Um dia ideal para os peixes-banana e livros e cinema e gibis e nus e ataxia espinocerebelar e 𓋹
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
quinta-feira, 25 de novembro de 2010
MERIDIANO SANGRENTO
Cormac McCarthy
Uma legião de horríveis, centenas em número, seminus ou em trajes clássicos ou bíblicos ou tirados de um armário num delírio, com peles de animais e atavios de seda e peças de uniforme ainda manchadas com o sangue dos antigos donos, capotes de dragões chacinados, túnicas de cavalaria com alamares e debruadas, um de cartola e um com um guarda-chuva e um de meias brancas e com um véu de noiva manchado de sangue e alguns com cocares de penas de garça ou capacetes de couro cru com chifres de touro ou de búfalo e com uma casaca vestida ao contrário e com o rosto nu e um com uma armadura de um conquistador espanhol, o peito e as espáduas completamente amassados por antigos golpes de massa ou sabre desferidos em outro país por homens cujos ossos eram pó e muitos com tranças entremeadas com cabelos de outros animais enquanto rastejavam pelo chão e as orelhas e rabos de seus cavalos enfeitadas com pedaços de panos coloridos e um cujo cavalo tinha toda a cabeça pintada de vermelho carmesim e todos os cavaleiros com pinturas espalhafatosas e grotescas no rosto como um regimento de palhaços montados, de matar de rir, todos berrando numa língua bárbara e cavalgando como uma horda saída de um inferno ainda mais terrível do que a terra de enxofre do juízo final cristão, guinchando e uivando e envoltos em fumaça como aqueles seres fantásticos de regiões além do justo conhecimentos onde o olho vagueia e o lábio resseca e baba.
O regimento agora conseguira parar e os primeiros tiros estavam sendo desfechados e a fumaça cinzenta dos rifles rolava em meio à poeira ao mesmo tempo que os lanceiros abriam brechas em suas fileiras. O cavalo do garoto desabou embaixo dele com um suspiro longo e profundo Ele já tinha atirado com seu rifle e agora estava sentado no chão e atrapalhado com sua cartucheira. Um homem perto dele estava sentado com uma flecha pendendo do pescoço. Estava levemente curvado, como se estivesse rezando. O garoto ia puxar a ponta ensangüentada mas então viu outra flecha cravada no seu peito e o homem estava morto. Havia cavalos caídos por todo lado e homens arrastando-se e ele viu um homem sentado carregando seu rifle enquanto sangue escorria de suas orelhas e viu homens com seus revólveres abertos tentando ajustar seus cilindros mal municiados e viu homens de joelhos pendendo e abraçando suas sombras no chão e viu homens transpassados por lanças e agarrados pelos cabelos e escalpelados de pé e viu os cavalos dos guerreiros pisarem em cima dos caídos e um pônei pequeno de focinho branco com um olhar sombrio avançou para ele e tentou mordê-lo como um cachorro e foi embora. Entre os feridos alguns pareciam idiotas e inconscientes e alguns estavam pálidos atrás das máscaras de poeira e alguns tinham se borrado ou cambaleado até as lanças dos selvagens. Agora movendo-se numa fila turbulenta os cavalos impetuosos com olhos esbranquiçados e dentes afiados e cavaleiros nus com feixes de flechas presos entre os dentes e seus escudos cintilando na poeira e indo para o extremo das fileiras destroçadas entre o assobio de flautas de ossos e pendurados de lado em suas montarias com um calcanhar pendendo das correias ressecadas e seus pequenos arcos flectidos sob os pescoços esticados dos pôneis até terem cercado o regimento e cortado suas fileiras em dois e então voltando como vultos ridículos, alguns com figuras assustadoras pintadas no peito, cavalgando entre os saxões a pé e espetando-os e batendo neles de cima de suas montarias com facas e galopando ao redor sobre o solo com um trote cambaio peculiar como criaturas impelidas por estranhas formas de locomoção e arrancando as roupas dos mortos e pegando-os pelos cabelos e passando suas lâminas pelo crânio tanto dos vivos como dos mortos e erguendo no ar os escalpos ensangüentados e cortando e retalhando corpos nus, arrancando membros, cabeças, abrindo os torsos dos brancos estranhos e exibindo punhados de vísceras, órgãos genitais, alguns dos selvagens tão empapados com sangue que deviam ter rolado nele como cães e alguns atiravam-se sobre os agonizantes e os sodomizavam gritando alto para seus companheiros. E agora os cavalos dos mortos surgiram pisoteando da fumaça e da poeira e com os arreios balançando e crinas desgrenhadas e olhos embranquecidos pelo medo como os olhos dos cegos e alguns estavam cheios de flechas e alguns atravessados por lanças e tropeçando e vomitando sangue enquanto andavam pela terra assassina e trotavam de novo fora do alcance da vista. Poeira grudava-se nas cabeças molhadas e nuas dos escalpelados que com a orla de cabelos abaixo das feridas e tonsurados até o osso agora jaziam como macacos mutilados na poeira assentada pelo sangue e por todo lado os agonizantes gemiam e diziam coisas desconexas e cavalos estavam caídos guinchando.
Vi no Escrivinhamentos.
OLHE DE NOVO
__ Look again at that dot. That’s here. That’s home. That’s us. On it everyone you love, everyone you know, everyone you ever heard of, every human being who ever was, lived out their lives. The aggregate of our joy and suffering, thousands of confident religions, ideologies, and economic doctrines, every hunter and forager, every hero and coward, every creator and destroyer of civilization, every king and peasant, every young couple in love, every mother and father, hopeful child, inventor and explorer, every teacher of morals, every corrupt politician, every “superstar”, every “supreme leader”, every saint and sinner in the history of our species lived there - on a mote of dust suspended in a sunbeam.
Carl Sagan.
CIRCULO DO MEDO
Sinopse: Gregory Peck e Robert Mitchum estrelam a clássica história de Hollywood sobre a vingança e assassinato. Robert Mitchum está inesquecível como Max Cady, um ex-presidiário determinado a uma terrível vingança contra seu ex-advogado Sam Bowden, em magistral performance de Gregory Preck, e sua família. Sam é advogado numa pequena cidade e seu pior pesadelo se torna realidade quando o criminoso que ele defendeu retorna para perseguir e atentar contra a vida e a honra de sua jovem esposa e de sua filha adolescente. Apesar da ajuda do chefe da polícia local e de um detetive particular. Sam não tem poderes legais para impedir Max neste jogo sádico de gato e rato. Finalmente Sam decide colocar a vida de sua família numa terrível armadilha e enfrentar seu inimigo em um dos mais aterrorizantes confrontos já mostrados na história do cinema. Assista ao Trailer. Para baixar, clique na imagem e vá ao Filmes com legenda.
sexta-feira, 19 de novembro de 2010
quarta-feira, 17 de novembro de 2010
RED HILL
Sinopse: Shane Cooper é um jovem policial que se transfere para a pequena comunidade de Red Hill, onde espera começar com sua esposa grávida uma nova família. Mas quando chegam as notícias de uma fuga da prisão, os policiais do local entram em pânico, e o primeiro dia de Shane irá de mal a pior. Jimmy Conway é um assassino convicto que está buscando vingança. E agora, em meio a um terrível banho de sangue, Shane se verá obrigado a tomar a justiça em suas mãos se quiser sobreviver. Assista ao Trailer. Mais um oferecimento do Filmes com legenda. Clique na imagem.
O GRANDE GATSBY
Scott Fitzgerald
Um trecho:
Capítulo 1
Em meus anos mais juvenis e vulneráveis, meu pai me deu um conselho que jamais esqueci:
- Sempre que você tiver vontade de criticar alguém - disse-me ele - lembre-se de que criatura alguma neste mundo teve as vantagens de que você desfrutou.
Ele nada mais disse, mas sempre fomos comunicativos de uma maneira bastante incomum e reservada, e eu compreendi que ele queria dizer muito mais do que isso. Por conseguinte, sinto-me inclinado a guardar para mim todos os meus juízos, hábito esse que fez com que muitas naturezas curiosas se abrissem comigo, mas que também me tornou vítima de muitos maçadores inveterados.
A mente anormal percebe-a rapidamente e sente-se atraída por essa qualidade, quando ela aparece numa pessoa normal, e, assim, aconteceu que, na universidade, eu fui injustamente acusado de ser um político, por saber guardar as mágoas secretas de indivíduos violentos, desconhecidos. Quase todas as confidências eram espontâneas, eu fingia, não raro, que estava dormindo, que me achava preocupado ou, então, revelava uma leviandade hostil, ao perceber, por certos sinais inconfundíveis, que uma revelação íntima palpitava no horizonte - pois que as revelações íntimas dos jovens ou, pelo menos, os termos em que eles as exprimem, têm, habitualmente, muito de plágio e, o que é pior, de plágios desfigurados por evidentes supressões. Reservar para nós os nossos juízos, é coisa que proporciona infinitas possibilidades. Tenho ainda certo receio de perder alguma coisa, se esquecer que, como meu pai pretensiosamente sugeria, e eu, pretensiosamente, repito, um certo senso de decência fundamental é concedido, ao homem, desigualmente, ao nascer.
E, após jactar-me assim de minha tolerância, devo admitir que ela tem limite. A conduta pode basear-se em rocha sólida ou em pântano alagadiço, mas, depois de certo ponto, pouco me importa aquilo em que ela se baseie. Quando voltei ao Leste, no outono passado, senti que queria que o mundo todo estivesse metido em uniforme e colocado numa espécie de posição de sentido moral permanente; estava farto de excursões turbulentas, com privilegiados relanceares de olhos, ao coração humano. Somente Gatsby, o homem que empresta seu nome a este livro, se achava isento dessa minha reação - Gatsby, que representava tudo aquilo por que sinto natural desdém. Se a personalidade consiste numa série ininterrupta de gestos bem-sucedidos, então é certo que havia nele algo magnífico, uma apurada sensibilidade para as promessas da vida, como se ele tivesse alguma relação com esses intrincados maquinismos que registram terremotos ocorridos a dez mil milhas de distância. Essa sensibilidade nada tinha a ver com essa flácida impressionabilidade dignificada pelo nome de "temperamento criador": era um dom extraordinário de esperança, uma presteza romântica como jamais encontrei em qualquer outra pessoa e que, provavelmente, jamais tornarei a encontrar. Não... Gatsby saiu-se bem, no fim; o que perseguia Gatsby - a abominável poeira que pairava sobre a esteira de seus sonhos - é que fez com que eu perdesse temporariamente o interesse pelas tristezas abortivas e pelas ofegantes alegrias dos homens.
Por espaço de três gerações, minha família fora gente preeminente, abastada, daquela cidade do Centro-Oeste. Os Carraways são algo assim como um clã e, segundo a tradição, descendemos dos Duques de Buccleuch, mas o verdadeiro fundador do ramo a que pertenço foi o irmão do meu avô, que veio para cá em 51, mandou um substituto para a Guerra Civil e começou o negócio de ferragens a que meu pai se dedica até hoje.
Jamais vi esse meu tio-avô, mas julgam-me parecido com ele - principalmente quanto ao que se refere ao retrato um tanto impassível que lá está dependurado no escritório de meu pai. Diplomei-me em New Haven em 1915, justamente um quarto de século depois de meu pai, e um pouco mais tarde participei daquela retardada migração teutônica conhecida como a Grande Guerra. Apreciei tão vivamente aquela contra-incursão, que voltei para casa irrequieto. Ao invés de ser o cálido centro do mundo, o Centro-Oeste pareceu-me, então, a áspera extremidade do universo - de modo que resolvi seguir para o Leste e aprender o negócio de títulos. Toda gente que eu conhecia estava metida no negócio de títulos, o que me fez pensar que o mesmo poderia suportar mais um único indivíduo. Todos os meus tios e tias discutiam o assunto, como se estivessem escolhendo para mim uma escola de preparatórios e, finalmente, disseram, com fisionomias muito graves, hesitantes: "Oh!... Sem dúvida!". Meu pai concordou em financiar-me por espaço de um ano e, após várias delongas, vim para o Leste - permanentemente, pensava eu - na primavera de 22.
O aspecto prático da questão era encontrar acomodações na cidade, mas era uma estação quente, e eu acabara de deixar uma região de extensos relvados e árvores acolhedoras, de modo que, quando um jovem, no escritório, sugeriu que devíamos alugar juntos uma casa numa cidadezinha próxima, aquilo me pareceu uma grande ideia. Ele encontrou um bangalô de construção frágil, batido pelas intempéries, que parecia feito de papelão, cujo aluguel era de oitenta dólares mensais, mas, no último momento, a firma o mandou para Washington e eu mudei-me sozinho para o campo. Eu tinha um cão - tive-o pelo menos durante alguns dias, enquanto ele não fugiu -, um velho Dodge e uma criada finlandesa que me arrumava a cama, preparava a refeição matinal e murmurava para si própria a sabedoria finlandesa, diante do fogão elétrico.
Permaneci solitário durante um ou dois dias, até que, uma manhã, um homem que chegara mais recentemente do que eu me abordou na estrada.
- Pode informar-me como se vai para a aldeia de West Egg? - perguntou-me, desanimado. Dei-lhe a informação. E, ao prosseguir o meu caminho, já não me sentia mais solitário. Eu era um guia, um desbravador de caminhos, um colonizador autêntico. Ele, casualmente, conferiu-me a liberdade de quem não se sente só.
E, assim, com o sol a brilhar e grandes rebentos de folhas a crescer nas árvores, exatamente como crescem as coisas nas rápidas películas cinematográficas, experimentei a familiar convicção de que a vida recomeçava com o verão.
Havia muito que ler e ainda muita saúde para se aspirar, em longos haustos, do ar vivificante. Comprei uma dúzia de volumes sobre operações bancárias, crédito e investimentos em apólices, e esses volumes lá estavam em minha estante, vermelhos e dourados como dinheiro novo recém-cunhado, prometendo revelar-me os cintilantes segredos, que somente Midas, Morgan e Mecenas conheciam. E eu alimentava ainda a elevada intenção de ler muitos outros livros. Eu era um tanto dado à literatura, em meus tempos de estudante: escrevi, num desses anos, uma série de artigos muito sérios e óbvios para a Yale News - e ia agora trazer de volta à minha vida todas essas coisas e converter-me de novo no mais limitado de todos os especialistas, o "homem bem informado". Isto não é apenas um epigrama: pode-se ver muito melhor a vida observando-a de uma única janela.
Deve-se apenas ao acaso o haver eu alugado uma casa numa das mais estranhas comunidades da América do Norte. Achava-se ela situada na comprida e turbulenta ilha que se estende a leste de Nova York - e onde há, entre outras curiosidades naturais, duas características topográficas nada comuns. A vinte milhas da cidade, um par de ovos enormes, de contornos idênticos e separados apenas por uma gentil baía, se lançam sobre a mais domesticada massa de água salgada do hemisfério Norte, o grande pátio líquido do Estreito de Long Island.
Não são perfeitamente ovais - pois que, como os ovos da história de Colombo, são um tanto achatados em sua base - mas sua semelhança física deve constituir uma perpétua fonte de espanto para as gaivotas que sobre eles voam. Para os que não têm asas, o fenômeno mais interessante é a dessemelhança existente, sob todos os aspectos, entre esses dois ovos, exceto em sua forma e tamanho.
Eu morava em West Egg, o... bem, o menos elegante dos dois, embora este seja um rótulo sumamente superficial para exprimir o contraste bizarro - e que não deixava de ser, de certo modo, sinistro - existente entre ambos. Minha casa ficava bem na ponta do ovo, a somente cinquenta jardas de distância do Estreito, espremida entre duas enormes mansões, cujo aluguel, durante a estação, variava entre doze e quinze mil dólares. A da direita era colossal, comparada a qualquer construção do mesmo gênero: tratava-se, com efeito, de uma imitação de algum hôtel de ville da Normandia, com uma torre ao lado esplendidamente nova sob o seu tênue revestimento de hera, uma piscina de mármore e mais de quarenta acres de relvados e jardins. Era a mansão de Gatsby. Ou melhor, como eu não conhecia o Sr. Gatsby, era uma mansão habitada por um cavalheiro desse nome. Quanto à minha casa, era uma monstruosidade, mas uma monstruosidade insignificante, e, assim, fora deixada no esquecimento, de modo que eu desfrutava de uma paisagem parcial proporcionada pelos relvados do meu vizinho e da consoladora proximidade de milionários - tudo isso por oitenta dólares mensais.
Do outro lado da gentil baía, os alvos palácios do elegante East Egg cintilavam junto à água, e a história desse verão começa realmente na noite em que para lá me dirigi de automóvel, a fim de participar de um jantar em casa dos Tom Buchanans. Daisy era minha prima em segundo grau, e Tom fora meu colega de universidade. Logo depois de terminada a guerra, eu passara dois dias com eles em Chicago.
O marido de Daisy, entre outros feitos físicos, tinha sido um dos mais vigorosos jogadores de rugby que New Haven já conhecera - uma figura nacional de certo modo, um desses homens que atingem, aos vinte e um anos, tão grande e ilimitada excelência em alguma coisa que, depois, tudo em suas vidas cheira a anticlímax. Sua família era riquíssima; mesmo na universidade, sua liberdade em questões de dinheiro era motivo de censuras - mas agora tinha deixado Chicago e vindo para o Leste de uma maneira que quase deixava a gente sem fôlego: comprara, por exemplo, em Lake Forest, um lote inteiro de cavalos de pólo. Era-me difícil compreender como é que um homem de minha própria geração era suficientemente rico para fazer tal coisa.
Por que razão vieram eles para o Leste é coisa que não sei.
Tinham passado, sem razão alguma particular, um ano na França e, depois seguido, irrequietamente, de um lugar para outro, detendo-se onde quer que houvesse criaturas que jogassem pólo e fossem ricas em comum. Aquela era uma mudança permanente, dissera-me Daisy ao telefone; mas eu não acreditava nisso. Não me era possível ver o que se passava no coração de Daisy, mas eu pressentia que Tom andaria sempre a esmo, a procurar, um tanto anelantemente, a dramática turbulência de algum jogo de rugby irrecuperável.
E, assim, aconteceu que, numa noite cálida e ventosa, me dirigi para East Egg, em visita a dois velhos amigos que eu mal conhecia. Sua casa era ainda mais imponente do que eu esperava, uma alegre mansão colonial georgiana, vermelha e branca, que se elevava sobre a baía. O relvado começava na praia e avançava em direção à porta principal, numa extensão de um quarto de milha, saltando, por cima de quadrantes solares, muros de tijolos e canteiros de evônimos - e, finalmente, ao chegar à casa, desviava-se para o lado em vistosas videiras, como se atingisse o momento culminante de sua corrida. A fachada abria-se numa sucessão de portas envidraçadas, refulgentes sob os reflexos dourados do sol e escancaradas à tarde cálida e ventosa, e Tom Buchanan, em seu trajo de montaria, achava-se de pé, as pernas separadas, no alpendre fronteiro.
Ele mudara, desde os anos que passara em New Haven. Era agora um homem vigoroso, de trinta anos, cabelos cor de palha, boca um tanto dura e maneiras desdenhosas. Dois olhos vivos, arrogantes, estabeleceram domínio sobre o seu rosto, dando-lhe a aparência de alguém que estivesse sempre pronto a agredir. Nem mesmo o corte efeminado de suas roupas de montar conseguia ocultar o enorme vigor daquele corpo; ele parecia encher suas botas rebrilhantes até ao ponto de forçar os laços que as prendiam na parte superior, e podia-se notar o grande feixe de músculos a retesar-se, quando seus ombros se moviam debaixo do casaco leve. Era um corpo capaz de levantar grandes pesos - um corpo cruel.
Sua voz de barítono, áspera e fanhosa, aumentava a impressão de impertinência que ele causava. Havia nela um certo desdém paternal, mesmo quando ele se dirigia a pessoas de quem gostava - e, em seus tempos de New Haven, muitos rapazes detestavam aquela sua desfaçatez.
"Ora, não pensem que minha opinião sobre esses assuntos é decisiva - parecia dizer - só porque sou mais forte e mais homem do que você." Pertencíamos, então, ao mesmo grêmio de alunos do último ano e, embora jamais tivéssemos sido íntimos, eu sempre tive a impressão de que ele me via com bons olhos e queria, naquela sua maneira rude, insolente e sôfrega, que eu o apreciasse.
Conversamos alguns minutos no alpendre ensolarado.
- Tenho aqui uma bela casa - disse-me ele, lançando em torno um olhar inquieto. Depois, tomou-me o braço e, virando-me para o outro lado, fez um largo gesto com a mão, abrangendo, embaixo, um jardim italiano, meio acre de olorosos roseirais e uma lancha a motor que balançava sobre as ondas.
- Isto pertencia a Demaine, o homem do petróleo. - Tornou a virar-me, delicada e abruptamente, para o outro lado: - Vamos entrar.
Atravessamos um alto saguão e entramos num aposento cor-de-rosa, fragilmente ligado à casa por amplas portas envidraçadas, situadas em ambas as extremidades. Essas portas, escancaradas, cintilantes em sua alvura, tinham por fundo o fresco gramado do jardim, cujo reflexo parecia penetrar um pouco pela casa. O vento, perpassando pelo salão, agitava as cortinas de um lado e de outro, como pálidas bandeiras, erguendo-as para o teto cremoso como um bolo de casamento, ou fazendo-as ondular sobre o tapete cor de vinho, formando uma sombra sobre o mesmo, como o vento faz sobre o mar.
O único objeto completamente imóvel no salão era um enorme divã, sobre o qual duas jovens mulheres flutuavam como se estivessem num balão ancorado. Trajavam ambas de branco, e seus vestidos ondulavam e adejavam como se elas tivessem acabado de pousar ali, após um breve voo em torno da casa. Creio que fiquei um momento a ouvir o vergastar do vento de encontro às cortinas e o gemido de um quadro na parede. Ouviu-se então uma batida, quando Tom Buchanan fechou as portas envidraçadas de trás, e o vento, aprisionado, se extinguiu pela sala, enquanto as cortinas, os tapetes e as duas jovens mulheres, flutuantes, pousaram, lentamente, no chão.
A mais jovem das duas me era desconhecida. Estava estendida sobre o divã, completamente imóvel, o queixo um tanto erguido, como se equilibrasse sobre ele algo que estivesse a ponto de cair. Se me viu com o rabo dos olhos, não deu nenhum sinal disso - e, com efeito, em minha surpresa, quase balbuciei uma desculpa por a haver incomodado com a minha chegada.
A outra jovem, Daisy, fez menção de levantar-se; inclinou-se ligeiramente, com expressão grave; depois, riu - um risinho absurdo, encantador - e eu também ri, ao entrar na sala. - Sinto-me paralisada de felicidade!
Tornou a rir, como se tivesse dito algo muito espirituoso, e ficou um momento a segurar-me a mão, a fitar-me o rosto, assegurando-me que não havia ninguém no mundo cuja presença lhe causasse maior prazer. Essa era a sua maneira de ser. Insinuou, num murmúrio, que o sobrenome da jovem equilibrista era Baker. (Eu ouvira dizer que o murmúrio de Daisy tinha por objetivo fazer com que as pessoas se inclinassem diante dela... Crítica irrelevante, que nem por isso torna a coisa menos encantadora.)
De qualquer modo, os lábios de Miss Baker palpitaram, enquanto ela me cumprimentava com um sinal de cabeça quase imperceptível, ao mesmo tempo que, rápida, lançava de novo a cabeça para trás - pois que o objeto que ela estava equilibrando vacilara, evidentemente, um pouco, causando-lhe um pequeno susto. De novo uma espécie de desculpa me assomou aos lábios. Quase todas as exibições de completa auto-suficiência arrancam de mim um assombrado tributo.
Olhei para minha prima, que começou a fazer-me perguntas em sua voz profunda, emocionante. Era uma dessas vozes que o ouvido da gente segue em seus altos e baixos, como se cada locução fosse um arranjo de notas que jamais tornasse a repetir-se. Seu rosto era triste e encantador, com todas as coisas brilhantes que nele havia: olhos brilhantes, boca ardentemente viva - mas havia, ademais, em sua voz, algo excitante, que os homens que por ela se interessaram acharam difícil esquecer: uma compulsão cantante, um "Ouça" sussurrado, uma certeza de que ela acabara de fazer coisas alegres, excitantes, e a promessa de que outras coisas excitantes pairavam sobre a hora que haveria de seguir-se.
Falei-lhe de minha passagem por Chicago, durante um dia, em minha viagem para o Leste, e das pessoas que, por meu intermédio, lhe haviam enviado suas expressões de afeto. - Eles sentem falta de mim? - exclamou ela, extasiada.
- Toda a cidade se acha desolada. Todos os automóveis têm as rodas de trás pintadas de preto, como uma coroa fúnebre, e, durante toda a noite, há um lamento incessante ao longo da margem norte do lago.
- Oh, é estupendo! Vamos voltar, Tom. Amanhã! - E acrescentou, irrelevantemente: - Você precisa ver minha filhinha.
- Gostaria imenso.
- Ela está dormindo. Tem três anos. Você nunca a viu?
- Nunca.
- Bem, precisa vê-la. Ela...
Tom Buchanan, que estivera a andar inquieto pela sala, deteve-se e pousou a mão em meu ombro: - Que é que você está fazendo, Nick?
- Lido com títulos.
- Com quem?
Disse-lho.
- Nunca ouvi falar neles - observou, peremptório.
Isso me aborreceu.
- Mas ouvirá - respondi, incontinenti. - Ouvirá, se você ficar no Leste.
- Oh, ficarei no Leste, não se preocupe - respondeu lançando um olhar a Daisy e tornando a pousá-lo em mim, como se estivesse alerta, à espera de mais alguma coisa. - Eu seria um grande idiota, se fosse viver em outro lugar.
Nessa altura, Miss Baker exclamou: - Inteiramente!
Disse-o de maneira tão súbita, que tive um sobressalto: era a primeira palavra que ela proferia desde que eu entrara na sala. Evidentemente, isso a surpreendeu tanto quanto a mim, pois, com uma série de movimentos ágeis, destros, pôs-se de pé no meio da sala.
- Sinto-me emperrada - queixou-se. - Estive deitada nesse sofá durante um tempo enorme.
- Não me olhe desse jeito - retorquiu Daisy. - Passei a tarde toda tentando levá-la a Nova York.
- Não, obrigada - disse Miss Baker, diante dos quatro coquetéis que acabavam de chegar da copa. - Estou em treino absoluto.
O dono da casa fitou-a com ar incrédulo: - Ah, sim?
Tomou de um trago a sua bebida, como se fosse apenas uma gota dentro de um copo. E comentou: - O que não consigo compreender é como vocês conseguem fazer alguma coisa.
Olhei para Miss Baker e perguntei a mim mesmo o que seria que ela "conseguira fazer".
Agradava-me olhá-la. Era uma moça esguia, de seios pequenos, porte ereto, que ela mais acentuava lançando os ombros para trás, como um jovem cadete. Seus olhos cinzentos, um tanto contraídos pela claridade, retribuíram-me o olhar com recíproca e cortês curiosidade, fitando-me do alto de um rosto pálido, insatisfeito, encantador. Ocorreu-me, então, que já a havia visto antes, ou um retrato dela, em algum lugar. - Mora em West Egg? - indagou, com ar desdenhoso. - Conheço alguém lá.
- Quanto a mim, não conheço uma única...
- Deve conhecer Gatsby.
- Gatsby? - perguntou Daisy. - Que Gatsby?
Antes que eu pudesse responder que ele era meu vizinho, foi anunciado o jantar. Enfiando imperativamente o seu tenso braço sob o meu, Tom Buchanan obrigou-me a deixar a sala, como se movesse uma peça de xadrez sobre um tabuleiro.
Esguias, lânguidas, as mãos pousadas ligeiramente sobre os quadris, as duas jovens mulheres nos precederam, dirigindo-se a um alpendre cor-de-rosa, aberto para o pôr do sol, onde quatro velas bruxuleavam sobre uma mesa, sopradas pelo vento que já havia amainado.
- Por que as velas? - objetou Daisy, franzindo o sobrolho e apagando-as com as pontas dos dedos. - Dentro de duas semanas, teremos o dia mais longo do ano. - Olhou para todos nós, radiante. - Vocês também aguardam o dia mais longo do ano e, depois, o perdem? Eu sempre espero o dia mais longo do ano... e ele me passa despercebido.
- Devíamos planejar alguma coisa - disse, com um bocejo, Miss Baker, sentando-se à mesa como se estivesse se metendo na cama.
- Muito bem - volveu Daisy. - Que é que devemos planejar? - Voltou-se para mim, desvalida:
- Que é que as pessoas planejam?
Antes que eu pudesse responder, seus olhos pousaram, com uma expressão de horror, em seu dedo mínimo.
- Vejam! - queixou-se. - Eu o feri.
Olhamos todos. O nó do dedo estava arroxeado.
- Você é que fez isso, Tom - disse ela, em tom de acusação. - Sei que não fez de propósito, mas, de qualquer maneira, o fez. Eis aí o que ganho por haver casado com um homem rude, grande, grandalhão, um tipo de brutamontes que...
- Detesto a palavra brutamontes - protestou Tom, amuado -, mesmo que seja dita por brincadeira.
- Brutamontes - insistiu Daisy.
Às vezes, ela e Miss Baker falavam ao mesmo tempo, mas o faziam de uma maneira tão discreta e divertidamente casual, que aquilo não chegava jamais a constituir uma tagarelice, mas algo tão fresco como os seus vestidos brancos e a expressão de seus olhos, na ausência de todo desejo. Elas ali estavam, e aceitavam a Tom e a mim, fazendo apenas um delicado e agradável esforço no sentido de nos entreterem ou serem por nós entretidas. Sabiam que, depois, o jantar terminaria e, um pouco mais tarde, também a noite chegaria ao fim e seria, displicentemente, deixada de lado. Aquilo era completamente diferente do Oeste, onde as reuniões como aquela se processavam apressadamente, de frase em frase, até o fim, numa expectativa constantemente frustrada ou, então, em meio ao puro nervosismo do próprio momento.
- Vocês fazem com que eu me sinta incivilizado - confessei, após a segunda taça de um clarete notável. - Será que não podiam falar de colheitas ou coisa que o valha? Eu nada queria dizer, em particular, com essa observação, mas foi ela recebida de uma maneira que eu não esperava.
- A civilização está caindo aos pedaços - irrompeu, violentamente, Tom. - Tive de tornar-me terrível pessimista a respeito de tudo. Você já leu The Rise of the Colored Empire, de autoria desse tal Goddard?
- Não - respondi, um tanto surpreso pelo tom com que foram ditas tais palavras.
- Bem, é um livro excelente, que todos deviam ler. A ideia é a de que, se não tivermos cuidado, a raça branca será... será completamente subjugada. É coisa científica; coisa provada.
- Tom está ficando muito profundo - comentou Daisy, com uma expressão de irrefletida tristeza. - Ele lê livros profundos, com palavras difíceis. Qual era mesmo aquela palavra que nós...
- Bem, esses livros são todos científicos - insistiu Tom, lançando-lhe um olhar impaciente. - Esse tal sujeito estudou a coisa a fundo. Compete a nós, que pertencemos à raça dominante, estar atentos; do contrário, essas outras raças dominarão o mundo.
- Precisamos derrotá-las - sussurrou Daisy, a piscar ferozmente os olhos em direção do sol incandescente.
- Devíamos viver na Califórnia... - começou Miss Baker, mas Tom a interrompeu, movendo-se pesadamente em sua cadeira.
- Essa ideia é a de que somos nórdicos. Eu o sou, você o é, você o é e... - Após meio segundo de hesitação, incluiu também a Daisy com um ligeiro aceno de cabeça, o que fez com que ela me piscasse o olho. - E, o que é mais, produzimos todas as coisas que fazem a civilização... Oh, ciência, arte e tudo o mais. Percebem?
Havia algo de patético em sua concentração, como se sua complacência, mais aguda do que antigamente, já não lhe bastasse. Quando, quase imediatamente, o telefone tocou dentro da casa e o mordomo se afastou do alpendre, Daisy aproveitou a interrupção momentânea e inclinou-se para mim.
- Vou contar-lhe um segredo de família - sussurrou-me, entusiasmada. - É a respeito do nariz do mordomo. Quer que eu lhe fale do nariz do mordomo?
- Foi para isso que vim aqui esta noite.
- Bem, ele nem sempre foi mordomo; costumava polir a baixela de prata de uma gente de Nova York que tinha um serviço de jantar para duzentas pessoas. Ele tinha de poli-la de manhã à noite, até que, finalmente, isso começou a afetar-lhe o nariz...
- As coisas iam de mal a pior - insinuou Miss Baker.
- Sim. As coisas iam de mal a pior, até que, afinal, ele teve de abandonar o emprego. Por um momento, os últimos raios de sol caíram com romântico afeto sobre o seu rosto ardente; sua voz obrigou-me a inclinar o corpo para a frente, enquanto a ouvia, ansioso; depois, o fulgor extinguiu-se, e cada raio luminoso a ia deixando lentamente, com pesar, como crianças que abandonam, ao anoitecer, uma rua agradável.
O mordomo voltou e murmurou algo junto ao ouvido de Tom. Tom franziu o sobrolho, afastou a cadeira e entrou na casa sem proferir palavra. Como se sua ausência despertasse rapidamente alguma coisa em seu íntimo, Daisy inclinou-se de novo para mim, a voz ardente, cantante:
- Adoro tê-lo aqui em minha mesa, Nick. Você me lembra uma... uma rosa, uma rosa absoluta. Não lhe parece? - ajuntou, voltando-se, em busca de confirmação, para Miss Baker. - Uma rosa absoluta?
Isso não era verdade. Eu nem de leve, sequer, me assemelho a uma rosa. Ela estava apenas improvisando, mas um calor envolvente se irradiava dela, como se seu coração estivesse procurando vir ao encontro da gente, oculto numa daquelas suas frases ofegantes, eletrizantes. Depois, subitamente, lançou o seu guardanapo sobre a mesa, desculpou-se e entrou na casa.
Miss Baker e eu trocamos breve olhar, conscientemente destituído de significação. Eu ia falar, quando ela se empertigou na cadeira, atenta, pedindo-me, com um "Psiu!", para que eu me calasse. Ouvia-se, vindo de uma sala contígua, um murmúrio abafado de vozes acaloradas, mas Miss Baker inclinou-se, sem nenhum constrangimento, procurando ouvir. O murmúrio, a certa altura, chegou a ser quase perfeitamente compreensível; depois decresceu, tornou a aumentar excitadamente e acabou por extinguir-se por completo.
- Esse Sr. Gatsby, a que se referiu há pouco, é meu vizinho - disse-lhe eu.
- Não fale. Quero ouvir o que está acontecendo.
- Está acontecendo alguma coisa? - indaguei, inocentemente.
- Quer dizer, então, que não sabe? - indagou Miss Baker, sinceramente surpresa. - Eu julguei que todo mundo soubesse.
- Eu não sei nada.
- Ora essa!... - fez ela, hesitante. - Tom tem uma mulher em Nova York.
- Tem uma mulher? - repeti, desconcertado.
Miss Baker fez um aceno afirmativo com a cabeça.
- Ela bem que poderia ter a decência de não telefonar na hora do jantar. Não lhe parece? Antes mesmo que eu pudesse ter tido tempo de apreender bem o sentido de suas palavras, percebemos um esvoaçar de vestido e um ranger de botas de couro, e Tom e Daisy voltaram à mesa.
- Não pude conter-me! - exclamou Daisy, com tensa alegria.
Sentou-se, lançou um olhar perquiridor a Miss Baker e a mim, e prosseguiu:
- Olhei um momento para fora, e tudo estava sumamente romântico. Há no jardim um pássaro que deve ser um rouxinol! Deve ter chegado até aqui em algum navio da Cunard ou da White Star Line. Está ainda lá a cantar... Isso não lhe parece romântico, Tom? - indagou, com sua voz musical.
- Muito romântico - respondeu ele. E voltando-se para mim, com ar infeliz: - Se ainda estiver claro depois do jantar, gostaria de mostrar-lhe os meus estábulos.
O telefone tornou a tocar, insistentemente, mas como Daisy abanou a cabeça com ar peremptório, os olhos fixos em Tom, o assunto dos estábulos e, na verdade, todos os assuntos se dissiparam no ar. Dentre os fragmentos esparsos dos últimos cinco minutos que passamos sentados à mesa, lembro-me de que as velas tornaram a ser acesas, sem razão alguma, e de que eu tive vontade de fitar de frente cada um dos comensais, acabando, no entanto, por evitar todos os olhares. Não me era possível saber o que Tom e Daisy estavam pensando, e duvido que até mesmo Miss Baker, que parecia haver assimilado certo frio ceticismo, tivesse podido afastar de seu espírito o chamado urgente, estridentemente metálico, daquela quinta personagem. Para certos temperamentos, a situação talvez pudesse parecer curiosa... Meu instinto, porém, fez com que eu pensasse em telefonar imediatamente para a polícia.
Os cavalos, desnecessário dizer, não foram mais mencionados. Tom e Miss Baker, com o crepúsculo já a descer sobre ambos, caminharam de volta à biblioteca, como se se dirigissem a um velório onde houvesse um cadáver perfeitamente tangível, enquanto que eu, procurando mostrar-me agradavelmente interessado e um pouco surdo, segui Daisy, através de vários terraços ligados entre si, até o alpendre da frente. Em sua profunda obscuridade, sentamo-nos, lado a lado, num canapé de vime.
Daisy levou ambas as mãos ao rosto, como se palpasse os seus traços encantadores, pousando o olhar, aos poucos, na aveludada penumbra do jardim. Vi que emoções turbulentas a possuíam, de modo que lhe fiz o que julguei ser umas perguntas sedativas acerca de sua filhinha.
- Nós ainda não nos conhecemos muito bem, Nick - disse ela, subitamente. - Embora sejamos primos. Você não compareceu ao meu casamento.
- Eu ainda não tinha voltado da guerra.
- É verdade. - Hesitou um momento. - Bem, a verdade é que passamos por momentos muitos duros, Nick, e eu fiquei muito cínica a respeito de tudo.
Tinha razão para tal, evidentemente. Fiquei à espera, mas ela nada mais disse e, decorrido um momento, voltei, um tanto desajeitadamente, a falar de sua filhinha:
- Suponho que ela já fala... come, e tudo o mais.
- Oh, certamente! - Olhou-me, absorta. - Ouça, Nick; permita-me que lhe conte o que eu disse, quando ela nasceu. Gostaria de ouvir?
- Muitíssimo.
- Isso lhe mostrará como é que passei a encarar... certas coisas. Não fazia ainda uma hora que minha filhinha havia nascido e só Deus sabia onde Tom se encontrava. Voltei a mim, do éter que me deram para cheirar, sentindo-me completamente abandonada, e perguntei à enfermeira se a criança era menino ou menina. Respondeu-me que era menina. Voltei, então, o rosto para o outro lado e chorei. "Muito bem", disse. "Alegro-me que seja menina. E espero que ela seja uma tola... que é a melhor coisa que uma menina pode ser neste mundo. Uma linda tolinha."
Fez uma pausa e prosseguiu, com convicção:
- Agora, seja lá como for, acho tudo horrível. Todo mundo pensa assim... as pessoas mais cultas pensam assim. E eu o sei. Estive em toda parte, vi tudo e já fiz tudo. - Lançou em torno de si um olhar lampejante, desafiador, que se assemelhava, de certo modo, ao de Tom, e riu, com eletrizante desdém: - Sofisticada!... Santo Deus, como sou sofisticada!
No mesmo instante em que ela parou de falar, deixando de exigir minha atenção, senti a insinceridade básica de suas palavras. Aquilo me deixou inquieto, como se toda aquela noite não tivesse sido senão um truque destinado a produzir em mim certas emoções. Fiquei à espera e, passado um momento, ela me fitou com um sorriso absolutamente afetado em seu rosto encantador, como se houvesse confirmado a sua qualidade de sócia de uma sociedade secreta, bastante elegante, a que ela e Tom pertencessem.
Dentro, o salão carmesim esplendia de luzes. Tom e Miss Baker achavam-se sentados cada qual numa extremidade do longo divã, e ela lia-lhe em voz alta algo do The Saturday Evening Post - e as palavras, sussurrantes e incontaminadas, fluíam em tranquilizante melodia. A luz do abajur, brilhante sobre as botas de Tom e fosca sobre os cabelos cor de folha outonal de Miss Baker, cintilava sobre o magazine, quando ela volvia a página com uma leve vibração dos músculos esguios dos braços.
Quando entramos, ela nos manteve um momento em silêncio, a mão erguida.
- Continua - disse ela, lançando a revista sobre a mesa - no próximo número.
Com um ágil movimento de joelhos, firmou o corpo e pôs-se de pé.
- Dez horas - observou, vendo as horas, ao que parecia, no teto. Hora de uma boa menina ir para a cama.
- Jordan vai participar, amanhã, do torneio em Westchester - explicou Daisy.
- Oh!... Então a senhorita é Jordan Baker.
Sabia, agora, por que razão seu rosto me parecia familiar... Aquele rosto já me havia fitado, com sua expressão agradável e desdenhosa, de muitas fotografias em rotogravura estampadas em publicações acerca da vida esportiva em Ashville, Hot Springs, Palm Beach. Ouvira também uma história a seu respeito, uma história maldosa, desagradável, mas não me lembrava mais de que se tratava.
- Boa noite - disse ela, suavemente.
terça-feira, 16 de novembro de 2010
O QUE MAISIE SABIA
Henry James
Um trecho:
Era da natureza das coisas nunca poderem ser explicadas a uma criancinha, mesmo quando desde o início fora infundido na criancinha em questão o temor infundado de que ela estivesse sabendo até demais. No momento, as coisas eram tão fiéis à sua natureza que quase todas as perguntas eram impróprias.
O NOME DA ROSA
Umberto Eco
Um trecho:
Prólogo
No princípio era o Verbo e o Verbo estava junto a Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio junto a Deus e dever do monge fiel seria repetir cada dia com salmodiante humildade o único evento imodificável do qual se pode confirmar a incontrovertível verdade. Mas videmus nunc per speculum et in aenigmate e a verdade, ao invés de cara a cara, manifesta-se deixando às vezes rastros (ai, quão ilegíveis) no erro do mundo, tanto que precisamos calculá-lo, soletrando os verdadeiros sinais, mesmo lá onde nos parecem obscuros e quase entremeados por uma vontade totalmente voltada para o mal.
Chegando ao fim desta minha vida de pecador, enquanto, encanecido, envelheço como o mundo, à espera de perder-me no abismo sem fundo da divindade silenciosa e deserta, participando da luz inconversível das inteligências angélicas, já entrevado com meu corpo pesado e doente nesta cela do caro mosteiro de Melk, apresto-me a deixar sobre este pergaminho o testemunho dos eventos miríficos e formidáveis a que na juventude me foi dado assistir, repetindo verbatim quanto vi e ouvi, sem me aventurar a tirar disso um desenho, como a deixar aos que virão (se o Anticristo não os preceder) signos de signos, para que sobre eles se exercite a prece da decifração.
Conceda-me o Senhor a graça de ser testemunha transparente dos acontecimentos que tiveram lugar na abadia da qual é bem e piedoso se cale também afinal o nome, ao findar do ano do Senhor de 1327 em que o imperador Ludovico entrou na Itália para reconstituir a dignidade do sagrado império romano, segundo os desígnios do Altíssimo e a confusão do infame usurpador simoníaco e heresiarca que em Avignon lançou vergonha ao santo nome do apóstolo (falo da alma pecadora de Jacques de Cahors, que os ímpios honraram como João XXII).
Quem sabe, para compreender melhor os acontecimentos em que me achei envolvido, é bom que eu recorde o que andava acontecendo naquele pedaço de século, do modo como o compreendi então, vivendo-o, e do modo como o rememoro agora, enriquecido de outras narrativas que ouvi depois - se é que a minha memória estará em condições de reatar os fios de tantos e tão confusos eventos.
Desde os primeiros anos daquele século o papa Clemente V transferira a sede apostólica para Avignon deixando Roma às voltas com as ambições de senhores locais: e gradualmente a cidade santa da cristandade transformara-se num circo, ou num lupanar, dilacerada pelas lutas entre os seus maiores; dizia-se república, e não era, batida por bandos armados, submetida a violências e saques. Eclesiásticos que haviam se subtraído à jurisdição secular comandavam grupos de facínoras e rapinavam de espada em punho, prevaricavam e organizavam torpes tráficos. Como impedir que o Caput Mundi voltasse a ser, e justamente, a meta de quem quisesse vestir a coroa do sagrado império romano e restaurar a dignidade daquele domínio temporal que já fora dos césares?
Eis pois que no ano de 1314 cinco príncipes germânicos elegeram, em Frankfurt, Ludovico da Baviera regente supremo do império. Mas no mesmo dia, na outra margem do Meno, o conde palatino do Reno e o arcebispo de Colônia tinham eleito à mesma dignidade Frederico da Áustria. Dois imperadores para uma única sede e um único papa para duas: situação que se tornou, na verdade, incentivo para grande desordem...
Dois anos depois era eleito em Avignon o novo papa, Jacques de Cahors, velho de setenta e dois anos, justamente com o nome de João XXII, e queira o céu que nunca mais um pontífice assuma um nome assim, já tão malquisto pelos bons. Francês e devotado ao rei de França (os homens dessa terra corrompida estão sempre inclinados a favorecer os interesses dos seus, e são incapazes de olhar para o mundo inteiro como sua pátria espiritual), ele havia sustentado Filipe, o Belo, contra os cavaleiros templários, que o rei acusara (creio que injustamente) de vergonhosos crimes para apoderar-se de seus bens, cúmplice aquele eclesiástico renegado. Nesse ínterim, inserira-se na trama toda Roberto de Nápoles, que para manter o controle da península italiana convencera o papa a não reconhecer nenhum dos dois imperadores germânicos, e assim permanecera capitão-mor do estado da igreja.
Em 1322 Ludovico, o Bávaro, batia seu rival Frederico. Ainda mais temeroso de um único imperador, do que o fora de dois, João excomungou o vencedor, e este, em contrapartida, denunciou o papa como herético. É preciso dizer que, justamente naquele ano, tivera lugar em Perúgia o capítulo dos frades franciscanos, e o geral deles, Michele de Cesena, acolhendo as instâncias dos "espirituais" (sobre os quais terei ainda ocasião de falar) proclamara como verdade de fé a pobreza de Cristo, que, se tinha possuído alguma coisa com seus apóstolos, Ele a tivera apenas como usus facti. Digna resolução, que visava salvaguardar a virtude e a pureza da ordem; mas que desagradou sobremaneira ao papa, por talvez entrever nisso um princípio que teria posto em risco as mesmas pretensões que ele, como chefe da igreja, tinha de contestar ao império o direito de eleger bispos, encampando para o sacro sólio o de investir o imperador. Fossem essas ou outras as razões que o moviam, em 1323 João condenou as proposições dos franciscanos com a decretal Cum inter nonnullos.
Foi nesse ponto, imagino, que Ludovico viu nos franciscanos, já então inimigos do papa, poderosos aliados. Afirmando a pobreza de Cristo eles, de certo modo, revigoravam as idéias dos teólogos imperais, ou seja, de Marsilio de Pádua e Giovanni de Gianduno. E por fim, não muitos meses antes dos eventos que estou narrando, Ludovico, que havia chegado a um acordo com o vencido Frederico, descia na Itália, era coroado em Milão, entrava em conflito com os Visconti, que todavia o tinham acolhido com favor, sitiava Pisa, nomeava vigário-imperial Castruccio, duque de Lucca e Pistóia (e creio que fizesse mal porque não conheci jamais homem mais cruel, exceto talvez Uguccione de Faggiola), e já se aprestava a entrar em Roma, chamado por Sciarra Colonna, senhor do lugar.
Eis como era a situação quando eu - então noviço beneditino no mosteiro de Melk - fui tirado da tranqüilidade do claustro por meu pai, que se batia no séquito de Ludovico, não o último dentre seus barões, e que achou de bom alvitre levar-me consigo para que conhecesse as maravilhas da Itália e estivesse presente quando o imperador fosse coroado em Roma. Mas o sítio a Pisa absorveu-o nas lides militares. Eu tirei vantagem disso vagando, um pouco por ócio e um pouco por desejo de aprender, pelas cidades da Toscana, mas essa vida livre e sem regra não convinha, pensaram meus genitores, a um adolescente voltado à vida contemplativa. E a conselho de Marsílio, que começara a ter afeição por mim, decidiram pôr-me junto de um sábio franciscano, frei Guilherme de Baskerville, que estava para iniciar uma missão que o levaria a cidades famosas e abadias antiqüíssimas. Tornei-me assim seu escrivão e discípulo ao mesmo tempo, nem tive do que me arrepender, porque fui com ele testemunha de acontecimentos dignos de serem consignados, como estou fazendo agora, para memória daqueles que virão.
Eu não sabia então o que frei Guilherme estava procurando, e para dizer a verdade não o sei ainda hoje, e presumo que nem ele mesmo soubesse, movido que estava pelo desejo único da verdade, e pela suspeita - que sempre o vi alimentar - de que a verdade não fosse a que lhe aparecia no momento presente. E talvez naqueles anos ele estivesse distraído de seus estudos prediletos por incumbências do século. A missão de que Guilherme estava encarregado continuou desconhecida para mim durante toda a viagem, ou melhor, ele não me falou dela. Foi antes ouvindo trechos de conversas, que ele teve com os abades dos mosteiros em que nos detínhamos cada vez, que formei alguma idéia da natureza de sua tarefa. Mas não a compreendi de todo enquanto não atingimos nossa meta, como contarei mais tarde. Dirigíamo-nos para setentrião, mas nossa viagem não procedeu em linha reta e nos detivemos em várias abadias. Acontece que dobramos para ocidente enquanto nossa meta última ficava a oriente, quase seguindo a linha dos montes que de Pisa leva em direção aos caminhos de San Giacomo, parando numa terra em que os terríveis acontecimentos que lá ocorreram depois me desaconselham a identificar melhor, mas cujos senhores eram fiéis ao império e onde os abades de nossa ordem opunham-se de comum acordo ao papa herege e corrupto. A viagem durou duas semanas, entrecortadas por vários acontecimentos, e nesse tempo tive oportunidade de conhecer (nunca o suficiente, como sempre me convenço) meu novo mestre.
Nas páginas que seguem não vou me deter em descrições de pessoas - a não ser quando a expressão de um rosto, ou um gesto, apareçam como sinais de muda mas eloqüente linguagem - porque, como diz Boecio, nada é mais fugaz que a forma exterior, que perde o viço e muda como as flores do campo com o aparecimento do outono, e que sentido teria hoje dizer do abade Abbone, que tinha o olhar severo e as faces pálidas, quando agora ele e os que o rodeavam já são pó e do pó seu corpo tem o cinzento da morte (só a alma, queira Deus, resplandecendo de uma luz que não se apagará nunca mais)? Mas de Guilherme queria falar, e de uma vez por todas, porque dele também me tocaram as feições singulares, e é próprio dos jovens ligarem-se a um homem mais velho e mais sábio, não só pelo fascínio da palavra e agudez da mente, mas também pela forma superficial do corpo, que se torna querida, como acontece com a figura de um pai, de quem se estudam os gestos, os arrufos, e se espia o sorriso - sem que sombra alguma de luxúria contamine este modo (talvez o único puríssimo) de amor corporal.
Os homens de outrora eram grandes e belos (agora são crianças e anões), mas esse fato é apenas um dos muitos que testemunham a desventura de um mundo que vai envelhecendo. A juventude não quer aprender mais nada, a ciência está em decadência, o mundo inteiro caminha de cabeça para baixo, cegos conduzem outros cegos e os fazem precipitar-se nos abismos, os pássaros se lançam antes de alçar vôo, o asno toca lira, os bois dançam. Maria não ama mais a vida contemplativa e Marta não ama mais a vida ativa, Léa é estéril, Raquel tem olhos lúbricos, Catão freqüenta os lupanares, Lucrécio vira mulher. Tudo está desviado do próprio caminho. Sejam dadas graças a Deus por eu naqueles tempos ter adquirido de meu mestre a vontade de aprender e o sentido do caminho reto, que se conserva mesmo quando o atalho é tortuoso.
Era pois a aparência física de frei Guilherme de tal porte que atraía a atenção do observador mais distraído. Sua estatura superava a de um homem normal e era tão magro que parecia mais alto. Tinha olhos agudos e penetrantes; o nariz afilado e um tanto adunco conferia ao rosto a expressão de alguém que vigia, salvo nos momentos de torpor, dos quais falarei. Também o queixo denunciava nele uma vontade firme, mesmo se o rosto alongado e coberto de efélides - como vi freqüentemente nos nascidos entre Hibérnia e Nortúmbria - pudesse às vezes exprimir incerteza e perplexidade. Percebi com o tempo que o que parecia insegurança era ao contrário apenas curiosidade, mas de início eu pouco sabia dessa virtude, que acreditava antes uma paixão da alma concupiscente, achando que a alma racional não devia dela se nutrir, alimentando-se tão-somente da verdade, coisa que (pensava eu) já se sabe desde o início.
Criança que era, o que logo me tocara nele eram certos tufos de pêlos amarelados que lhe escapavam das orelhas, e as sobrancelhas espessas e loiras. Podia ele ter cinqüenta primaveras e já era portanto muito velho, mas movia o corpo incansável com uma agilidade que eu muitas vezes não tinha. Sua energia parecia inexaurível, quando o colhia um excesso de atividade. Mas de vez em quando, como se seu espírito vital participasse da natureza do camarão, recedia a momentos de inércia e o vi permanecer horas sobre o catre em sua cela, pronunciando a custo algum monossílabo, sem contrair um só músculo do rosto. Nessas ocasiões aparecia-lhe nos olhos uma expressão vazia e ausente, e teria suspeitado que estava sob o império de alguma substância vegetal capaz de provocar visões, se a patente temperança que lhe regulava a vida não me tivesse induzido a rejeitar tal pensamento. Não escondo todavia que, no curso da viagem, detivera-se às vezes na beira de um prado, nas bordas de uma floresta, para apanhar alguma erva (creio que sempre a mesma): e punha-se a mascá-la com rosto absorto. Trazia uma pequena provisão consigo, que comia nos momentos de maior tensão (e quão freqüentes eles foram na abadia!). Uma vez que lhe perguntei de que se tratava, disse sorrindo que um bom cristão pode de vez em quando aprender com os infiéis; e quando lhe pedi para prová-la, respondeu-me que, assim como ocorre com os discursos, também entre humildes existem os paidikoi, ephebikoi e gynaikeioi e assim por diante, de modo que as ervas que são boas para um velho franciscano não são boas para um jovem beneditino.
O tempo que estivemos juntos não tivemos oportunidade de levar vida muito regular: mesmo na abadia velamos à noite e caímos cansados de dia, nem participamos regularmente dos ofícios sagrados. Contudo, em viagem, raramente ficava acordado após as completas e tinha hábitos parcos. Algumas vezes, como aconteceu na abadia, passava o dia inteiro movendo-se no horto, examinando as plantas como se fossem crisóprasos ou esmeraldas, e o vi andando pela cripta do tesouro admirando um escrínio cravejado de esmeraldas e crisóprasos como se fosse uma touceira de estramônio. Outras vezes permanecia o dia todo na sala grande da biblioteca folheando manuscritos como a procurar neles nada além que o próprio prazer (enquanto ao nosso redor se multiplicavam os cadáveres dos monges horrivelmente assassinados). Um dia encontrei-o passeando no jardim sem objetivo aparente, como se não precisasse prestar contas a Deus de seus atos. Na Ordem haviam-me ensinado um modo bem diverso de dividir o meu tempo, e eu lhe disse isso. E ele respondeu que a beleza do cosmos é dada não só pela unidade na variedade, mas também pela variedade na unidade.
Pareceu-me uma resposta ditada por deseducada empiria, mas aprendi em seguida que os homens de sua terra freqüentemente definem as coisas de modo a parecer que a força iluminadora da razão tenha pouquíssima serventia.
Durante o período que permanecemos na abadia vi-lhe sempre as mãos cobertas pela poeira dos livros, pelo ouro das miniaturas ainda frescas, pelas substâncias amareladas que tocara no hospital de Severino. Dava a impressão de não poder pensar a não ser com as mãos, coisa que então me parecia mais digna de um mecânico (e haviam-me ensinado que o mecânico é moechus, e comete adultério nos confrontos da vida intelectual a quem deveria estar unido em castíssimo esponsal): porém mesmo quando suas mãos tocavam coisas muito frágeis, como certos códices de miniaturas ainda frescas, ou páginas corroídas pelo tempo e friáveis como pão ázimo, ele possuía, parece-me, uma extraordinária delicadeza de tato, a mesma que usava para tocar suas máquinas. Direi, com efeito, que este homem curioso trazia consigo, em seu saco de viagem, instrumentos que não tinha visto até então, e que ele definia como suas maravilhosas máquinas. As máquinas, afirmava, são efeito da arte, que é macaco da natureza, e dela reproduzem não as formas mas a própria operação. Assim me explicou ele as maravilhas do relógio, do astrolábio e do ímã. Mas no início pensei tratar-se de bruxaria, e fingi dormir algumas noites serenas em que ele se punha (com um estranho triângulo na mão) a observar as estrelas.
Os franciscanos que conhecera na Itália e na minha terra eram homens simples, quase sempre iletrados, e me espantei com ele por sua sabedoria. Mas ele me disse sorrindo que os franciscanos de suas ilhas eram de outra cepa: "Roger Bacon, que eu venero como mestre, nos ensinou que o plano divino passará um dia para a ciência das máquinas, que é magia natural e santa. E um dia, por força da natureza, poderão ser feitos instrumentos de navegação graças aos quais as naves irão unico homine regente, e bem mais rápidas que as impelidas a vela ou a remos; e haverá carros 'ut sine animali moveantur cum impetu inaestimabili, et instrumenta volandi et homo sedens im medio instrumentis revolvens aliquod ingenium per quod alae artificialiter composita aerem verberent, ad modum avis volantis'. E instrumentos minúsculos que erguerão pesos infinitos e veículos que permitirão viajar no fundo do mar."
Quando lhe perguntei onde estavam essas máquinas, disse-me que já tinham sido feitas na antigüidade, e algumas até em nossos tempos: "Exceto o instrumento para voar, que não vi nem conheci quem o tivesse visto, mas conheço um sábio que o imaginou. E é possível fazer pontes que atravessem os rios sem colunas ou qualquer outro sustentamento e outras máquinas inauditas. Mas não precisas ficar preocupado se não existem ainda, porque não quer dizer que não existirão. E eu te digo que Deus quer que existam, e certamente já estão em sua mente, ainda que meu amigo de Ockham negue que as idéias existam desse modo, e não porque podemos decidir pela natureza divina, mas justamente porque não podemos impor-lhe limite algum." Nem foi esta a única proposição contraditória que o ouvi enunciar: e mesmo agora que sou velho e mais sábio que naquele tempo, não compreendo definitivamente como ele pudesse ter tanta confiança em seu amigo de Ockham e ao mesmo tempo jurar sobre as palavras de Bacon, como costumava fazer. É verdade, no entanto, que aqueles eram tempos obscuros em que um homem sábio precisava pensar coisas contraditórias entre si.
Bem, disse de frei Guilherme coisas insensatas talvez, como a recolher desde o início as impressões desconexas que eu tive então. Quem foi ele, e o que fez, meu bom leitor, poderás talvez deduzir melhor pelas ações que praticou nos dias que passamos na abadia. Não te prometi um desenho completo, porém um elenco de fatos (estes sim) miríficos e terríveis.
Conhecendo assim dia a dia o meu mestre, passando as longas horas de marcha em longas conversas sobre as quais, conforme o caso, contarei pouco a pouco, atingimos as faldas do monte sobre o qual se erguia a abadia. E é hora que, como fizemos então, dela se aproxime minha narrativa, e possa minha mão não tremer quando começar a contar o que aconteceu em seguida.
sexta-feira, 12 de novembro de 2010
A MORTE DO FAZEDOR DE FILMES
__ Muito cedo eu percebi que o lugar mais emocionante do cinema é atrás da câmera.
Dino de Laurentis (1919 – 2010)
OLD MAN AT THE BRIDGE
Ernest Hemingway
Um velhinho com óculos de aro de metal, roupas carregadas de pó, estava sentado ao lado da estrada. No rio havia uma ponte de barcas. Camiões, carroças, homens, mulheres e crianças atravessavam-na. As carroças, puxadas a mulas, oscilavam ao trepar a margem íngreme. Soldados, agarrados aos aros das rodas, empurravam para auxiliar. À frente daquela mole, abrindo caminho, iam os camiões, e os camponeses esforçavam-se por se deslocar, enterrados naquela terrice seca que lhes dava pelo tornozelo. Porém, o velhinho que se sentara, nem se mexia. Estava demasiado fatigado para ir mais longe.
A minha missão era a travessar o rio, explorar a testa de ponte que, para além dele, se estabelecera, e descobrir até que ponto o inimigo tinha avançado. Cumprira as instruções recebidas e estava já de regresso. Agora, havia menos carroças e menos gente a pé, mas o velhinho lá estava.
- Você donde vem? . perguntei-lhe.
- De San Carlos . respondeu-me sorrindo.
Era a sua terra natal. Por isso teve prazer em mencioná-la e sorriu.
- Era eu quem cuidava dos animais . explicou.
- Oh! . exclamei eu, não percebendo lá muito bem.
- Sim . insistiu ele . Eu cuidava lá dos animais. Fui a última pessoa a abandonar a cidade de San Carlos.
Ele não tinha ar nem de pastor, nem de guardador de gado. Olhei para as suas roupas impreganadas de poeira negra, para o seu rosto cinzento de poeira, para os seus óculos com aros de metal e perguntei:
- Que animais?
- Vários animais . respondeu, agitando a cabeça. . Tive de os abandonar.
Olhei, então, para a ponte das barcas, para aquela zona do delta do Ebro que parecia mesmo África, perguntando a mim próprio quanto tempo teríamos ainda de esperar até vermos o inimigo, à escuta dos ligeiros ruídos que significassem esse acontecimento misterioso chamado .contacto.. O velhinho continuava sentado.
- Que animais eram? . perguntei,
- Eram só três animais . explicou . Duas cabras, um gato. Havia ainda quatro casais de pombos.
- E teve de os abandonar? . insisti.
- Tive. Por causa da artilharia. O capitão mandou-me seguir, por causa da artilharia.
- E você não tem família? . inquiri, vigiando a outra extremidade da ponte, onde os últimos carros se apressavam a descer para a margem.
- Não . respondeu. . Só os animais que lhe disse. O gato, é claro, com esse não haverá perigo. Os gatos governa-se sozinhos, mas não faço ideia do que vai ser dos outros.
- Quais são as suas ideia políticas? . perguntei.
- Não tenho ideias políticas . respondeu. . Tenho setenta e seis anos. Já caminhei doze quilómetros e agora acho que não posso andar mais.
- Mas isto não é um bom lugar para ficar parado . observei. . Se aguentar, arranjará um camião na encruzilhada para Tortosa.
- Vou esperar aqui um bocado . respondeu ele. . Depois irei. Para onde é que vão esses camiões?
- Para Barcelona . disse-lhe eu.
- Não conheço ninguém para esses lados . comentou. . Mas muito obrigado. Muito, muito obrigado.
Olhava para mim. O seu rosto estava pálido, denunciando fadiga. Depois . vendo-se nitidamente que precisava de compartilhar as suas preocupações com alguém . disse:
- Tenho a certeza que com o gato não haverá perigo. Não preciso de me preocupar com ele. O pior são os outros. Diga-me uma coisa: O que é que pensa a respeito dos outros?
- Acho que se vão desenrascar.
- Acha que sim?
- Porque não? . retorqui-lhe, olhando para a outra margem onde já não havia quaisquer carroças.
- Mas que hão-de eles fazer debaixo do fogo de artilharia, quando a mim me disseram para retirar?
- Você deixou o pombal aberto? . perguntei-lhe.
- Deixei.
- Então os pombos fogem.
- Sim, claro que fogem. Mas os outros? Nem é bom pensar nos outros!
- Se já repousou é melhor andar . apressei-o eu. . Levante-se e experimente andar.
- Obrigado . disse.
Levantou-se, oscilou como um pêndulo, e deixou-se cair para trás, sentado na poeira.
- Eu cuidava dos animais . disse, melancolicamente.
E, agora, já não era para mim que falava.
- Eu só cuidava dos animais...
Não havia nada a fazer-lhe. Estávamos no domingo de Páscoa, e os fascistas avançavam para o Ebro. O dia mostrava-se triste e cinzento. As nuvens rasavam a terra. Por isso, não apareciam os aviões do inimigo. Essa circunstância e o facto de os gatos serem capazes de perfeitamente tomarem conta de si mesmos, eram as únicas coisas que, poderiam constituir para o velhinho um pálido sorriso da fortuna.
Vi em O Observador.
CINEMA E LITERATURA
Rubem Fonseca
Os jovens, da minha geração, queriam ser poetas. Mas alguns sonhavam com a poesia porque o cinema era um sonho que parecia impossível. Hoje os jovens sonham, e se realizam, com o cinema. Eu sempre gostei de cinema, mas tornei-me apenas um cinéfilo. Só fui me envolver com essa atividade depois de ter escrito duas dúzias de livros. Mas o meu envolvimento tem sido como roteirista, não obstante eu deva confessar que gostaria também de ser diretor.
Já escrevi roteiros baseados em romances ou contos meus – A grande arte, O caso Morel, que infelizmente não foi terminado; Bufo&Spallanzani; Relatório de um homem casado e acabo de escrever o roteiro de Diário de um fescenino. Já escrevi roteiros originais (Stelinha, A extorsão) e, finalmente, escrevi roteiros baseados em romances dos outros – O homem do ano, baseado no livro O matador, de Patrícia Melo e dirigido por José Henrique Fonseca.
O que foi mais difícil?
O mais difícil é fazer um roteiro baseado em obra literária já publicada, como no caso de O homem do ano. Até nos casos em que eu mesmo havia escrito a obra literária, como Bufo&Spallanzani, o roteiro foi mais difícil de escrever. Se vocês perguntarem ao Jean-Claude Carrière, que já escreveu dezenas de roteiros, o que foi mais trabalhoso e difícil de fazer, o roteiro de The unbearable lightness of being, baseado no livro de Milan Kundera, ou o roteiro original de Le charme discret de la bourgeoisie, ele responderá que foi o roteiro baseado no romance do Kundera.
Um roteiro é escrito várias vezes. Isso, aliás, é comum na feitura de textos literários em geral, principalmente na poesia. (Um poema nunca termina de ser escrito, ele é abandonado, como disse Valèry, o que vale para os textos literários também). Consta que Platão escreveu a primeira frase de A república cinqüenta vezes. Flaubert ficou trinta anos escrevendo A tentação de santo Antonio. Poderia citar dezenas de exemplos dessa fúria revisória, nos vários gêneros literários, mas toda citação excessiva de nomes, até em textos acadêmicos, é uma chatice.
Com os roteiros cinematográficos ocorre a mesma coisa, a diferença é que além do autor do roteiro, outras pessoas participam dessa revisão, quase sempre o diretor do filme, notadamente aqui no nosso país, e também o produtor. Isso aconteceu comigo, quando trabalhei, entre outros, com os Tambellini (pai e filho, em épocas diferentes), a Suzana Amaral, o Walter Salles, o Miguel Faria, e, mais recentemente, com o José Henrique Fonseca.
O que queremos todos nós envolvidos nesse processo? Os mais pretensiosos (e todo aquele que quer criar alguma coisa deve ser "pretensioso", buscar o seu nível de excelência) querem realizar uma obra de arte. Wagner quando compôs suas óperas almejava alcançar aquilo que ele denominava Gesamtkunstwerk – a obra de arte completa, que englobasse a música, a poesia e o drama, a pintura, a arquitetura, a dança. Estávamos no século XIX e se alguma arte poderia megalomaniacamente dizer isso era a ópera.
Já existia uma coisa chamada "lanterna mágica", que havia surgido no século XVII, um foco de luz que iluminava placas de vidro pintadas à mão. Essas imagens eram projetadas numa parede branca e os temas representados estavam ligados à religião. Chamava a atenção tanto de adultos como de crianças. Certamente não era a Gesamtkunstwerk apregoada por Wagner.
Demorou algum tempo até que os irmãos Lumière – August e Louis – no fim do século XIX, 1895, criassem o cinematógrafo, uma espécie de ancestral da filmadora, movido a manivela, utilizando negativos perfurados para registrar o movimento. O cinematógrafo tornou possível a projeção de imagens para o público. Eram imagens em movimento, não aquela coisa parada da lanterna mágica.
Há mais de cem anos, em 28 de dezembro de 1895, ocorreu a primeira exibição pública das obras dos Lumière, no Grand Café, de Paris – A saída dos operários das usinas Lumière, A chegada do trem na estação, O almoço do bebê, O mar foram alguns dos filmes apresentados, que deixaram os espectadores atônitos. As produções eram rudimentares, e, como vimos, documentários curtos sobre a vida quotidiana, de dois minutos de projeção, filmados. A apresentação pública do cinematógrafo marcou oficialmente o início da história do cinema. Porém faltava uma coisa muito importante – o som. Que somente apareceu três décadas depois, no final dos anos 20.
O invento dos Lumière se desenvolveu. Os cineastas, além dos documentários, partiram para a ficção. Surgiram Max Linder (que teria inspirado Chaplin) e outros comediantes, em vários paises. O americano Edwin S. Porter, em 1903, apresenta um trabalho pioneiro em a Vida de um bombeiro americano e, com O grande roubo do trem, inaugura o western.
Despontam então dois grandes nomes dos primórdios do cinema: George Meliés e David Griffith. Meliés nasceu na França em 1861 e morreu em 1938. Meliés foi um pioneiro na utilização de figurinos, atores, cenários e maquiagem, opondo-se ao estilo documentarista. Realizou os primeiros filmes de ficção, Viagem à lua e A conquista do Pólo, em 1902. O outro precursor é David Griffith, nascido nos Estados Unidos em 1875, onde morreu em 1948. No cinema foi o primeiro a tirar a câmera do tripé e a usar a montagem de uma maneira dinâmica e criativa. Com The birth of a nation (O nascimento de uma nação), de 1915, abriu caminho para a criação da indústria cinematográfica americana. (Dizem que Griffith visualizou o filme inteiro em sua mente e não escreveu um roteiro nem fez quaisquer anotações, mas eu não acredito nisso. Esta sentença "uma idéia na cabeça e uma câmera na mão" é responsável por muita porcaria.) Com Intolerância, de 1916, Griffith fortaleceu o impulso dado com The birth...
Começaram a chamar o cinema de a Sétima Arte. Havia sido encontrada a almejadaGesamtkunswerk do Wagner? Sim? Não?
Não. O cinema era mudo, não tinha a poesia dos textos falados, nem a música, essas formas de arte da maior importância. Como poderia arrogar-se o direito àGesamtkunstwerk? Era um excesso de (bem-vinda) pretensão.
As primeiras experiências de sonorização, feitas por Thomas Edison, em 1889, são seguidas por Auguste Baron (1896) e por Henri Joly (1900), mas os seus sistemas ainda tinham sérias falhas de sincronização imagem-som. O aparelho do americano Lee de Forest, de gravação magnética em película (1907), que permitia a reprodução simultânea de imagens e sons, foi adquirido em 1926 pela Warner Brothers. A companhia produziu o primeiro filme com música e efeitos sonoros sincronizados – Don Juan, de Alan Crosland, e o primeiro com passagens faladas e cantadas, O cantor de jazz (1927), também de Crosland, com Al Jolson, grande nome da Broadway. E ainda o primeiro inteiramente falado, Luzes de Nova York, de Brian Foy (1928). No ano seguinte, 1929, o cinema falado já representava 51% da produção americana. Outros centros, notadamente França, Alemanha, Suécia e Inglaterra começaram a explorar o som. A partir de 1930, Rússia, Japão, Índia e os países da América Latina recorrem à nova descoberta. A adesão de quase todas as produtoras ao novo sistema abalou convicções, causou o afastamento de atores e diretores. A linguagem cinematográfica teve que ser reformulada. Diretores importantes, como Charlie Chaplin e René Clair, entre outros, resistiram, dizendo que o cinema não precisava da fala dos artistas. Mas os dois acabaram aderindo, como sabemos, não obstante o cinema falado de Chaplin seja muito inferior ao que ele fazia antes. Alguns de seus filmes, como A Countess from Hong Kong (1967) eA King in New York (1957) são extremamente decepcionantes.
Durante a I Guerra Mundial, a produção de filmes concentra-se em Hollywood, na Califórnia, onde surgem os primeiros grandes estúdios. Dos anos 1930 até hoje a maior parte da produção mundial converge para Hollywood, mas muitos centros espalhados por todos os continentes produzem obras que merecem destaque.
Afinal, o que é o cinema, hoje? É chamado de a sétima arte, o que é correto. Mas ainda não podemos chamar o cinema de Gesamtkunstwerk, obra de arte completa. O cinema é, por enquanto, uma arte híbrida. E o problema principal é que o filme depois de algum tempo fica "datado", um bom filme antigo não é fruído com a mesma admiração, como ocorre com as outras boas obras de arte. Pode-se ouvir Mozart, ou reler o Dom Quixote, ou contemplar a capela Sistina com o mesmo prazer da primeira visita. No cinema, um filme antigo, com algumas raras exceções, pode ser visto apenas como curiosidade histórica. (Há casos de sofisticados cinéfilos que gostam e revêem filmes antigos, descobrindo novidades neles). Essa datação que o cinema sofre me parece ser o problema que exige que a sétima arte, ou "the industry", como os americanos a definem, seja um objeto de consumo renovado incessantemente. Pensem nisso, meus leitores do Portal Literal.
Para finalizar este artigo que já se estendeu demasiadamente, quero abordar a adaptação cinematográfica de obras literárias.
Antes de mais nada devo dizer que escrever para o cinema é diferente de qualquer outra forma de expressão escrita. Os elementos visuais são tão importantes quanto as descrições e diálogos. Como o investimento é muito grande, o roteiro tem que ser do agrado do produtor. E, como disse acima, o diretor também sempre interfere e o roteiro sempre passa por diferentes tratamentos, que levam em consideração uma porção de aspectos, um deles, talvez o mais importante, a aprovação do público. O escritor de ficção não tem que se incomodar com isso. Contudo, sem a imaginação dos roteiristas, boas histórias nunca são contadas no cinema. O cineasta e teórico russo Lev Vladimirovich Kulechov, que introduziu a arte da montagem, afirma em seu livro A arte do cinema que cinema é basicamente argumento e montagem, ou seja, as duas figuras mais importantes do filme são o roteirista e o montador. Eu concordo com ele, quanto à importância fundamental do roteirista, mas acredito que a figura do diretor é ainda mais importante. Reconheço que o cinema é, como diz a propaganda, "a maior diversão", que o cinema é a sétima arte. Ainda que não seja a obra de arte total é uma arte que usa as outras artes como suportes, da melhor maneira possível.
Mas, apenas para provocar, faço a seguinte pergunta: O que é mais importante como Arte, a palavra escrita – poesia, ficção, teatro – ou o cinema? Qual das duas pode atingir um nível de excelência mais elevado?
Que tal, apenas como exercício, compararmos as vantagens da literatura e as do cinema? Vamos, brevemente, examinar isso.
Vantagens da literatura:
1 - Polissemia e participação criativa. O David Neves, quando resolveu filmar a minha história Lúcia McCartney, disse-me que tinha a Lúcia "perfeita, exatamente como você a descreve no livro" e marcou um almoço nosso. A Lúcia, "exatamente como eu a descrevia no livro", segundo o David, era a Adriana Prieto, uma mulher jovem de cabelos louros, olhos azuis, lábios finos, um rosto bonito que lembrava as atrizes européias nórdicas. "Não é igualzinha?", perguntou o David. Evitei responder. Na verdade eu não descrevo a Lúcia na minha história, ela pode ser branca, mulata, negra, magra ou gorda. Porque essa é a grande riqueza da literatura, a participação do leitor, que preenche as lacunas deixadas pelo autor, do leitor que usa a sua imaginação recriando a história que leu, reinventando os personagens. O cinema não permite isso. A Lúcia era, axiomaticamente, uma linda e elegante mulher loura de olhos azuis. O espectador não precisava (nem podia) usar a sua imaginação. O leitor compartilha do livro não apenas estética e emocionalmente, ele tem uma participação criativa. Ele sempre "reescreve" o livro, à sua maneira.
2 - Permanência. Vejam que tipo de reação despertam os filmes clássicos, Grifith, e outros. Eles ficam "datados".
3 - O filme necessita da palavra escrita, até o cinema mudo precisava. Lembram-se de Kulechov – argumento e montagem?
4 – Literatura é tão importante que diretores do mainstream, como Scorsese, Spielberg e outros, aconselham os diretores a lerem, por considerarem a leitura importante para o trabalho que realizam. Nenhum escritor aconselha outros escritores a irem ao cinema, por ser importante para o trabalho que fazem. Há uma frase interessante do escritor Gore Vidal que, além de romancista famoso escreveu vários roteiros. Vidal afirma: "Cinema é roteiro. Uma coisa é certa: o roteiro é fundamental para o filme. Assim como para o corpo humano uma boa e simétrica estrutura óssea é que vai permitir ao corpo ser bonito e atraente, no cinema isso é feito pelo roteiro". Cinema é argumento e montagem, estou repetindo Kulechov. Chaplin usava menos de dez por cento do que ele filmava, o resto era cortado na sala de montagem.
Vantagem do cinema:
Tem que haver uma razão para a popularidade do cinema.
Com exceção de alguns poucos ensaístas franceses rabugentos, não me lembro de nenhum escritor, músico, pintor que não goste de cinema, todo mundo gosta de cinema. Talvez porque, mesmo tendo por enquanto falhado em tornar-se aGesamtkunstwerk wagneriana, é a arte que mais se aproxima desse ideal, e talvez, um dia, venha a deixar de ser uma arte apenas híbrida para tornar-se uma arte completa.
Concluo, agora realmente, fazendo uma relação, breve – e arbitrária evidentemente – de filmes melhores e filmes piores do que a obra literária.
Alguns filmes melhores do que o livro:
Gone with the Wind ou E o vento levou. O filme dirigido por Victor Fleming é melhor do que o romance da Margareth Mitchell.
The Godfather. O filme de Francis Ford Coppola é melhor do que o livro do Mario Puzzo, do mesmo nome.
Blade Runner. O filme de Ridley Scott é melhor do que o livro do criativo Philip K. Dick, Do Androids Dream of Electric Sheep? no qual se baseia. (Não usaram o nome do livro porque, para os produtores, não devia ser muito comercial).
Filmes piores do que o livro:
Eles são tantos, os filmes piores do que os livros, que seria cansativo arrolar todos aqui. Todos os filmes baseados em Homero, Proust, Kafka, Joyce (com uma ressalva), Tolstoy, Tchecov, Remarque, Victor Hugo, Poe, Thomas Mann, Hemingway, Fitzgerald, não importa a categoria literária, pode até ser romance policial como os de Wilkie Collins, Raymond Chandler, Dashiell Hammett são inferiores ao original literário.
Como sempre, existem exceções, filmes que mantêm o mesmo nível do original literário, como Berlin Alexanderplatz (Alfred Döblin/Fassbinder), The Dead(Joyce/Huston – a ressalva que fiz acima), entre outros.
Essas listas de filmes ocupariam um montão de páginas. Meus leitores do Portal Literal que façam as deles.