Roberto Bolaño
Um trecho
Na quarta-feira 6 de abril, ao entardecer, quando eu ia saindo de casa recebi um telegrama da minha jovem amiga madame Reynaud solicitando minha presença em caráter urgente naquela mesma tarde no Café Bordeaux, localizado na rue de Rivoli, não muito longe da minha residência e a uma hora em que eu ainda, se me apressasse, podia chegar com pontualidade.
O primeiro sintoma da singularidade da história em que eu acabava de embarcar se apresentou logo em seguida, quando desci a escada e cruzei, na altura do terceiro andar, com dois homens. Falavam espanhol, um idioma que não entendo, e usavam gabardines escuras e chapéus de aba larga que, por estarem eles num nível inferior ao meu, velavam seus rostos. Pela meia penumbra comumente reinante na escada e devido também à
minha maneira silenciosa de me movimentar, não se deram conta da minha presença até ficarem frente a frente comigo, distantes tão só três degraus; então pararam de falar e, em vez de se afastarem para que eu pudesse continuar descendo (a escada é larga o bastante para duas pessoas, não para três), olharam?se um ao outro durante uns instantes que me pareceram fixos em algo como um simulacro de eternidade (devo insistir que eu estava alguns degraus acima) e depois pousaram, com extrema lentidão, seus olhos em mim. Policiais, pensei, só eles conservam essa forma de olhar, herança de caçadores e de bosques umbrosos; depois me lembrei de que falavam espanhol, portanto não podiam ser policiais, pelo menos não policiais franceses. Pensei que se dispunham a falar comigo, o inevitável francês capenga dos estrangeiros perdidos, mas em vez disso o que estava diante de mim se pôs de lado, do pior modo imaginável, contra o ombro do seu companheiro, numa posição que certamente incomodaria os dois, e pude, depois de um breve cumprimento que não foi
correspondido, continuar a descida. Por curiosidade, ao chegar ao primeiro patamar me virei e observei: continuavam ali, juraria que nos mesmos degraus, debilmente iluminados por uma lâmpada do patamar superior e, o que é de fato surpreendente, na mesma posição que adotaram para que eu pudesse passar. Como se o tempo houvesse parado, pensei. Ao chegar à rua, a chuva fez com que eu me esquecesse desse incidente.
Madame Reynaud estava sentada no fundo do restaurante, junto da parede, as costas como de costume bem retas. Parecia impaciente, mas ao me avistar seu rosto se tranquilizou, como se uma repentina lassidão fosse a maneira indicada para demonstrar que tinha me reconhecido e que me aguardava.
- Quero que vá ver o marido de uma amiga — foi a primeira coisa que disse mal tomei assento em frente a ela, de cara para um enorme espelho de parede do qual podia dominar a quase totalidade do restaurante.
Lembrei?me, sabe?se lá por que contorta analogia, do rosto de seu jovem marido, falecido pouco tempo antes.
— Pierre — repetiu reforçando cada palavra —, é urgente que veja, profissionalmente, o marido da minha amiga.
Creio que pedi uma taça de menta antes de perguntar de que doença padecia o senhor...
— Vallejo — disse madame Reynaud, e acrescentou, igualmente sucinta: — Soluço.
Não sei por que as imagens desconexas de um rosto que podia ser o do falecido monsieur Reynaud se sobrepuseram aos corpos que bebiam e conversavam a uma ou duas mesas de distância.
— Soluço? — perguntei com um triste sorriso que queria ser respeitoso.
— Está morrendo — afirmou com veemência minha interlocutora —, ninguém sabe de quê, não é brincadeira, o senhor tem de salvar a vida dele.
— Temo — sussurrei enquanto ela espiava nervosamente através das vidraças o fluir dos passantes da rue de Rivoli — que, se a senhora não for mais explícita...
— Não sou médica, Pierre, não entendo quase nada dessas coisas, bem sabe que minha desgraça foi essa, sempre quis ser enfermeira. — Seus olhos azuis brilharam enfurecidos. Madame Reynaud, de fato, não havia feito estudos superiores (na verdade não havia feito estudos de nenhum tipo), o que não era empecilho
para que eu a considerasse uma mulher de viva inteligência.
Com um ligeiro muxoxo, baixando as pestanas, acrescentou com a entonação de quem recita algo aprendido de cor:
— Desde fins de março monsieur Vallejo está hospitalizado. Os médicos ainda não sabem o que ele tem, mas o certo é que está morrendo. Ontem começou a ter soluço... — Deteve?se um momento, passeou o olhar pela clientela, como se tentasse localizar alguém. — Quer dizer, começou ontem a soluçar constantemente sem que ninguém pudesse fazer nada para aliviar. O senhor sabe, o soluço pode chegar a matar uma pessoa. Como se isso não bastasse, a febre não baixa a menos de quarenta. Madame Vallejo, que conheço há anos, me ligou esta manhã. Está sozinha, não tem ninguém salvo os amigos do marido, quase todos sul?americanos. Ao me explicar sua situação pensei no senhor, mas é claro que não prometi nada a ela.
— Sua confiança é uma honra — consegui suspirar.
— Tenho fé no senhor — replicou de imediato.
Pensei que a fé era o primeiro requisito para amar. Ela me pareceu frágil. Seus olhos estavam secos (por que não estariam?) e pareciam estudar com morosidade as ombreiras do meu paletó.
— O que os médicos não conseguiram, o senhor pode fazer com acupuntura.
Pôs a mão em cima da minha; senti um ligeiro calafrio; os dedos de madame Reynaud, por um instante, me pareceram transparentes.
— Creia?me, o senhor é a única pessoa que pode salvar o marido da minha amiga, mas devemos nos apressar, se aceitar terá de ir ver Vallejo amanhã mesmo.
— Não posso me negar, é claro — disse sem me atrever a encará-la.
Sua exclamação atraiu a atenção de algumas mesas vizinhas:
— Eu sabia! Oh, Pierre, confio no senhor, confio tanto!
— Qual a primeira coisa que devo fazer? — atalhei?a, enquanto via no espelho meu rosto ruborizado, talvez feliz, e a figura do garçom falando com dois indivíduos vestidos de preto, altos e magros, de rosto descarnado, ao lado do caixa, como se estivessem pagando a conta ou fazendo uma confidência.
— Não sei, meu amigo, tenho de falar com Georgette, com madame Vallejo — precisou —, e marcar um encontro para amanhã cedo.
— Ótimo. Quanto antes eu tiver uma ideia do estado em que se encontra o marido da sua amiga, melhor — asseverei.
O garçom e os dois homens de preto se viraram para nos observar. Os desconhecidos, extremamente pálidos, moveram a cabeça, em uníssono, como que assentindo. Tive uma sensação estranha: nesse momento me pareceram, ambos, uma das encarnações possíveis da piedade. Perguntei?me se madame Reynaud não os conhecia.
— Estão nos observando.
— Quem?
— Ali, junto do caixa, dissimule, dois homens vestidos de preto. Para mim parecem um par de anjos, não acredita?
— Não diga bobagem, eu lhe suplico, os anjos são jovens e têm a pele rosada. Esses pobres homens parecem recém?saídos da prisão.
— Ou de um porão.
— Mas provavelmente são apenas empregados de escritório cansados, talvez doentes.
— É verdade. A senhora os conhece?
— Não, claro que não — respondeu, os olhos fixos no prendedor da minha gravata.
Parecia ter ficado menor.
…
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