Roberto Saviano
As mulheres são, na sua maioria, mais capazes de encarar o crime como se fosse somente coisa de um momento, do juízo de alguém, de um degrauzinho pisado e logo superado. Isso as mulheres dos clãs mostram claramente. Elas se sentem ofendidas, ultrajadas quando chamadas de camorristas, criminosas. Como se criminoso fosse só um julgamento sobre um ato, não um gesto objetivo, um comportamento. Mas somente uma acusação. Até hoje, diferentemente dos homens, nenhuma mulher boss da Camorra se arrependeu. Nunca.
Em defesa feroz dos bens de sua família, sempre esteve Ermínia Giuliano, conhecida como Celeste por causa da cor de seus olhos, a bela e vistosa irmã de Carmine e Luigi, os boss de Forcella, que - segundo as investigações da promotoria - é a referência absoluta do clã quando se trata da gestão de bens imóveis e de capitais de investimento no setor comercial. Celeste encarna a imagem da napolitana clássica, da camorrista arrogante do centro histórico, os cabelos tingidos de louro platinado, os olhos claros e frios, sempre afogados como gemas em fortes traços de delineador preto. Ela dirigia as atividades econômicas e legais do clã. Em 2004, foram confiscados dos Giuliano os bens nascidos da sua atividade empresarial: 28 milhões de euros, o verdadeiro pulmão econômico do clã. Tinham um conjunto de cadeias de lojas em Nápoles e no interior, e uma empresa titular de uma marca que se tornou famosíssima, por meio da habilidade da empresa e da proteção armada e econômica do clã. Uma marca que tem uma rede de franchising composta por 56 pontos de vendas na Itália, Tóquio, Bucareste, Lisboa e Tunísia.
O clã Giuliano, hegemônico nos anos 1989 e 1990, nasceu no ventre mole de Nápoles, em Forcella, o quarteirão que reivindica para si toda a mitologia da tradição, toda a lenda de ser o umbigo podre do centro histórico napolitano. Os Giuliano parecem um clã saído do nada, pouco a pouco emerso da miséria, do contrabando de prostitutas, das extorsões de porta em porta, e até dos seqüestros. Uma dinastia enorme baseada em primos, netos, tios, parentes. Chegaram ao ápice do poder no final dos anos 1980 e agora são portadores de uma espécie de carisma que não tem como desaparecer.Ainda hoje, quem quiser comandar alguma coisa no centro histórico deve confrontar-se com os Giuliano. Um clã saído do colo da miséria e com horror de voltar a ser miserável.Uma das afirmações de Luigi Giuliano, o rei de Forcella, que mais demonstrou seu desgosto pela miséria, foi registrada pelo cronista Enzo Perez. Ele lhe disse:"Eu não estou de acordo com Tommasino, eu até gosto de presépio, mas são os pastores que me dão nojo!"
O perfil do poder absoluto do sistema camorrista assume cada vez mais os traços femininos. Mas também os seres mais sofridos, mais massacrados pelos tratores do poder são as mulheres. Annalisa Durante, morta em Forcella no dia 27 de março de 2004, num fogo cruzado, tinha 14 anos. Quatorze anos. Quatorze. Repetir isso é como passar uma esponja de água gelada ao longo da coluna. Fui ao funeral de Annalisa Durante. Cheguei cedo à igreja de Forcella.As flores ainda não tinham chegado, mas havia manifestações escritas por todo lado, mensagens de condolências, lágrimas, depoimentos dilacerantes de colegas de escola. Annalisa foi assassinada. Uma noite quente, talvez a primeira noite realmente quente dessa estação terrivelmente chuvosa, Annalisa decidiu passá-la na entrada do prédio de uma amiga. Usava um vestidinho bonito e quente que aderia ao seu corpo tonificado, já bronzeado. Essas noites parecem feitas para encontrar namorados, e 14 anos para uma mocinha de Forcella é a idade propícia para começar a escolher um possível namorado a ser conduzido até o matrimônio. As moças de 14 anos do quarteirão popular de Nápoles já parecem mulheres vividas. Os rostos são fortemente maquiados, os seios são transformados em duríssimos melõezinhos pelos sutiãs push-up, calçam botas com saltos finíssimos que põem em perigo os tornozelos. Devem ser equilibristas para sustentar o vertiginoso caminhar sobre o basalto, pedra vulcânica que reveste as ruas de Nápoles - sempre inimiga de todo sapato feminino. Annalisa era bonita. Muito bonita. Com a amiga e uma prima estava escutando música, todas três lançando olhares aos rapazes que passavam em suas motos, empenando, fazendo barulho com os pneus, empenhando-se em rachas perigosíssimos entre carros e pessoas. Um jogo de sedução atávico, sempre idêntico. A música preferida das moças de Forcella é a dos neomelódicos, cantores populares de um circuito que vende muito nos quarteirões populares napolitanos, mas também nos de Palermo e Bari. Gigi D'Alessio é o mito absoluto. O que conseguiu sair daquele pequeno circuito e impor-se em toda Itália. Os outros, centenas de outros, permaneceram pequenos ídolos de bairro, divididos por zona, prédio, rua. Cada um tem o seu cantor. De repente, porém, enquanto o rádio solta no ar o agudo rouco dos neomelódicos, duas motos, acelerando ao máximo, perseguem alguém que escapa, devora a rua com os pés. Annalisa, sua prima e a amiga não entendem, pensam que estão brincando, talvez se desafiando. Depois os disparos. Balas batem e rebatem por todo lado. Annalisa cai por terra. Duas balas a atingiram. Todos fugiram. As primeiras caras que começam a sair de trás de balcões, sempre disponíveis a proteger transeuntes, começam a gritar "ambulância, hospital", e o quarteirão inteiro se enche de curiosidade e apreensão.
Salvatore Giuliano é um nome importante. Chamar-se assim parece já ser condição suficiente para comandar.Mas aqui, em Forcella, não é a recordação do bandido siciliano que confere autoridade a esse rapaz. É somente o seu sobrenome. Giuliano. A situação ficou pior depois da decisão de falar, tomada por Lovigino Giuliano, um arrependido. Ele traiu seu clã para evitar a prisão perpétua.Mas, como sempre acontece nas ditaduras, mesmo se o chefe sai de cena, nenhum outro, senão um dos seus homens, pode tomar o lugar. Os Giuliano, portanto, mesmo com a marca da infâmia, continuavam a ser os únicos em condições de manter relações com os grandes corredores do narcotráfico e impor a lei da proteção. Com o tempo, porém, Forcella se cansa. Não quer mais ser dominada por uma família de infames, não quer mais prisões e polícia. Quem quer tomar o lugar deles deve eliminar o herdeiro, deve impor-se oficialmente como soberano e expulsar a raiz dos Giuliano, o sucessor, ou seja, Salvatore Giuliano, o neto de Lovigino. Aquela noite era o dia estabelecido para oficializar a hegemonia, para tirar de cena o pimpolho que estava crescendo e mostrar a Forcella o início de um novo domínio. Seguiram-no, esperaram, marcaram. Salvatore caminha tranqüilo, mas se dá conta, subitamente, de estar na mira. Escapa. Os assassinos o seguem, ele corre, quer achar uma saída. Começam os disparos.
Giuliano muito provavelmente passa na frente das três moças, aproveita-se delas como escudo e, na confusão, tira uma pistola e começa a disparar. Com alguns disparos consegue fugir, e os killers não o alcançam. Quatro foram as pernas que correram para dentro do prédio procurando refúgio. As meninas se olharam, falta Annalisa. Saem. Está no chão, sangue por todo lado, uma bala abriu-lhe a cabeça.
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