domingo, 1 de novembro de 2015

ALICE E.

José Marcelo
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Alice de cabelos escuros e macios. Ela sorriu daquele seu jeitinho inocente, disse, “Senhor, quer que eu tire agora?” e deitou-se na grama sedosa.
Ele disse, “Não, não agora. Ainda não”. Estava de pé, um cavalheiro vestido finamente, as mãos trêmulas apoiando-se na bengala, tentando não olhar Alice, mas sem, no entanto, conseguir fazê-lo.
“Quer que eu espere?” perguntou Alice.
Ele não respondeu, tirou um lenço de algum lugar, limpou o suor, olhou ao redor e voltou a fixar os olhos nela. “Pode tirar… agora, se quiser”, disse.
Alice sentou-se diante dele e tirou a calcinha sob o vestido. Um vento passou pela colina onde estavam, trazendo um odor suave de primavera e tranquilidade. Derrubando algumas folhas da árvore enorme sobre ambos. Alice mostrou a calcinha branca e deixou-a aos pés do homem.
Ele fez que ia abaixar-se e pegar a peça, mas Alice impediu-o com um gesto. “Tsc, tsc”, fez ela. “Você tem que fazer algo primeiro.”
“Sim, naturalmente. Sim”, disse ele, nervoso, pegando a carteira e entregando dinheiro à Alice.
Ela disse, “Muito bem. É sua.” Alice levantou-se.
O homem ficou de quatro, sem se importar em sujar as roupas finas, e cheirou e lambeu e finalmente abocanhou a calcinha de Alice. Ele respirava com dificuldade e suava em abundância.
Alice deixou-o e desceu a colina. Lá embaixo, havia uma pequena estação de trem, vazia exceto por um velho sem dentes e de olhar assustado como o de um coelho, o bilheteiro.
“Uma passagem”, disse Alice.
“Conseguiu dinheiro?” perguntou o velho, maliciosamente.
Alice colocou as notas diante do velho e ouviu a locomotiva que se aproximava. “O suficiente”, disse ela. Ela não disse aonde queria ir e nem o velho perguntou. Ele apenas guardou as notas na gaveta e entregou-lhe um bilhete. “Boa viagem, menina”, disse ele.
O trem chegou e era enorme e ruidoso como um dinossauro raivoso. A fumaça que subia da locomotiva era espessa e misturava-se com as poucas nuvens em um céu azul ofuscante. O vagão onde Alice entrou estava vazio e ela sentou-se em um banco à janela. Ficou olhando a grama que se estendia até ao longe. Sentiu a exaustão dos últimos dias pesar. Dias e noites sem dormir. Fechou os olhos e adormeceu quase imediatamente.
O sono não trouxe nenhum alívio…
Sapos vomitados por uma garotinha nua de olhos azuis azuis que tinham línguas que queimavam e o cheiro ardente de pimenta queimada que impregnava nas roupas e na pele e o homem calvo de rosto queimado gritando Alice e Alice chorando e a garotinha perguntando Por que está chorando Alice? e Alice vendo os próprios pulsos cortados e no entanto não havia sangue nenhuma gota.
… E Alice acordou assustada, um nome sussurrado em seus lábios, “Leroy”. De algum modo esperando que ele estivesse ao seu lado. Então lembrou-se: Leroy estava morto. Tentou não pensar nele, mas a imagem já se apegara a sua mente. Leroy rindo no manicômio, amarrado e no entanto dizendo, “É preciso sempre olhar o lado bom da vida”.
Leroy junto dela a apenas um par de dias, enfaixando as mãos feridas. “Eu vou entrar. Você fica aqui.”
“Não seja estúpido”, disse Alice. Ela olhou para a casa velha da fazenda, bastante comum mas, naquela noite, assustadora e triste.
“Não sou estúpido. Preciso de você aqui fora. Faça o círculo. E, Alice, sabe o que fazer se eu não sair de lá até o amanhecer?” Ele segurou-a pelos ombros. “Quero que queime a casa. E mate qualquer outro que tentar sair. Pode fazer isso? Alice?”
“Está falando da garotinha.”
“Estou.”
Ela protestou. Estava com medo. Medo por ele. Leroy riu, “Eu sempre soube que você me amava”, disse ou alguma bobagem do tipo. Ela não tinha certeza. Estava assustada demais, abaixou a cabeça, e quando tornou a olhar, ele já havia entrado na casa. Ela ouviu o estalo da porta sendo trancada. Os gritos começaram quase imediatamente.
Ela pegou o saco com pimenta queimada que Elroy trouxera e começou a derramar em volta da casa. Tentou concentrar-se nisso. Quando acabou, estava tudo em silêncio. Era quase pior que os gritos. Alice quase forçou a porta. Começara a ventar e as árvores envergavam-se. Ela sentou-se e encolheu-se diante da casa e fechou os olhos com força. Trêmula, esperou o amanhecer.
Mas a noite prolongava-se e a casa continuava silenciosa como se estivesse vazia. A única coisa que Alice ouvia era o som de cascos. Ela olhou em volta, porém nada viu. As sombras tinham muitas formas, mas nenhuma que parecesse real e no entanto todas eram.
O dia chegou e o sol era como uma aparição que tudo cobria. Alice encarava a porta e a porta não moveu-se.
A última coisa que Alice se lembra agora, sentada no vagão vazio indo para algum lugar longe daquela fazenda, é da casa em chamas. Um fogo tão alto que podia ser visto a muitas milhas. Ela não sabe como chegou naquela estação no meio do nada, dias depois, sem dinheiro e ainda trêmula. Sabe apenas que Leroy provavelmente está morto. E que não quer mais pensar nele.
Leroy que dissera, “É uma espécie de exorcismo”.
Isso fora uma semana antes. Estavam no quarto de um hotel. Leroy observava a rua lá embaixo, “As pessoinhas, são apenas pessoinhas aqui de cima”, como ele gostava de dizer. Alice estava na cama. Ele dormira no chão.
“Que chamem um padre, então”, disse ela.
“Um padre só atrapalharia.”
“Você não tem que fazer isso.”
Alice saiu de sob os lençóis. Estava nua, a pele clara e bela. Espreguiçou-se e bocejou, as pernas levemente abertas. Foi até o banheiro. Quando voltou, Elroy estava sentado na cama, limpando a pistola. Ele tinha aquela expressão no rosto que ela conhecia bem. Alice sabia que não importavam os seus argumentos, ele já decidira.
“Eu vou com você”, disse Alice.
“Não”, respondeu Leroy sem olhar para ela.
“Você vai precisar de um assistente”, insistiu ela, enrolada na toalha e abrindo a mala de roupas.
“Trabalho melhor sozinho.”
“A temporada no manicômio que o diga”, disse ela.
“Não tem nada a ver. Você sabe porque me trancaram naquele lugar.” Ele deixou a pistola sobre a cama e voltou à janela. A menção do hospício mexera com ele e Alice arrependeu-se de ter tocado no assunto.
“Desculpe… Leroy, desculpe”, disse ela.
“Tudo bem. Você não vai.”
Mas ela foi. Quando chegaram de charrete na fazenda, a garotinha estava amarrada na cama, dormindo, e os pais encolhidos na cozinha, silenciosos e abatidos. Eram jovens, mas pareciam ter envelhecido anos. Leroy disse a Alice que conversasse com eles. A avó da menina estava sentada em uma cadeira ao lado da cama da neta. Leroy havia dito a Alice que fora a velha quem o chamara. Ele entrara no quarto e fechara a porta. Era um fim de tarde vermelho entre as nuvens.
O exorcismo começou naquela mesma noite.
Alice lembrava-se apenas de algumas imagens de horror, cenas como fotografias envelhecidas escorrendo na sua cabeça.
Sapos e pus e cobras e comida azeda e…
Uma velha arrastando-se no chão e morrendo devagar como se algo a consumisse por dentro talvez um veneno que rasgava suas entranhas e ela defecou e mijou-se e morreu com uma expressão aterrorizada enquanto a neta pulava na cama rindo e rindo…
Elroy gritando que todos saíssem da casa quando o teto começou a gotejar pus e sangue e ele tentando levar a garotinha consigo e ela mordendo suas mãos…
A garotinha (Alice não se lembra do nome dela por mais força que faça) cuspindo, vomitando sapos…
O pai da menina atacando Elroy e sendo desacordado por um soco certeiro… “Não sabe que os loucos são extremamente fortes, senhor?”
Tentáculos arrastando Alice para baixo da cama, tentáculos apertando sua cintura, enrolando-se em suas pernas, tocando sua virilha, pressionado seus seios… Elroy cortando os tentáculos com um machado…
Parecia ensandecido erguendo e baixando a lâmina, gritando como um banshee…
Os espelhos da casa rachando-se e exibindo vultos bizarros…
Elroy, enfim, levando todos para fora, exceto a garotinha…
O choro desesperado de uma mãe que morreu ao cortar a garganta com uma foice, esvaindo-se em sangue nos braços do marido que saiu correndo pelos pastos…
E Elroy voltando para dentro da casa… sem ao menos beijar Alice.
E agora: “Está bem, senhorita?”, pergunta o homem no corredor do vagão.
“Sim, sim”, respondeu ela.
Ele a olhou em dúvida, mas não insistiu e foi-se. Alice limpou o rosto e viu que outra noite estava chegando. Por que o anoitecer sempre parece chegar com um sangramento no horizonte? perguntou-se. Mas não podia negar que era sempre belo.

Um comentário:

O Ancião disse...
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