O bicho começou a rosnar, a cuspir; dava pra ver as presas e a língua, mas Carol nem deu bola. Levou o tigre de lá pela orelha, saindo com ele pelo corredor. Depois soltou e disse:

- Agora chega, Soneca, vai pro teu quarto! Vai direto pra lá!

O tigre caminhou um pouco, aí deu meia-volta e se deitou no soalho de novo.

- Soneca! Já pro teu quarto!

O bicho encarou Carol, sem se mexer.

- Esse filho-da-puta tá ficando impossível – disse ela. – Talvez seja obrigada a dar-lhe um castigo, mas é uma coisa que detesto. Eu adoro o Soneca.

- Adora?

- Adoro, como todos os meus bichinhos de estimação. Escuta, e o papagaio? Não vai te incomodar?

- Acho que dá pra aguentar – disse eu.

- Então vai em frente, caga à vontade.

Fechou a porta. O papagaio não tirava os olhos de cima de mim. De repente falou:

- Então vai em frente, caga à vontade.

E foi o que fiz, bem na banheira.

Conversamos mais um pouco de tarde e de noite e liquidei duas boas refeições. Não tinha muita certeza se tudo aquilo não seria um gigantesco espetáculo de delirium tremens, se não tinha morrido ou enlouquecido e estava tendo visões.

Não sei quantos tipos diferentes de animais a Carol mantinha em casa. Na maioria eram bichos foragidos. Um Jardim Zoológico em Liberdade.

Depois vinha a “hora de fazer cocô e exercício”, como ela dizia.

E saía marchando com todos lá fora, em grupos de cinco ou seis. Levava pro quintal. Raposa, lobo, macaco, tigre, pantera, cobra – não falei que era um zoológico? Tinha quase de tudo. Mas o fato mais curioso é que nenhum incomodava o outro. Estar bem alimentado ajudava (a conta na alimentação era tremenda – papai devia ter deixado um bocado de grana), mas fiquei  com a impressão de que o carinho de Carol por eles colocava-os num estado de passividade bastante dócil e quase bem-humorado – um estado de amor petrificado. Os animais simplesmente sentiam-se bem.

- Olha só, Gordon. Espia só como são. Não dá pra não sentir carinho por eles. Vê como andam. Cada um tão diferente, tão real, com tanta personalidade. Não são como a gente. Sabem se conter, não se sentem perdidos, nunca são feios. Têm aptidão, a mesma com que nasceram.

- É, acho que entendo o que você quer dizer.

Naquela noite não consegui pegar no sono. Vesti a roupa de novo, menos o sapato e as meias, e saí pelo corredor até a sala da frente. Podia espiar sem ser visto. Fiquei ali, imóvel.

Carol estava nua, deitada de costas na mesinha de centro, com apenas a parte inferior das coxas e as pernas estendidas pra fora. O corpo inteiro era muito branco, excitante, como se nunca tivesse sido exposto ao sol, e os seios mais vigorosos que grandes pareciam partes autônomas, impelidas pra cima, e os mamilos não tinham aquele tom mais escuro da maioria das mulheres, mas antes de um rosa-avermelhado vivo, feito fogo, só que mais claro, quase luminoso. Puta merda, a mulher dos seios luminosos! E os lábios, da mesma cor, estavam abertos, num estado de sonho. A cabeça pendia de leve na outra extremidade da mesinha de centro, com aquele cabelo ruivo-acastanhado comprido balançando pra lá e pra cá, sacudindo-se todo, com as pontas viradas sobre o tapete. E o corpo inteiro dava a sensação de estar besuntado – parecia destituído de cotovelos e joelhos, sem nenhuma ponta, nenhuma aresta. Besuntado de óleo. A única coisa que destoava eram os seios pontudos. E enrolada no corpo havia uma longa serpente – não sei de que espécie. Mexia rápido com a língua, oscilava pra trás e pra frente de um lado da cabeça de Carol, devagar, sinuosa. Depois, erguendo-se de repente, dobrava o pescoço e ficava contemplando o nariz, os lábios, os olhos de Carol – todo o rosto.

De vez em quando a cobra deslizava bem de leve pelo corpo de Carol, num movimento que lembrava uma carícia e depois se encolhia um pouco, espremendo-a, enroscando-se toda. Carol ofegava, vibrava, estremecia; a cobra escorregava pela orelha abaixo, levantava, olhava o nariz, os lábios, os olhos e repetia os movimentos, Não parava de mexer com a língua e a buceta de Carol estava aberta, os pelos implorando, ruivos e lindos, à luz do abajur.

Voltei pro meu quarto. Cobra de sorte, pensei; nunca tinha visto corpo igual de mulher. Encontrei dificuldade pra pegar no sono, mas por fim consegui.

Na manhã seguinte, quando tomamos café juntos, comentei com Carol:

- Você é mesmo apaixonada por esse teu jardim zoológico, né?

- Sou, sim, por todos eles, sem exceção – respondeu.

Terminamos o café, quase sem dizer mais nada. Carol estava com aspecto ótimo, melhor do que nunca. Simplesmente radiante, cada vez mais. O cabelo parecia vivo, que ia saltar quando se mexia, e a luz que entrava pela janela caía em cheio sobre ele, realçando o vermelho.

Os olhos estavam bem abertos, brilhantes, e no entanto, sem medo, sem dúvida. Aquele olhar: nada lhe escapava e tudo exprimia. Era um animal e, ao mesmo tempo, humana.

-Escuta aqui – disse-lhe -, se der pra tirar o paletó daquele macaco, já posso ir andando.

- Não quero que você vá embora – protestou.

- Tá querendo me incluir no teu zoológico?

-Tô.

- Mas sou humano sabia?

-Só que não foi contaminado. Não é que nem eles. Ainda flutua por dentro;  eles estão perdidos, endureceram. Você pode estar perdido, mas não endureceu. A única coisa que precisa é que alguém te descubra.

- Mas talvez esteja velho demais pra ser… amado como o resto do teu zoológico.

- Ah… sei lá… gosto tanto de você. Não dá pra ficar? A gente podia te descobrir.

Na segunda noite também não consegui pegar no sono. Fui andando pelo corredor até a cortina de contas da porta da sala e espiei. Carol, desta vez, tinha posto uma mesa no meio da sala. Era de carvalho, quase preta, de pés bem grossos. Ela estava estendida em cima, apoiando as nádegas na beirada, as pernas abertas, com os dedos dos pés mal encostados no chão. De repente afastou a mão que tapava a buceta. O corpo inteiro então pareceu todo encabulado, de um rosa muito vivo; as veias ficaram nítidas e em seguida desapareceram. Por um instante o resto daquele rosado pairou logo abaixo do queixo, em torno do pescoço, depois se desfez e a buceta se entreabriu.

O tigre rodeava a mesa em círculos lentos. De repente começou a andar cada vez mais depressa, sacudindo o rabo. Carol soltou um gemido abafado. A essa altura, o tigre já estava parado diante das pernas dela. Ergueu o corpo e pousou as duas patas de cada lado da cabeça de Carol. O membro cresceu, gigantesco. Cutucou a buceta, procurando a entrada. Carol pegou com as mãos, tentando orientá-lo. Os dois se contorceram à beira de uma agonia insuportável e ardente. Aí então uma parte do membro entrou… Carol deu um grito. Depois passou os braços pela nuca do bicho, enquanto ele começava a se mexer. Me virei e voltei pro meu quarto.

No dia seguinte almoçamos no quintal junto com os animais. Um autêntico piquenique. Comia salada de batata enquanto um lobo passava por mim, acompanhado por uma raposa prateada. Estava entrando num mundo completamente novo, uma experiência simplesmente inédita. A prefeitura tinha obrigado Carol a levantar aquela cerca alta de arame, mas os bichos ainda dispunham de ampla área de terra selvagem pra perambular. Terminamos de comer e Carol se estendeu na grama, olhando pro céu. Meu Deus, ser jovem de novo!

Carol olhou pra mim:

- Vem te deitar aqui, seu velho tigre!

- Tigre?

- É , “tigre, tigre, brasa ardente…”. Quando você morrer, vão te reconhecer logo, pelas listas.

Deitei no chão, ao lado dela. Se virou, pousando a cabeça no meu braço. Contemplei-a. O céu e a terra estavam contidos naqueles olhos.

- Você parece o Randolph Scott misturado com Humphrey Bogart.

Tive que rir.

- Como você é engraçada.

Não tirávamos os olhos um do outro. Tinha a sensação de que podia me afogar naquelas pupilas.

De repente estava passando a mão pelos lábios dela. Começamos a nos beijar e puxei-lhe o corpo contra o meu. Com a outra mão acariciava os cabelos. Foi um beijo de amor, um prolongado beijo de amor, e mesmo assim fiquei em ereção; o corpo dela se mexia colado ao meu, feito cobra. Passou uma avestruz.

- Puta merda – exclamei -, puta que pariu…

Nos beijamos de novo.  Aí foi ela quem começou a murmurar:

- Seu filho-da-puta! Ah, seu filho-da-puta, o que é que você tá fazendo comigo?

Segurou-me a mão e colocou-a dentro de blue jeans. Apalpei-lhe os pentelhos. Como a buceta, estavam úmidos. Comecei a roçar os dedos, a esfregar e de repente enfiei o indicador. Me beijava feito doida.

- Seu filho-da-puta! Seu filho-da-puta!

De repente me empurrou pra trás.

- Que pressa! Temos que ir com calma, devagar. Desencostamos o corpo do chão; me pegou na mão e examinou a palma.

- A tua linha de vida… – disse. – Não faz muito tempo que você tá na terra. Olha aqui. Espia só a tua palma. Tá vendo esta linha?

- Tô.

- É a linha da vida. Agora, tá vendo a minha? Já estive várias vezes, antes, aqui na terra.

Falava sério, e acreditei. A gente tinha que acreditar em Carol. Era só o que havia pra se acreditar. O tigre nos observava a vinte passos de distância. A brisa soprou um pouco por trás da cabeleira ruiva-acastanhada de Carol, trazendo-a pra frente dos ombros. Não consegui resistir. Agarrei-a e nos beijamos de novo. Caímos pra trás; depois ela se soltou.

-Tigre, filho-da-puta, eu te avisei: vai com calma!

Conversamos mais um pouco. Aí ela falou:

- Nem sei como dizer, compreende? Já sonhei muito com isto. O mundo tá cansado. O fim não deve tardar. As pessoas embruteceram, ficaram irresponsáveis – uma gente de pedra. Cansaram delas mesmas. Vivem rezando pra que a morte venha e são preces que serão atendidas. Eu… eu estou bem… bom… eu ando meio que preparando uma nova criatura pra povoar o que sobrar da terra. Tenho a impressão de que noutros lugares também tem mais gente preparando essa nova criatura. Talvez até sejam muitos. Essas criaturas vão se encontrar, procriar e sobreviver, entendeu? Mas devem ser uma síntese do que todas as criaturas, homem inclusive, possuem de melhor,  pra sobreviver dentro da pequena partícula de vida que vai permanecer… Os meus sonhos, os meus sonhos… Não acha que estou louca?

Olhou pra mim e riu.

- Não acha que sou Carol Maluca?

- Sei lá – respondi. – Como vou saber?

De noite, não consegui pegar no sono de novo e fui andando pelo corredor até a sala da frente. Espiei pela cortina de contas. Carol estava sozinha, deitada no sofá, com o abajur aceso do lado, completamente nua e pelo jeito dormindo. Afastei as contas e entrei na sala, sentando numa poltrona na frente dela. A luz do abajur iluminava a parte superior do corpo; o resto ficava na penumbra.

Tirei a roupa e me aproximei do sofá. Sentei na beirada, olhando para ela. Abriu os olhos. Quando me viu, não pareceu surpresa. Mas as pupilas castanhas, apesar de claras e profundas, davam impressão de não ter reflexo nem vida, como se eu não fosse alguém que conhecia de nome ou conduta, mas uma outra coisa – uma força que nada tinha a ver comigo. E no entanto havia aceitação.

À luz do abajur, o cabelo era como durante o dia no sol: ruivo entremeado ao castanho. Dir-se-ia uma fogueira, um fogo que trazia no íntimo. Me curvei e dei-lhe um beijo atrás da orelha. Respirava e arquejava perceptivelmente. Desbocando as pernas de cima do sofá, deslizei pro soalho e passei-lhe a língua nos seios; me debrucei sobre a barriga,  o umbigo, subi de novo pros seios, tornei a deslizar corpo abaixo, onde começavam os pêlos, e me pus a beijar ali também, de leve; depois, sem me deter na vagina, fui pro meio das coxas, deslocando de uma pra outra. Se mexeu, murmurando: “ai, aií…” Então mergulhei a boca na fenda, descrevendo com a língua um círculo em torno dos lábios e em seguida fazendo o mesmo em sentido contrário. Mordi, penetrei duas vezes a língua bem fundo, voltei a tirar e repeti o  movimento giratório nos lábios. Foram ficando cada vez mais úmidos, com leve gosto de sal. Refiz o círculo com a língua. Outra vez o gemido: “ai, ai…” – flor se abriu, enxerguei o minúsculo botão e, da maneira mais delicada e suave possível, mordisquei e lambi. As duas pernas se agitaram e tentaram prender minha cabeça, mas me desvencilhei e fui subindo, lambendo, parando, em direção à garganta, mordendo, com o membro só cutucando, impaciente pra entrar. Ela ajudou com a mão e colocou-o na posição certa. Quando senti que estava lá dentro, nossas bocas se encontraram e ficamos unidos em dois lugares – a boca úmida e fria, a flor molhada e quente, um forno aceso ali embaixo. Mantive o pau todo, imóvel, naquele calor, enquanto se retorcia, sequiosa…

- Seu filho-da-puta, seu filho-da-puta… mexe! Mexe mais!

Fiquei parado e ela se debatendo. Apertei os dedos dos pés na ponta do sofá, calcando com força, completamente imóvel. E aí forcei o pau a latejar três vezes, sem mexer com o corpo. Ela reagiu com contrações. Repetimos aquilo e quando vi que não dava mais pra aguentar, tirei quase todo pra fora e enfiei outra vez – com tesão e cuidado – tornando a vibrar ali dentro e de repente parando, enquanto Carol se revirava toda: parecia um peixe preso no anzol. Fizemos isso várias vezes. Depois, com desvairado abandono, comecei a meter e tirar, sentindo o pau aumentar de tamanho e volume, os dois atingindo culminâncias juntos, numa simbiose perfeita, ultrapassando tudo, a história, nós mesmos, o nosso egoísmo, além de toda compaixão e análise, de tudo, em suma, com a alegria secreta de estarmos celebrando a Vida.

Chegamos ao mesmo tempo ao orgasmo e continuei dentro dela, esperando que o pau amolecesse. Quando beijei-a, os lábios, completamente macios, cederam à pressão dos meus. A boca afrouxou, entregue ao meu desejo. Passamos meia hora naquele abraço delicado e tranquilo. Carol foi a primeira a se levantar. Entrou no banheiro. Depois chegou a minha vez. Nessa noite não havia nenhum tigre ali dentro. Só o velho Tigre, aquela brasa ardente.

Nosso relacionamento prosseguia assim, sexual e espiritual, mas a todas essas, convém frisar, Carol não abriu mão dos animais. Os meses se passaram, éramos felizes. De repente notei que estava grávida. Puxa, que copo d’água que parei pra tomar, hem?

Um dia fomos fazer compras na cidade. Trancamos nossa casa toda, como sempre. Não havia motivo pra se preocupar com ladrões por causa da pantera, do tigre e dos vários outros animais pretensamente perigosos que andavam soltos por lá. As provisões deles eram entregues diariamente, mas tínhamos que ir buscar as nossas. Todo mundo conhecia Carol. A Carol Maluca, como diziam, e sempre paravam, curiosos, pra vê-la no supermercado. E agora a mim, também, o seu novo bichinho de estimação, bastante velho, por sinal.

Primeiro assistimos a um filme, de que gostamos. Quando saímos do cinema, chovia um pouco. Carol comprou uns vestidos próprios pra gravidez e depois fizemos o resto das compras. Voltamos pra casa devagar, conversando durante o trajeto, felizes da vida. Estávamos contentes. Não queríamos mais do que aquilo que já tínhamos; não precisávamos dos outros há muito tempo que não nos importávamos mais com o que podiam pensar. Mas era inegável o ódio que sentiam da gente. Éramos intrusos, marginais. Vivíamos no meio de animais, de feras que representavam uma  ameaça pra sociedade – segundo eles. Assim como também representávamos uma ameaça pro seu estilo de vida. Andávamos com roupas velhas. Eu nunca aparava a barba nem ia ao barbeiro e embora já tivesse cinquenta anos meu cabelo era cor de fogo. O de Carol dava pela bunda. E sempre descobríamos motivos para achar graça. E ríamos às gargalhadas. Não podiam entender. No supermercado, Carol havia dito:

- Ei, paizinho! Aí vai o sal! Pega ele, paizinho, seu velho sacana!

Estava parada lá longe no corredor, com três pessoas entre nós, e jogou o pacote de sal por cima da cabeça delas. Apanhei no ar, caímos na risada. Aí olhei pro sal.

- Não, não, minha filha, sua puta! Tá querendo endurecer minhas artérias? Tem que ser iodado! Pega aí, doçura, e cuidado com o nenê! Já bastam as borboletas que o pobre sacana vai ter que aguentar mais tarde!

Carol pegou e jogou de volta o iodado. A cara que eles fizeram… Não tínhamos um pingo de compostura.

O dia havia sido ótimo. O filme, uma bomba, mas o dia havia sido ótimo. Em matéria de filmes, preferíamos o que nós mesmos criávamos. A própria chuva estava gostosa. Baixamos os vidros e deixamos que nos molhasse. Quando ia guardando o carro  na garagem, Carol deu um gemido. De dor absoluta. Baixou os ombros e empalideceu.

- Carol! Que foi? Não tá se sentindo bem? – puxei-a contra mim. – O que é? Diz…

- Comigo tá tudo bem. É o que eles fizeram. Tô pressentindo, eu sei, ah meu Deus, Meu Deus do céu… ah meu Deus, esses patifes miseráveis, foram eles, foram eles, nojentos, canalhas de merda.

- Foram eles o quê?

- Que fizeram isso, os crimes… a casa… morte por toda parte…

- Espera aqui – pedi.

A primeira coisa que vi na sala da frente foi o Bilbo, o orangotango. Tinha um buraco de bala na fronte esquerda. A cabeça estava caída no meio de uma poça de sangue. Morto. Assassinado. Com uma expressão meio sorridente no focinho. Um sorriso misturado com dor, como se tivesse sentido de rir diante da Morte, ao ver que não era como esperava que fosse – uma verdadeira surpresa, que não dava pra entender, e por isso sorriu enquanto morria de dor. Bem, agora sabia mais a respeito do assunto do que eu.

Surpreenderam Soneca, o tigre, no seu refúgio favorito – o banheiro. Precisaram atirar várias vezes, como se estivessem assustados. Sangue em profusão, em parte já ressequido. Tinha os olhos fechados, mas a boca arreganhada como se quisesse rosnar, com as presas enormes e bonitas de fora. Até mesmo morto era mais imponente que muito homem vivo. O papagaio estava na banheira. Uma bala. Caído perto do ralo, o pescoço e a cabeça encolhidos por baixo do corpo, com uma asa esticada, enquanto as penas da outra tinham se arqueado, como se, de certo modo, fosse gritar, sem poder.

Revistei os quartos. Não restava mais nada com vida. Todos assassinados. O urso preto. O coiote. O quati. Todos. A casa inteira mergulhada em silêncio. Tudo imóvel. Não havia nada que se pudesse fazer. Tinha nas minhas mãos um vasto projeto de enterro. Os animais pagaram caro pela sua individualidade – e pela nossa.

Arrumei a sala da frente e o quarto, limpei o sangue que pude e trouxe a Carol pra dentro da casa. Aquilo provavelmente tinha acontecido enquanto estávamos no cinema. Abracei Carol no sofá. Ela não corava, só estremecia o corpo todo, de cima a baixo. Passei-lhe a mão, acariciando, dizendo coisas… De vez em quando era sacudida por uma emoção violenta e gemia: “Ooooh, oooh… meu Deus…” No fim de duas horas começou a chorar. Continuei ali, abraçado nela. Não demorou muito pra pegar no sono. Levei-a pra cama, tirei-lhe a roupa e tapei com a coberta. Depois fui dar uma olhada no quintal. Ainda bem que era grande. Íamos passar da noite pro dia, de Zoológico em Liberdade pra cemitério de animais.

Levei dois dias pra enterrar todos. Carol colocou marchas fúnebres no toca-discos, cavei as sepulturas, coloquei os cadáveres nas covas e cobri com terra. A tristeza era insuportável. Carol marcou os túmulos e nós dois tomamos vinho, sem dizer nada. As pessoas passavam, estranhavam e espiavam pela cerca de arame; adultos, crianças, repórteres e fotógrafos da imprensa. Quase no fim do segundo dia, enchi de terra a última cova e Carol então pegou a pá e se aproximou lentamente da multidão aglomerada na cerca. Assustados, recuaram, resmungando. Arremessou a pá contra eles. Se abaixaram imediatamente, protegendo a cabeça com as mãos, como se o arame pudesse rebentar.

- Muito bem, seus assassinos – gritou Carol -, estão satisfeitos?

Entramos em casa. Havia 55 túmulos no quintal…

Várias semanas depois, sugeri que se podia tentar outro zoológico, desta vez deixando alguém sempre de guarda.

- Não – retrucou. – Os meus sonhos… os meus sonhos já me disseram que chegou a hora. Tudo se aproxima do fim. Chegamos ainda a tempo. Conseguimos.

Não fiz pergunta. Achei que Carol já tinha passado por provações suficientes. Ao se aproximar o dia do nascimento da criança, me pediu pra casar com ela. Falou que não fazia questão do casamento, mas, já que não possuía parentes, queria que eu ficasse como herdeiro. Isso em caso de morrer ao dar à luz o filho e que os seus sonhos não se transformassem em realidade – a despeito do fim de tudo.

- Os sonhos podem estar errados – disse -, embora, até hoje, sempre se tenham concretizado.

Assim celebramos uma cerimônia nupcial discreta – no cemitério do quintal. Escolhi um de meus velhos amigos do bairro pobre como testemunha e padrinho e, mais uma vez, os transeuntes, curiosos, pararam diante da cerca pra assistir. Foi questão de minutos. Dei um pouco de dinheiro e vinho pro meu amigo e levei-o de carro pra casa.

No caminho, bebendo no gargalo da garrafa, me perguntou:

- Então, deflorou a bichinha, hem?

- Pois é, acho que sim.

- Acha? Quer dizer que houve outros?

- Hum… é.

- Com mulher é sempre assim. Nunca se sabe. A metade dos caras lá do bairro se deu mal por causa de saias.

- Pensei que fosse por causa de bebida.

- Primeiro as saias, depois a bebida.

- Sei.

- Nunca se sabe com essas tipas.

- Ah, mas eu sabia.

Me olhou de um jeito penetrante e então abri a porta pra que descesse do carro.

Esperei no andar térreo do hospital. Como tudo aquilo tinha sido estranho. Todas as coisas que estavam acontecendo desde que saí do bairro pobre e fui parar naquele casarão.  O amor e a agonia. Se bem que, no fim das contas, o amor tivesse saído vencedor. Mas agora só restava esperar. Tentei ler o gráfico das posições do campeonato de beisebol, o resultado das corridas de cavalo. Não consegui me interessar. E depois havia os sonhos de Carol; acreditava nela, mas duvidava dos sonhos. O que significariam? Não sabia. De repente vi o médico de Carol no balcão da recepção, conversando com uma enfermeira. me aproximei.

- Ah, Mr. Jennings – disse ele -, sua esposa está passando bem. E o filhote é… é… macho e pesa quase cinco quilos.

- Obrigado, doutor.

Entrei no elevador e subi pra ir olhar no berçário. Devia haver uma centena de recém-nascidos ali, atrás daquele vidro, chorando. Sem parar. Esse negócio de nascer. E de morrer. Cada um na sua hora. A gente chega sozinho e vai-se embora do mesmo jeito. E a maioria passa a vida inteira sem ninguém, assustada e sem entender nada. Uma tristeza indizível tomou conta de mim. Vendo todas aquelas vidas que teriam que  morrer. Que primeiro se transformariam em ódio, demência, neurose, estupidez, em crime, em nada – nada na vida e nada na morte.

Disse meu nome à enfermeira. Ela entrou na sala envidraçada e localizou o nosso filho. Ao levantar a criança no ar, a enfermeira sorriu. Um sorriso incrível, de perdão. Nem podia ser de outro modo. Olhei pra criança – impossível, clinicamente impossível: era um tigre, um urso, uma cobra e um ser humano. Um alce, um coiote, um lince e um ser humano. Não chorava. Os olhos se fixaram em mim e me reconheceram. E eu também reconheci. Uma coisa insuportável, o Homem e o Super-homem, Super-homem e Superfera. Completamente impossível e olhava pra mim, o Pai, um dos pais, um dos muitos e muitos pais… e os raios de sol se cravaram no hospital, que começou a estremecer de cima a baixo, as crianças rugindo de medo, as luzes se acendendo e apagando; um clarão roxo relampejou na repartição de vidro na minha frente. As enfermeiras gritavam. Três luminárias fluorescentes se desprenderam dos suportes e desabaram sobre os berços. A enfermeira ficou ali parada, em pé, segurando meu filho e sorrindo, enquanto a primeira bomba de hidrogênio caía sobre a cidade de São Francisco.

CANIBUK.

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