sábado, 30 de abril de 2011

CHAME OS MORTOS

É George A. Romero botando pra fuder com um elenco porra louca e perfeito.

O HOMEM INVISÍVEL

H.G. Wells

invisibleman

Um trecho:

Capítulo I

A chegada do estranho

O estranho apareceu no princípio de fevereiro, em pleno inverno, por entre um vento cortante e rajadas de neve, na derradeira nevasca do ano; cruzou a colina vindo da direção da estação de trem de Bramblehurst,1 e carregava uma pequena mala na mão enluvada. Estava agasalhado da cabeça aos pés, e a aba do seu chapéu de feltro mole escondia cada centímetro do seu rosto, com exceção da ponta lustrosa do seu nariz; a neve havia se acumulado sobre seus ombros e seu peito, e cobria com uma crosta branca a maleta que ele carregava. Ele

cambaleou para dentro da hospedaria Coach and Horses mais morto do que vivo, e jogou a mala no chão.

— Um fogo! — exclamou. — Por caridade! Um quarto e um fogo bem aceso!

Bateu com os pés no chão, sacudiu para os lados a neve acumulada e seguiu a sra. Hall até o saguão para se registrar. E com esta apresentação, e um par de soberanos atirados sobre a mesa, ele se instalou no albergue.

A sra. Hall acendeu a lareira e o deixou ali, enquanto ia ela própria preparar-lhe uma refeição. Um hóspede aparecendo em Iping em pleno inverno era uma sorte extraordinária, ainda mais um hóspede que não se dava o trabalho de regatear, e ela queria mostrar-se digna dessa sorte. Assim que encaminhou o preparo do bacon e desferiu algumas reclamações ríspidas para fazer despertar Millie, sua preguiçosa criada, ela levou toalha, pratos e copos para a sala e começou a arrumar a mesa com estardalhaço. Ficou surpreendida ao ver que,

embora o fogo já ardesse, o hóspede ainda estava de casaco e chapéu, parado de costas para ela, e observando pela janela a neve que caía no pátio. Mantinha às costas as mãos enluvadas, e parecia imerso em reflexões. Ela observou que a neve caída sobre seus ombros começava a gotejar sobre o tapete.

— Não quer tirar o casaco e o chapéu, senhor? — perguntou-lhe. — Posso mandar secá-los na cozinha.

— Não — disse ele sem se virar.

Ela ficou em dúvida se tinha escutado bem e estava a ponto de repetir a pergunta quando ele se virou e disse com firmeza:

— Prefiro ficar com eles.

Ela notou então que ele estava usando óculos de lentes azuladas com protetores laterais; além disso, usava barbas volumosas cujos pelos cobriam por completo o restante de sua fisionomia.

— Tudo bem, senhor, como preferir — respondeu. — Daqui a pouco a sala estará mais quente.

Ele não respondeu e virou-lhe as costas novamente. A sra. Hall, sentindo que suas tentativas de entabular conversa não eram bem recebidas, terminou de pôr a mesa em rápido staccato e retirou-se. Quando voltou à sala, o visitante permanecia ali de pé como uma estátua, as costas curvadas, a gola erguida, a aba gotejante do chapéu virada para baixo e escondendo por completo seu rosto e suas orelhas. Ela depositou

os ovos e o bacon sobre a mesa com ênfase considerável e anunciou, mais do que disse:

— Seu jantar está servido, senhor.

— Obrigado — disse ele, imediatamente, e não se moveu enquanto ela não se retirou e fechou a porta. Só então ele deu uma volta e se aproximou da mesa, com certa impaciência.

Ao atravessar a copa rumo à cozinha, ela escutou um som que se repetia a intervalos regulares. Tac, tac, tac... o som de uma colher sendo rapidamente agitada numa tigela. “Essa menina!”, exclamou ela. “Vejam como ela demora!” E, enquanto ela mesma terminava de preparar a mostarda, brindou Millie com uma longa arenga de reclamações por sua lentidão. Tinha preparado o presunto e os ovos, posto a mesa, feito tudo, enquanto Millie (que bela ajudante!) sequer tinha preparado a mostarda! E ela com um hóspede acabado de chegar!

Terminou de encher o pote de mostarda e, colocando-o com certa pomposidade numa bandeja de chá preta e dourada, levou-a para a sala.

Bateu à porta e entrou em seguida. Quando o fez, viu o visitante mover-se rapidamente, de modo que ela teve apenas o vislumbre de um objeto branco desaparecendo sob a mesa. Teve a impressão de que ele estava apanhando algo caído no chão. Ela largou o pote de mostarda sobre a mesa, e só então percebeu que o sobretudo e o chapéu do homem tinham sido tirados e estavam agora numa cadeira diante do fogo, enquanto

um par de botas encharcadas ameaçava de ferrugem a grade de metal. Ela se encaminhou resoluta para recolhê-los.

— Acho que vou ter que secar isto eu mesma — disse, numa voz que não admitia réplicas.

— Deixe isso aí — falou o visitante, numa voz abafada, e, voltando-se, a sra. Hall viu que ele tinha erguido a cabeça e a encarava. Por alguns momentos ela o contemplou de boca aberta, perplexa demais para poder dizer alguma coisa.

Ele segurava um lenço branco sobre a parte inferior do seu rosto, escondendo por completo a boca e o queixo, e era a isso que se devia o som abafado de sua voz. Mas não foi isso que provocou um sobressalto na sra. Hall, e sim o fato de que toda a testa do homem por cima dos óculos azuis estava coberta por ataduras brancas, e o mesmo ocorria com suas orelhas, sem deixar exposto um centímetro sequer do seu rosto, com exceção do nariz, que era cor-de-rosa e adunco. Um nariz tão brilhante, rosado e lustroso quanto ela notara

no momento em que ele entrou na estalagem. Ele vestia agora um casaco de veludo marrom-escuro, com uma gola alta, forrada de linho negro, levantada em torno do pescoço. O cabelo negro e espetado, escapando por entre as ataduras, projetava-se para fora em formas que pareciam caudas e chifres, dando àquela cabeça a mais curiosa das aparências. Aquela cabeça toda cercada de panos e bandagens era tão diferente do que a boa senhora tinha imaginado que ela permaneceu ali, imobilizada.

DEMI

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O GAROTO

The Kid. O filme completo. Obra prima de Charles Chaplin. Para rir. Para chorar. Enfim, para se emocionar. A comedy with a smile--and perhaps a tear.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

ALEGRIA

José Marcelo

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Minha noite é longa e começa tarde. Durmo lá pelas duas horas em um quarto abarrotado de livros que já li ou estou lendo ou lerei ou até mesmo larguei. Embora pretenda voltar a abrir suas páginas. Porque. Já mudei de idéia sobre um livro. Passei a amar o que detestava. Mesmo que o contrário seja mais comum: hoje detesto muito livro que antes lia e gostava. Senso crítico e preconceito e – chame como desejar. Não é importante. O mesmo acontece com filmes e gibis. Mas não era disso que eu queria falar.

Acordo tarde. Mas agora que minhas férias estão acabando (volto a trabalhar na segunda-feira) tenho que voltar a acordar cedo. Diga isso para meu organismo. Eu tentei, mas o filho da puta não me ouve, simplesmente me ignora, eu que me foda.

Que se foda eu.

O que me leva à pornografia. Adoro pornografia. Como não gostar de algo que te deixa com vontade de trepar. Como não gostar de ouvir os gemidos e ver uma mulher – geralmente linda – abrir-se com aquela expressão de puro prazer? Palavras, desenhos, fotos, filmes. Veja: a expressão. Orgasmo. Nada faz mais bem que o orgasmo.

E ela entra na sala de saia curta e olhos safados. Mas é a boca dela que me chama a atenção: suave. Quase sinto a maciez daquela boca. Ela se senta no sofá e ergue devagar a saia vermelha, revelando uma calcinha rosa. Gosto dessa cor numa calcinha. Algo a ver com frescor, acho. Ela enfia os dedos entre as pernas e depois na boca e entre as pernas de novo. A respiração muda, fica mais rápida. Ela não hesita. Tira a blusa fina. Tira a saia. Tira a calcinha. Dá para ver a humidade. Dá para ver a sua bucetinha. Nua de pêlos e nua de pudor. Pudor é para os tolos. Ela quer prazer. Ela abre bem as pernas. Começa a massagear a bucetinha. Ela geme. Ela enfia um dedo. Enfia dois dedos na bucetinha. Geme. Os dedos entram e saem cada vez mais rapidamente. Ela morde os lábios. Os bicos dos seios estão rígidos. Os olhos cheios de alegria. Alegria luxuriante. Ela enfia os dedos na boca. Enfia os dedos na bucetinha. Mais rápido. Ela respira rápido. Então, acontece. Ela goza. As pernas encolhem-se. Tremem. A sua bucetinha molhada em espasmos absolutamente prazerosos. É um instante que vale por um milênio. Olhe aquele rostinho lindo. Os olhos. Que alegria. Nada faz tanto bem como um orgasmo.

Chega de pornografia. Vou dormir. Esqueça isso. Vou tentar dormir.

 

MADAME

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As mulheres de Milo Manara.

PORNÔ FANTASMA

Santiago Nazarian

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“Jesus, tire essa meleca de cima do meu bolinho de arroz,” diz Bianca desviando o olhar da foto e pegando o frasco de molho inglês.
Jefferson puxa a foto de volta e a examina cuidadosamente, como se para tentar identificar o que nela poderia enojar aquela mulher num almoço de sábado.
“Como você esta pudica,” diz ainda com a foto para si. “É só a foto de um menino nu.”
“Exato. E de pau duro. Com pose de filme pornô de quinta. Não preciso ver essas coisas enquanto eu como.”
Jefferson guarda a foto e abre um sorriso. “Não era para olhar para o pau. Contenha-se. Era só para ver o rosto. O rosto. Não se parece?”
Bianca morde o bolinho sem olhar para Jefferson, tentando não denunciar a ele que ainda está envergonhada.
“Esse papo está meio doente, Jeff...”
Jefferson então se exaspera e debruça-se mais perto de Bianca. Pega um bolinho da travessa.
“Escuta, eu sei que é doença. Mas você sabe pelo que eu passei. Por isso tinha de te mostrar a foto. Não se parece com ele? Me diz. Não parece?”
Ele tira novamente a foto e estica ostensivamente para Bianca. Relutante, ela a pega, dobra ao meio e olha apenas o rosto. As mesas daquele restaurante são juntas demais. Cada refeição é uma vitrine e ela acha que Jefferson está se excedendo naquele ambiente em que todos os olhos são invasivos. Casais gays ao lado. Uma jornalista lésbica atrás. Jesus, naquele restaurante cada refeição é um outdoor, e ela não acha que está em condições de vender mercadoria alguma com aquela conversa, naquele clima. Olha o rosto do menino. Entrega a foto de volta para Jefferson. Não está impressionada.
“Parece. Não parece. Tanto faz. É um menino branco, de idade próxima, mesmo corte de cabelo, não há nada de especial. Pode parecer com qualquer um...”
“Diabos, Bianca....” Ok, ela sabe que não é por aí.
“Desculpe, não digo que o Victor se parece com qualquer um. Digo esse menino aí. Esse...”
“Ben. Benjamin Ford.”
“Benjamin Ford... Que nome.”
“Provavelmente é pseudônimo. Todos na indústria pornô têm.”
Bianca bebe sua caipirinha. “E provavelmente por ter essa cara comum é que faz sucesso na indústria pornô, porque se parece com qualquer menino, filho de qualquer um, se encaixa em qualquer fantasia.”
A expressão de Jefferson agora está entre a indignação e o abandono. “Isso não é uma tara doentia minha...”
“Então o que é, Jeff?”
O olhar dele congela nela. Como ela pode pensar nisso? “Como pode pensar nisso? Eu...”
“Como descobriu esse menino?” Bianca pergunta, agora pegando um bolinho, dando um gole na caipirinha e ameaçando acender um cigarro, tudo ao mesmo tempo.
“Um site gay,” Jefferson admite agressivamente.
“Exato, claro, isso, um site gay. Onde as pessoas assistem vídeos para se masturbar. Onde você procurou vídeos para isso também.”
Jeff larga o bolinho que pegara e reclina na cadeira. “Eu não procurei meninos iguais ao Victor para me masturbar. Foi uma coincidência.”
Bianca mantém o olhar firme. Mas suaviza. Sabe que não pode acusar seu amigo de desejar o filho morto. É muita doença. É muita doença, mas ela sabe que pode ser. Só não pode acusar. Não pode acusar. Suaviza.
“Desculpe... Olha, Jeff, este papo está muito mórbido...”
Ele se debruça novamente próximo a ela. “Bianca, você é minha melhor amiga. Eu precisava desabafar isso com você. Por favor. Se eu não posso desabafar contigo, com quem mais?”
Jefferson olha para os lados e percebe que o casal gay na mesa do lado também acompanha a discussão, agora talvez com interesse redobrado. Um deles veste regata, Jeferson repara. Diabos, o pessoal não tem o mínimo bom senso para vestir uma regata num restaurante, Jefferson pensa. Recosta-se novamente na cadeira e abaixa o tom de voz.
“Eu quero ir atrás desse menino.”
Bianca engasga na caipirinha - ou no bolinho de arroz? “Atrás desse menino? Você está louco?!”
“Eu sinto que é o destino.”
Ela pega o guardanapo e limpa a bebida que escorre da boca. “Destino? Que destino? Você nunca acreditou nessas coisas... Que papo louco é esse, Jeff? O que anda acontecendo com você?”
“Tenho pensado muito no Victor.”
“Normal, natural. Seu filho morreu muito novo, é natural que se lembre dele. Eu sei como é triste. Mas esse Ben Foster...”
“Ben Ford.”
“Esse Ben Ford não tem nada a ver com essa história. Essa é a doença.”
Jefferson sacode a cabeça para continuar a argumentar, então vem o garçom com os pratos. Garçom bonito, pensa Jefferson. Lembra também um amigo de Victor, o Miguel - maldito Miguel. Jefferson agradece os pratos. Bianca começa imediatamente a comer. O garçom-miguel parte.
“Eu acho que ele pode estar em perigo.”
Bianca agora faz uma expressão de que prefere curtir seu linguine do que continuar a conversa. “Se quer ajudar adolescentes problemáticos, Jeff, tem muitas maneiras melhores do que correr atrás de um ator pornô. Sei lá. Ligue para o Criança Esperança.”
“Acho que posso fazer por ele o que não pude fazer pelo Victor.”
Bianca agora tem de largar os talheres e encarar seu amigo. Tem vontade de gritar. Mas sussurra incisivamente.
“Você está mesmo louco. Está projetando num ator pornô o seu filho morto. Não percebe quão doente é isso, Jeff? Você precisa se tratar... Sério. Não, sério, não estou falando para ser agressiva. É sério, Jeff, você precisa conversar com um psiquiatra sobre isso. Urgente!”
Jefferson tenta interrompê-la, estendendo a mão. Já previa aquele papo. Finalmente ela se silencia.
“Eu sei o que parece, Bianca. Não estou louco, claro que não. E claro que descobri este menino porque entrei num site de putaria, queria bater uma punheta, sim, mas foi o que me acordou para minha consciência social.”
Bianca ri em deboche. “E o que é sua ‘consciência social’?”
“Que muitos dos meninos que estão lá são reféns das drogas. E fazem qualquer coisa, qualquer coisa pela grana ou pela cocaína, pela heroína, pelo crack. É disso que se alimenta a indústria pornográfica, de garotos de família viciados, como o Victor. E nós estamos financiando...”
“Victor não era ator pornô.”
Jefferson balança a cabeça como se não importasse. Olha então para seu hambúrguer, que esfria. “Não importa. Talvez tivesse chegado lá, se não tivesse morrido antes. Talvez morresse logo em seguida, como esse Ben Ford.”
“Ben Ford morreu?”
Jefferson então empurra o prato como se já tivesse terminado de comer. “Não... que eu saiba. Ele ainda está vivo. Eles postam vídeos novos dele toda sexta...”
“Você vê essas porcarias toda sexta?”
“Eu vejo essas porcarias todos os dias, Bianca. Todos os dias. E todos os dias me preocupo. Todos os dias penso que esse menino, que parece tanto o Victor, está com os dias contados. E todas as sextas ele parece mais cansado, mais exausto, mais perdido, um dia a menos de vida. Diabos, Bianca, você sabe que sou gay; sabe que depois que me separei nunca mais... Mas isso não me excita, te juro. Não me excita. E eu acho que isso sim é doente. Toda sexta ele está de volta e mais perto da morte. Não sei como alguém pode se masturbar com esse menino com o olhar tão perdido. Ele nem sabe onde está, nem sabe o que está fazendo, é só um menino...”
Bianca então o interrompe. “Ele é maior de idade? Digo, esse Ben Ford?”
Jefferson dá de ombros. “Deve ser, para fazer esses filmes. Deve ter pouco mais de dezoito.”
“Você precisa ter certeza, Jeff, ficar vendo essas coisas com menor de idade já é crime em si...”
Ele balança a cabeça. “Não, não. É um site confiável. Paguei com cartão de crédito.” Bianca se espanta.
“Você PAGA para ver isso?” Jefferson estende as mãos em obviedade. “Achou que seria de graça?” Bianca volta a seu linguine.
“Por mais que eu queira, nunca vou entender vocês gays.”
“Nós homens, Bianca. Pornografia é coisa de homem. Qualquer homem pagaria.”
Ela engole e o incentiva, para acabar logo com essa história.
“Tá. E daí?”
Ele pega da caipirinha dela. Bebe. Já não há muito além de gelo. Acena para o garçom, “traz mais uma?” e continua: “Daí que quero sua ajuda.”
“Ai...” diz ela.
“É. ‘Ai’. Quero sua ajuda. Quero que descubra onde gravam esses vídeos. Para você não é difícil. O site não tem muitas informações, mas você não teria dificuldade em descobrir. Quero saber a cidade, o endereço, quero ir atrás desse menino. Vou pagar o que for preciso para tirá-lo disso. Pagar para o que ele quiser fazer e o que for preciso para o livrar do vício. Ele não deve ter um pai que se importe, assim como eu não me importei o suficiente quando o Victor estava em perigo. Eu preciso fazer isso. Quero ajudar esse menino, Bianca. Me ajude a encontrar esse Benjamin Ford. Ou quem quer que ele seja.”

Santiago Nazarian blog.

INSISTO QUE

Woody Allen in WHAT_S NEW PUSSYCAT _1966_

__ Noventa por cento do sucesso se baseia simplesmente em insistir.

Woody Allen

KRISTEL

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quinta-feira, 28 de abril de 2011

AS MUITAS TRANSFORMAÇÕES DE JIMMY OLSEN

JO Bizarre Transformations

O CRISTÃO E O CANIBAL

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__ Better to sleep with a sober cannibal than a drunk Christian.

Herman Melville

My pussy possessed.

DANA

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o remorso de baltazar serapião

valter hugo mãe
o remorso de baltazar serapião
um trecho:

a voz das mulheres estava sob a terra, vinha de caldeiras fundas onde só diabo e gente a arder tinham destino. a voz das mulheres, perigosa e burra, estava abaixo de mugido e atitude da nossa vaca, a sarga, como lhe chamávamos.
mal tolerados por quantos disputavam habitação naqueles ermos, batíamos os cascos em grandes trabalhos e estávamos preparados, sem saber, para desgraças absolutas ao tamanho de bichos desumanos. tamanho de gado, aparentados de nossa vaca, reunidos em família como pecadores de uma mesma praga. maleita nossa, nós, reunidos em família, haveríamos de nos destituir lentamente de toda a pouca normalidade.
abríamos os olhos pirilampos à fraca luz da vela, porque a sarga mugia noite inteira quando havia tempestade. dava-lhe frio e aflição de barulhos. era pesado que nos preocupássemos com a sua tristeza, se havia algo na sua voz que nos referia, como se soubesse nosso nome, como se, por motivo perverso algum, nos fosse melódico o seu timbre e nos fizesse sentido a medida da sua dor. por isso, custava deixá-la sem retorno, sem aviso de que a má disposição das nuvens era fúria de passagem.
com vento a bater nos tapumes da janela mal coberta, água a inundar esterco no chão, velha, ela ficava à espera de que algo repusesse o dia e a libertasse para o campo, a fazer nada senão comer erva, vendo-nos labor ininterrupto. nós não dormíamos, ficávamos a fustigar o sono com dores de cabeça, martírios horas e horas. o aldegundes, que se levantava para a tentar acalmar, falava-lhe e prometia-lhe tudo. o meu pai dizia que, a ele, a sarga o confundia mais na ideia de família, se nascera com ela ali e, já eu um irmão muito mais velho, haveria de ser em perigo que o aldegundes se deixaria com ela em brincadeiras. que tempo de crescer o de uma criança, exclamávamos, com uma vaca pela mão em companhia, conversas a sério como se fosse entre gente, e a gostar dela como se gosta das pessoas, ou mais do que das pessoas todas, dizia ele, só algumas é que não, como a mãe, o pai, o irmão e a irmã. assim ela acalmava um pouco à voz infantil dele e nós adormecíamos instantes, mas voltávamos a acordar com a trovoada, embatendo nítida sobre a nossa casa tão pequena, e com o gemido abafado da bicha que recomeçava.
nós éramos os sargas, o aldegundes sarga, dos sargas, diziam. ele é sarga, é dos sargas cara chapada. nada éramos os serapião, nome da família, e já nos desimportávamos com isso. dizia o meu pai, o povo simplifica tudo e a nós veem-nos com a vaca e lembram-se dela, que é mais fácil para se lembrarem de nós e nos identificarem. a vaca era a nossa grande história, pensava eu, como haveria de nos apelidar a todos e servir de tema de conversa quando perguntavam pela mãe, pelo pai, perguntavam pela vaca, magra, feia, tonta da cabeça, sempre pronta a morrer sem morrer. e riam-se assim com o nosso disparate de ter um animal tão tratado como família, e não entendiam muito bem. não fazia mal, achávamos que éramos muito lúcidos, e adorávamos a sarga, mesmo nas noites de tempestade quando se amedrontava e nos obrigava a acordar. o aldegundes vinha dizer-nos que ela tinha água nas patas e que em pressas se devia varrer dali inundação que lhe dava medo, e ele não reparava que também se sujara nos pés e fedia, enquanto cheirávamos e agoniávamos de tormento sem mais sono.
o meu pai pagava ainda a ousadia de se chamar afonso. afonso segundo um rei, mas sobretudo em semelhança ao senhor da casa a que servíamos. uma ousadia disparatada, um sarga chamado afonso, um verdadeiro familiar da vaca como se viesse de rei. quem não tinha do que se honrar, que diabo honraria aludindo a tal nome, perguntavam as pessoas ocupadas com nossa vida. dom afonso, o da casa, era-o por herança e vinha mesmo das famílias de sua majestade, com um sangue bom que alastrava por toda a sua linhagem. nobres senhores do país, terras a perder de vista, vassalos poderosos, gente esperta das coisas do nosso mundo e de todos os mundos vedados. por isso, esqueciam-se quase sempre de que ele, o meu pai, se chamava afonso, e só lhe chamavam sarga, o da sarga, como ele e ela, como um casal. à minha mãe chegavam a dizer que fora à vaca que ele fizera os filhos, e ela revoltava-se. era sempre ela quem barafustava furiosa até que o meu pai viesse e impusesse o juízo e a calma. o meu pai entrava em casa muito tarde, quando estávamos recolhidos à luz da fogueira, e era feito silêncio para que aliviasse o cansaço e pedisse o que lhe aprouvesse. normalmente, tínhamos refeição da noite, jantar quente com vantagens sobre o desamparo da nossa condição social, e escutávamos as impressões do dia, as instruções para o que viria, e os votos de boa noite. por vezes, eu podia perguntar coisas. em noites de maior paz, faria perguntas sobre as mulheres e as promessas do corpo delas feitas ao desalento do nosso corpo de homens. e deixaríamos coisas ditas no ar, para continuar interminavelmente. eram coisas que se suspendiam sobre nós, como roupa a secar, e com que nos deparávamos mais tarde, como se lhes batêssemos com a cabeça numa distração qualquer, quando o trabalho era satisfeito e o tempo se permitia preciosamente ao convívio. o meu pai, o sarga, dizia-me que, se pudera pacificamente chamar-se afonso, sentiria maior felicidade. recordava os meus avós e jurava que chegaram a ter uma pequena terra só deles, escondida num muro à inveja dos trepadores e cultivada de legumes para servir uma fome só da família. era uma terra bonita de vistas, abençoada de fertilidade, calma de vento e cheia de furos de água. bebíamos e comíamos da nossa terra, lembro-me, contava o meu pai, era muito pequeno, como o aldegundes, e tudo ali nos bastava, como tínhamos galinhas e coelhos e o casal de porcos a fazer uma ninhada de leitões para cada ano, e era verdade que ninguém nos incomodava ou se acercava da nossa discrição. estávamos ali esquecidos para bem do nosso sossego. o meu pai sossegava e recolhia-se à cama, onde a minha mãe já se recolhera, a pedido de autorização, aliviada do peso do corpo em cima do pé torto, coçando longamente as pernas da comichão que lhe dava, atenta para acordar bem cedo na manhã seguinte.
quando chovia noite inteira era o pior. o aldegundes, fraco, um repolho de gente quase a querer ser homem, era descarnado e enfezado de altura e largura. que haveria de poder ele quando a sarga estava mais assustada e escutava menos as suas palavras. imaginava eu que ela assustada quisesse fugir para onde conhecesse mais seguro, soubéramos nós o que ela soubesse e talvez se acalmasse em algum lugar. mas, sem diálogo, ela ali ficava a debater-se com o coração aos saltos e o aldegundes choramingando súplicas, o meu pai infinitamente paciente, abdicado de descanso pela vaca, e eu sempre fazendo conta à atenção que lhe era dada, uma permissão desmedida no prejuízo das nossas noites. o aldegundes apossava-se do corpo da sarga pela cabeça, mas era verdade que ela era tonta, como fosse destituída da pouca inteligência que as vacas podiam ter. não tinha nem uma, o mais que fazia era reconhecer-nos e gostar de nós, isso sentíamos, e mais do que isso, nada. entornava os recipientes, perdia os caminhos, batia com o focinho nas paredes, enganada das portas. mas o aldegundes lá lhe esfregava a cabeça, olhos nos olhos, na escuridão. punha vela a arder protegida e queria muito não demorar. mas água que entrava era desordenada e cruel. e era certo que seria o que mais assustava a sarga, por isso ele se dava ao trabalho de varrer cuidadosamente tudo, porta aberta ao campo a enxotar esterco lá para fora, a vaca detida pela corda ao pescoço.
o meu pai levantou-se sem que a irritação lhe turvasse os sentidos. levou vela a juntar à do aldegundes e não se ouviu mais nada. a sarga calou-se de sossego e sono, especada na noite como uma coisa que só parecesse ser ela sem o ser. era como um objeto, sem voz nem movimento, disposto para o tempo da noite sem serventia nem mais nada. e nós adormecemos também, espantados com a obediência ao meu pai, discernido superiormente sobre todas as coisas da nossa vida.

mundo de k.

QUATRO BEIJOS

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__ A man loses his sense of direction after four drinks; a woman loses hers after four kisses.

H.L. Mencken

My pussy possessed.

OS SETE SAMURAIS

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Akira Kurosawa. Simplesmente um dos melhores entre os melhores.

Cinebulição.

BEIJO APERTADO

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Fuckmaker.

SÓ GAROTOS

Patti Smith

Patti

Um trecho:

Estava quente na cidade, mas eu ainda usava minha capa de chuva. Dava-me segurança quando ia para as ruas atrás de trabalho, meu único currículo, uma passagem por uma fábrica, vestígios de uma formação incompleta e um uniforme de garçonete imaculadamente engomado. Arranjei uma vaga em uma pequena cantina italiana chamada Joe’s na Times Square. Três horas depois, no meu primeiro turno, derrubei uma travessa de vitela à parmegiana no paletó de tweed de um freguês e fui dispensada das minhas obrigações. Sabendo que nunca daria

certo como garçonete, deixei meu uniforme — um pouco manchado — com os tamancos combinando em um banheiro público. Minha mãe me dera aquilo, um uniforme branco e tamancos brancos, investindo suas esperanças no meu

bem-estar. Agora pareciam lírios murchos, largados em uma pia branca.

Quanto à nuvem densa de psicodelia da St. Mark’s Place, eu não estava preparada para a revolução em andamento. Havia um clima de paranoia, vago e inquietante, uma correnteza profunda de rumores, fragmentos captados de conversas que antecipavam a futura revolução. Eu simplesmente ficava ali sentada tentando imaginar tudo aquilo, o ar impregnado de fumaça de haxixe, o que talvez explique minhas lembranças oníricas. Fui atravessando, à unha, uma rede espessa de consciência cultural que nem sabia que existia.

Eu antes vivia no mundo dos meus livros, a maioria deles escrita no século xix. Embora estivesse preparada para dormir em bancos, metrôs e cemitérios, até arranjar um emprego, não estava preparada para a fome constante que me consumia. Eu era uma coisinha magricela com um metabolismo acelerado e um grande apetite. O romantismo não conseguia saciar minha necessidade de comida. Até mesmo Baudelaire precisou comer. Suas cartas traziam muitos gritos desesperados de desejo de carne e cerveja.

Eu precisava de um emprego. Fiquei aliviada quando me contrataram como caixa numa filial fora do centro da livraria Brentano. Teria preferido cuidar só da seção de poesia, em vez de encher o caixa vendendo joalheria étnica e artesanato, mas gostava de ficar olhando aquelas bugigangas de países distantes:

braceletes berberes, colares de conchas do Afeganistão, um Buda incrustado de joias. Meu objeto favorito era um singelo colar da Pérsia. Era feito de duas placas de metal esmaltado unidas por pesadas contas negras e prateadas, como um escapulário muito velho e exótico. Custava dezoito dólares, o que parecia ser muito dinheiro. Quando as coisas estavam calmas na loja, eu o tirava da caixa e copiava a caligrafia gravada em sua superfície roxa, e sonhava histórias sobre sua origem.

Pouco depois de começar a trabalhar ali, o menino que eu encontrara rapidamente no Brooklyn entrou na loja. Parecia muito diferente com aquela camisa branca e gravata, como um estudante católico. Explicou que trabalhava na Brentano do centro e tinha um crédito sobrando que estava pensando em usar. Passou muito tempo olhando tudo, as miçangas, as miniaturas, os anéis de turquesa.

Enfim falou: “Eu quero este aqui”. Era o colar persa.

“Oh, também é o meu favorito”, respondi. “Lembra um escapulário.”

“Você é católica?”, ele me perguntou.

“Não, é que eu gosto de coisas católicas.”

“Eu fui coroinha.” Sorriu para mim. “Eu adorava balançar o turíbulo.”

Fiquei feliz por ele ter escolhido minha peça favorita, apesar de triste por vê-la indo embora. Quando a embrulhei e entreguei a ele, eu disse impulsivamente: “Não vá dar isso a nenhuma outra garota além de mim”.

Fiquei instantaneamente constrangida, mas ele apenas sorriu e disse: “Pode deixar”.

Depois que ele saiu, olhei para o lugar vazio onde o colar ficava, sobre um pedaço de veludo preto. Na manhã seguinte uma peça mais sofisticada tomou seu lugar, mas lhe faltava o mistério simples do colar persa.

No fim da minha primeira semana eu estava muito faminta e ainda não tinha aonde ir. Comecei a dormir na loja. Eu me escondia no banheiro quando todo mundo ia embora, e depois que o vigia da noite trancava tudo eu dormia em cima da minha capa. De manhã parecia que eu tinha chegado cedo ao trabalho. Eu não tinha um centavo e vasculhava os bolsos dos empregados em busca de trocados para comprar biscoitos na máquina. Desmoralizada pela fome, fiquei chocada ao descobrir que não havia nenhum envelope para mim no dia do pagamento. Eu não havia entendido que a primeira semana era de experiência, e voltei para o vestiário aos prantos.

Quando voltei ao caixa, reparei que havia um sujeito rondando, observando. Ele usava barba e estava com uma camisa de risca de giz e um daqueles paletós com camurça nos cotovelos. O gerente nos apresentou. Era um escritor de ficção científica e queria me levar para jantar fora. Apesar de eu já estar com vinte anos, as palavras de minha mãe me alertando para não sair com desconhecidos ecoaram na minha cabeça. Mas a perspectiva de jantar me amoleceu, embora ele parecesse mais um ator interpretando um escritor.

Fomos andando até um restaurante no térreo do Empire State Building. Nunca tinha comido num lugar bom em Nova York. Tentei pedir alguma coisa não muito cara e escolhi peixe-espada, 5,95 dólares, o mais barato do cardápio. Ainda lembro do garçom colocando o prato na minha frente com uma bolota de purê de batata e uma posta de peixe além do ponto. Embora eu estivesse faminta, mal consegui sentir o gosto. Estava incomodada e não fazia ideia de como lidar com a situação, ou de por que ele queria comer comigo. Achei que ele estava gastando demais e comecei a me preocupar com o que ele esperaria receber em troca.

Depois de comer fomos andando até o centro. Caminhamos para o leste até o Tompkins Square Park e sentamos em um banco. Eu já estava pensando em frases para escapar dali quando ele sugeriu que subíssemos até seu apartamento para beber alguma coisa. Era isso, pensei, o momento decisivo sobre o qual minha mãe me alertara. Olhei para os lados, desesperada, incapaz de responder, quando vi um rapaz se aproximando. Foi como se um pequeno portal para o futuro se abrisse, e dele saiu o menino do Brooklyn que levara o colar

persa, como uma resposta a uma oração adolescente. Reconheci na hora seu passo ligeiramente cambaio e seus cachos desgrenhados. Estava de macacão e com um colete de pele de ovelha. No pescoço usava colares de miçangas, um pastorzinho hippie. Corri até ele e agarrei seu braço.

“Oi, lembra de mim?”

“Claro”, sorriu.

“Preciso da sua ajuda”, expliquei. “Você pode fingir que é meu namorado?”

“Claro”, ele disse, como se não estivesse surpreso com minha súbita aparição.

Arrastei-o até o autor de ficção científica. “Este aqui é o meu namorado”, disse-lhe ofegante. “Ele estava me procurando. Está louco. Quer que eu vá para casa agora.” O sujeito olhou para nós dois intrigadíssimo.

“Corre”, gritei, e o menino pegou minha mão e saímos correndo, atravessando o parque até o outro lado.

Sem fôlego, desabamos na escada de uma casa. “Obrigada, você salvou a minha vida”, falei. Ele assimilou a informação com uma expressão confusa.

“Eu não me apresentei, meu nome é Patti.”

“Meu nome é Bob.”

“Bob”, eu disse, olhando de fato para ele pela primeira vez. “Acho que você não tem cara de Bob. Tudo bem se eu te chamar de Robert?”

O sol havia se posto sobre a Avenue B. Ele pegou minha mão e vagamos pelo East Village. Me pagou um egg cream no Gem Spa, na esquina da St. Mark’s Place com a Second Avenue. Praticamente só eu falei. Ele simplesmente sorria e escutava. Contei-lhe minhas histórias de infância, as primeiras de muitas: Stephanie, o Canteiro, o salão de quadrilhas do outro lado da rua. Fiquei surpresa de como me senti à vontade e aberta ao lado dele. Mais tarde ele me contou que estava louco de ácido.

Eu só havia lido sobre lsd em um livrinho chamado Collages, de Anaïs Nin. Não sabia que a cultura das drogas estava florescendo no verão de 67. Tinha uma visão romântica das drogas e as considerava algo sagrado, exclusivo de poetas, músicos de jazz e rituais indígenas. Robert não parecia alterado ou estranho como eu talvez imaginasse. Ele irradiava um charme delicado e travesso, tímido e protetor. Passeamos até as duas da manhã e finalmente, quase ao mesmo tempo, descobrimos que nenhum de nós tinha um lugar para ir. Demos risada disso. Mas já era tarde e estávamos cansados.

 

quarta-feira, 27 de abril de 2011

O DIA DA LUA

O segundo episódio. Desta temporada. Dr. Who.

OH, SHUT UP

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O melhor diálogo de The impossible astronaut. Dr. Who.

FODA-SE

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Sala íntima.

AMELIE

12

EU SOU UM HOMEM

Black Strobe

UM ESTUDO EM ESMERALDA

Neil Gaiman

book

1. O Novo Amigo

Recém-chegada de sua Estupenda Turnê Européia, durante a qual se apresentou para várias CABEÇAS COROADAS DA EUROPA, arrancando aplausos e elogios com desempenhos dramáticos magníficos, combinando COMÉDIA e TRAGÉDIA , a Companhia Teatral Strand deseja informar que estará em cartaz no Royal Court Theatre, na Drury Lane, por uma CURTA TEMPORADA em abril, apresentando Meu Irmão Tom, Meu Sósia!, A Pequenina Vendedora de Violetas e Aí Vêm os Gigantes Antigos (este último, um Épico Histórico Cheio de Esplendor e Encanto), cada qual uma peça completa em um ato! Os ingressos já estão disponíveis na Bilheteria.


Acredito que seja a imensidão. O tamanho das coisas lá embaixo. A escuridão dos sonhos.
Mas estou devaneando. Perdoem-me. Não sou um literato.
Eu precisava de hospedagem. Foi assim que o conheci. Eu queria alguém para dividir o aluguel do quarto comigo. Fomos apresentados por um conhecido comum, nos laboratórios químicos de St. Bart's.
- Percebo que esteve no Afeganistão - foi isso que ele me disse, e meu queixo caiu e meus olhos se arregalaram.
- Incrível - comentei.
- Na verdade, não - continuou o estranho de jaleco branco que se tornaria meu amigo. - Olhando para o seu braço, vejo que o senhor foi ferido, e de modo peculiar. O senhor é bem bronzeado e tem postura de militar, e há poucos lugares do Império onde um militar pode se bronzear e também, considerando a natureza do ferimento no seu ombro e os costumes dos povos afegãos das cavernas, ser torturado.
Explicado assim, claro, parecia absurdamente simples e lógico. E realmente era. Eu tinha mesmo um bronzeado jambo. E de fato fora, como ele observou, torturado.
Longe de serem sensatos, os deuses e os homens do Afeganistão eram selvagens e se recusavam a ser governados por Whitehall, Berlim ou até Moscou. Eu fora enviado para aquelas colinas junto com o _º Regimento. Enquanto a luta ficou nas montanhas, combatemos em pé de igualdade, mas, quando descemos para a escuridão das cavernas, ficamos encrencados até o pescoço, em larga desvantagem.
Jamais vou esquecer a superfície espelhada do lago subterrâneo, nem a coisa que emergiu dele, seus olhos abrindo e fechando, e os sussurros melódicos que acompanhavam sua entrada em cena, envolvendo-a como o zumbido de moscas gigantescas.
Que eu tenha sobrevivido foi um milagre, mas sobrevivi, e voltei para a Inglaterra com meus nervos em frangalhos. O lugar onde aquela boca de sanguessuga me tocara ficou tatuado para sempre, uma pele branca feito barriga de sapo, no meu ombro, atualmente atrofiado. Eu já fora um exímio atirador. Agora não me restava nada além do medo do mundo subterrâneo, quase um pânico, que me fazia pagar de bom grado seis pence da minha pensão militar por uma charrete em vez de um penny para viajar de metrô.
Ainda assim, as névoas e a escuridão de Londres me confortavam, me acolhiam. Eu perdera minha moradia anterior porque gritava à noite. Eu estivera no Afeganistão, mas não estava mais lá.
- Eu grito à noite - contei.
- Já me falaram que eu ronco - ele disse. - Também tenho horários irregulares, e costumo praticar a pontaria na lareira. Vou precisar da saleta para receber clientes. Sou egoísta, reservado e me entedio facilmente. Tudo bem para você?
Eu sorri, meneei a cabeça e estendi o braço. Selamos o acordo com um aperto de mão.
Os aposentos que ele encontrara para nós, na Baker Street, eram mais do que suficientes para dois solteirões. Lembrando o que meu amigo dissera sobre ter privacidade, evitei perguntar qual era a sua profissão. No entanto, muito havia para me instigar a curiosidade. Visitantes chegavam a qualquer hora, e então eu saía da saleta e me recolhia ao meu dormitório, perguntando-me o que eles poderiam ter em comum com meu amigo: a mulher pálida com um olho esbranquiçado, o homenzinho que parecia um caixeiro-viajante, o dândi corpulento de paletó de veludo, e o resto deles. Alguns faziam visitas freqüentes, vários outros só vinham uma vez, falavam com ele e iam embora, ora preocupados, ora satisfeitos.
Ele era um mistério para mim.
Certa manhã, quando estávamos nos fartando com um magnífico café-da-manhã servido pela proprietária, meu amigo tocou a sineta para chamar aquela boa mulher.
- Um cavalheiro se juntará a nós em aproximadamente quatro minutos - anunciou ele. - Vamos precisar de mais um lugar à mesa.
- Muito bem - ela disse -, vou pôr mais salsichas na grelha.
Meu amigo voltou a ler o seu jornal. Esperei impacientemente por uma explicação, até que não agüentei mais.
- Não entendo. Como pode saber que daqui a quatro minutos receberemos uma visita? Não houve nenhum telegrama nem mensagem.
Ele sorriu discretamente.
- Não ouviu o barulho de uma carruagem há alguns minutos? Ela diminuiu a velocidade ao passar por aqui. Obviamente, o condutor identificou nossa porta, depois acelerou e seguiu rumo a Marylebone Road. Há um congestionamento de carruagens e táxis deixando passageiros na estação de trem e no museu de cera, e é para lá que iria alguém que quisesse desembarcar sem ser notado. A caminhada até aqui leva apenas quatro minutos...
No instante em que ele olhou para o relógio de bolso, soaram passos na escada lá fora.
- Entre, Lestrade - gritou. - A porta está aberta, e suas salsichas já estão saindo da grelha.
Um homem, que deduzi ser Lestrade, abriu a porta, entrou e fechou-a cuidadosamente.
- Eu não deveria - ele disse. - Mas, para dizer a verdade, não tive oportunidade de fazer meu desjejum esta manhã. E certamente não poderia desperdiçar essas salsichas.
Ele era o homenzinho que eu observara em várias ocasiões, que tinha a fisionomia de um vendedor de bugigangas de borracha ou de elixires milagrosos.
Meu amigo esperou até que a proprietária se retirasse antes de dizer:
- Obviamente, presumo que seja um assunto de interesse nacional.
- Pelos céus! - exclamou Lestrade, e empalideceu. - Não é possível que a notícia já tenha se espalhado. Diga que não é verdade. - Ele começou a encher seu prato com salsichas, filés de salmão, kedgeere [N. E.: Prato típico da Índia, preparado com arroz, peixe e ovos] e torradas, mas suas mãos tremiam um pouco.
- Claro que não - respondeu meu amigo. - Acontece que, depois de tanto tempo, eu já reconheço o ranger das rodas de sua carruagem: um sol sustenido oscilante modulando um dó alto. E se o inspetor Lestrade, da Scotland Yard, não pode ser visto entrando na sala do único consultor investigativo de Londres, e ainda assim ele entra, e antes de tomar o café, então sei que o caso não é de rotina. Logo, deve envolver aqueles que estão acima de nós e ser um assunto de interesse nacional.
Lestrade limpou a gema de ovo do queixo com o guardanapo. Olhei para ele. Não se parecia com a imagem que eu fazia de um inspetor de polícia - mas até aí, meu amigo tampouco se parecia com a imagem que eu tinha de um consultor investigativo, seja lá o que fosse isso.
- Talvez devêssemos discutir o assunto em particular - disse Lestrade, olhando para mim.
Meu amigo deu um sorrisinho maldoso e balançou a cabeça como sempre fazia quando estava se deleitando com alguma brincadeira secreta:
- Bobagem. Duas cabeças pensam melhor do que uma. E o que é dito para um de nós dois é dito para ambos.
- Se eu estiver atrapalhando... - comecei, emburrado, mas ele acenou para que eu ficasse quieto.
Lestrade deu de ombros.
- Para mim, dá no mesmo - comentou, depois de um momento. - Se você resolver o caso, continuarei empregado. Caso contrário, estarei na rua. Só lhe peço que use seus métodos, porque as coisas não poderiam estar piores do que já estão.
- Se há algo que podemos aprender com a história, é que as coisas sempre podem piorar - disse meu amigo. - Quando iremos para Shoreditch?
Lestrade deixou cair o garfo.
- Assim não dá! - exclamou. - Você fica aí zombando de mim, quando já sabe tudo sobre o caso! Deveria se envergonhar...
- Ninguém me contou nada sobre o caso. Quando um inspetor da polícia entra em minha sala com barro amarelo-mostarda fresco em suas botas e calças, certamente posso ser perdoado por presumir que ele passou recentemente pelas escavações da Hobbs Lane, em Shoreditch, que é o único lugar de Londres, aparentemente, onde se pode encontrar barro dessa cor.
O inspetor Lestrade disse, constrangido:
- Agora que você explicou, parece tão óbvio.
Meu amigo afastou o seu prato.
- Claro que parece - replicou, com certa irritação.
Eu e meu amigo pegamos um táxi para o East End, enquanto o inspetor Lestrade foi procurar sua carruagem na Marylebone Road, deixando-nos a sós.
- Então você é realmente um consultor investigativo?
- O único em Londres, ou talvez no mundo - respondeu ele. - Eu não aceito casos, apenas faço consultas. As pessoas me contam seus problemas insolúveis com detalhes, e às vezes eu os resolvo.
- Então aquelas pessoas que procuram você...
- São, na maioria, policiais ou mesmo detetives, sim.
Naquela bela manhã, sacolejávamos nos arredores do cortiço de St. Giles, um covil de ladrões e assassinos que assola Londres como um cancro no rosto de uma bela florista. A luz que entrava na cabine era fraca e pálida.
- Tem certeza de que quer que eu o acompanhe?
Em resposta, meu amigo me olhou sem piscar:
- Tenho a sensação de que nos conhecemos por algum motivo. Que já lutamos o bom combate, lado a lado, no passado ou no futuro, não sei. Sou um homem racional, mas aprendi a dar valor a um bom companheiro e, desde que o vi, percebi que confiava em você tanto quanto confio em mim mesmo. Sim, quero que me acompanhe.
Fiquei vermelho, ou falei algo sem sentido. Pela primeira vez desde o Afeganistão, senti que eu tinha valor no mundo.


2. O Quarto


Vitae, de Victor! Um fluido energético! Seus membros e regiões inferiores estão sem vida? Você suspira pelos dias de sua juventude? Os prazeres da carne já estão enterrados e esquecidos?Vitae, de Victor, levará vida para onde ela há muito se perdeu: até o mais velho animal de carga pode voltar a ser um altivo garanhão! Levando Vida aos Mortos: a união de uma velha receita familiar com o melhor da ciência moderna. Para receber testemunhos assinados da eficácia deVitae , de Victor, escreva para a V. von F. Company, Cheap Street, 1b, Londres.

Era uma hospedaria barata em Shoreditch. Havia um policial na entrada. Lestrade o cumprimentou chamando-o pelo nome, acenou para que entrássemos, e eu já ia entrar, mas meu amigo se agachou na soleira e tirou uma lupa do bolso do casaco. Ele examinou a lama no ferro de limpar solas, cutucando-a com o indicador. Só quando se deu por satisfeito nos deixou entrar.
Subimos as escadas. O quarto onde o crime fora cometido era óbvio: dois policiais corpulentos guardavam a porta.
Lestrade acenou para os homens e eles abriram caminho. Entramos.
Não sou, como já disse, um escritor profissional, e hesito em descrever aquele lugar, sabendo que minhas palavras não são suficientes para tal. No entanto, já comecei esta narrativa, e receio que seja preciso continuar. Um assassinato fora cometido no pequeno dormitório. O cadáver, ou o que restava dele, ainda estava lá, no chão. Eu o vi, mas a princípio, de alguma forma, não o vi. O que mais me chamou a atenção foi o que esguichara da garganta e do peito da vítima: a cor ia do verde-bílis ao verde-musgo. Tinha penetrado no carpete surrado e espirrado no papel de parede. Imaginei por um momento que fosse obra de algum artista pirado que tivesse decidido criar um estudo em esmeralda.
Depois do que pareceram cem anos, baixei os olhos para o corpo, aberto como um coelho sobre a bancada de um açougueiro, e tentei entender o que via. Tirei o chapéu, e meu amigo fez o mesmo.
Ele se ajoelhou e inspecionou o corpo, examinando os cortes e as lacerações. Depois, puxou sua lupa e foi até a parede examinar as manchas de linfa.
- Já fizemos isso - disse o inspetor Lestrade.
- É mesmo? - retrucou meu amigo. - O que acha disto, então? Creio que é uma palavra.
Lestrade foi até o lugar onde meu amigo estava e olhou para cima. Havia uma palavra, escrita em maiúsculas, em sangue verde, no papel de parede amarelado, pouco acima da cabeça de Lestrade.
- R-A-C-H-E...? - soletrou Lestrade, letra por letra. - Obviamente, ele queria escrever "Rachel", mas foi interrompido. Portanto, precisamos procurar uma mulher...
Meu amigo nada disse. Ele voltou para perto do cadáver e levantou-lhe as mãos, uma após a outra. Os dedos não estavam manchados de linfa.
- Acho que já determinamos que a palavra não foi escrita por Sua Alteza Real...
- Por que diabos diz que...?
- Meu caro Lestrade. Por favor, dê-me algum crédito por ter um cérebro. O cadáver, obviamente, não é de um homem: a cor do sangue, o número de membros, os olhos, a posição do rosto, todas essas coisas denunciam o sangue real. Embora eu não saiba precisar à qual linhagem ele pertença, arriscaria dizer que se trata de um herdeiro, talvez... não, segundo na linha de sucessão ao trono... de um dos principados germânicos.
- Impressionante. - Lestrade hesitou, depois continuou: - Este é o príncipe Franz Drago, da Boêmia. Estava aqui em Albion como convidado de Sua Majestade Vitória. Veio passar férias e mudar de ares...
- Visitar os teatros, as meretrizes e as mesas de jogo, você quer dizer.
- Se você diz. - Lestrade parecia irritado. - De qualquer forma, você nos deu uma ótima pista com essa tal de Rachel. Ainda que eu não duvide de que a teríamos encontrado por nossa conta.
- Sem dúvida - observou meu amigo.
Ele inspecionou o quarto mais um pouco, várias vezes comentando, irritado, que a polícia, com suas botas, apagara pegadas e mexera em coisas que poderiam ter sido úteis para quem quisesse reconstituir os fatos da noite anterior.
Mesmo assim, interessou-se por um pequeno torrão de lama que achou atrás da porta.
Ao lado da lareira, ele encontrou o que pareciam ser cinzas ou poeira.
- Viu isto? - perguntou a Lestrade.
- A polícia de Sua Majestade - replicou Lestrade -, não costuma se entusiasmar com cinzas numa lareira. É ali que elas costumam ficar. - E deu uma risadinha.
Meu amigo pegou uma pitada das cinzas e a esfregou entre os dedos, cheirando-a em seguida. Finalmente, coletou o que restava do material e o introduziu numa ampola de vidro, tampando-a e guardando-a num bolso interno do casaco.
Ele se levantou:
- E o corpo?
- O palácio vai mandar seu próprio pessoal - respondeu Lestrade.
Quando estávamos indo em direção à porta, após meu amigo ter feito sinal para sairmos, ele suspirou:
- Inspetor. Sua busca pela senhorita Rachel pode provar-se infrutífera. Entre outras coisas, Racheé uma palavra alemã. Significa "vingança". Consulte o dicionário. Tem outros significados.
Chegamos ao pé da escada e saímos para a rua.
- Você nunca tinha visto a realeza antes, certo? - ele perguntou. Balancei a cabeça. - É, quando não se está preparado, pode ser uma visão perturbadora. Ora, meu bom amigo, você está tremendo!
- Não se preocupe, logo vou melhorar.
- Será que caminhar lhe faria bem?
Eu fiz que sim, certo de que, se não caminhasse, começaria a gritar.
- Para o oeste, então - anunciou meu amigo, apontando para a escura torre do palácio. E começamos a andar.
- Quer dizer - continuou, depois de algum tempo - que você nunca teve um encontro pessoal com nenhuma das cabeças coroadas da Europa?
- Não.
- Mas acredito que você terá - ele me disse. - E, dessa vez, não com um cadáver. Muito em breve.
- Meu caro amigo, por que acredita...?
Em resposta, ele apontou para uma carruagem, pintada de preto, que parara uns 50 metros à nossa frente. Um homem de cartola preta e casacão estava de pé à porta, segurando-a aberta, esperando, em silêncio. Um brasão familiar para qualquer criança de Albion, em ouro, adornava a carruagem.
- Há convites que não se recusam - observou meu amigo. Ele tirou o chapéu para o lacaio, e acredito que estava sorrindo ao entrar na pequena cabine e relaxar sobre o estofamento macio.
Quando tentei falar durante o trajeto até o palácio, ele pôs um dedo sobre os lábios. Depois fechou os olhos e pareceu imerso em pensamentos.
De minha parte, tentei lembrar o que sabia sobre a realeza alemã, mas, além do fato de o consorte da Rainha, o príncipe Albert, ser alemão, eu sabia bem pouco.
Enfiei a mão no bolso, tirei um punhado de moedas - marrons e prateadas, pretas e de cobre esverdeado. Fitei a imagem da nossa Rainha gravada em cada uma delas, e senti ao mesmo tempo orgulho patriótico e terror absoluto. Disse a mim mesmo que eu já fora um militar que desconhecia o medo, e consegui me lembrar de quando isso era a mais pura verdade. Por um momento, recordei uma época em que fora exímio atirador - até, eu gostava de pensar, um perito no assunto -, mas minha mão direita tremeu como seu eu fosse parkinsoniano, as moedas chocalharam, e senti apenas arrependimento.

3. O Palácio

E agora, o Doutor Henry Jekyll orgulhosamente anuncia o lançamento dos mundialmente renomados "Pós de Jekyll" para consumo popular. Não mais um privilégio para poucos. Liberte o seu Eu Interior! Para Limpeza Interna e Externa! PESSOAS DEMAIS , homens e mulheres, sofrem de CONSTIPAÇÃO DA ALMA! O alívio é imediato e barato com os Pós de Jekyll! (Disponíveis nos Sabores Baunilha e Menta.)

O consorte real, príncipe Albert, um homenzarrão calvo com um bigode curvo impressionante, era inegável e completamente humano. Ele nos encontrou no corredor, cumprimentou meu amigo e a mim com a cabeça, não perguntou nossos nomes nem nos estendeu a mão.
- A Rainha está muito nervosa - ele disse, com sotaque. Carregava nos erres: rrainha, nerrvosa. - Franz era um de seus favoritos. Ela tem tantos sobrinhos, mas ele a fazia rir muito. Vocês precisam descobrir quem fez isso com ele.
- Farei o impossível - enfatizou meu amigo.
- Li suas monografias - contou o príncipe Albert. - Fui eu quem sugeriu que consultassem você. Espero ter feito a coisa certa.
- Também espero - disse meu amigo.
E então a grande porta se abriu, e fomos levados à escuridão e à presença da Rainha.
Ela era chamada de Vitória porque nos derrotara em combate, 700 anos antes, era chamada de Gloriana porque era gloriosa e era chamada de Rainha porque a boca humana não conseguia dizer seu verdadeiro nome. Era enorme, mais imensa do que eu poderia imaginar, e estava agachada nas sombras, olhando-nos de cima, sem se mover.
Izsszo prezcisa zser rezsolvido. As palavras vinham das sombras.
- De fato, senhora - disse meu amigo.
Um membro se retorceu e apontou para mim. Um pazsso adiante. Eu queria andar, mas minhas pernas não se moviam.
Meu amigo acorreu em minha ajuda, então. Pegou-me pelo cotovelo e me levou até Sua Majestade.
Não rezcear. Mozstrar valor. Zser companheiro. Foi isso que ela me disse. Sua voz era um contralto muito doce, com um zumbido distante. Então o membro se desenrolou e se estendeu, e ela tocou meu ombro. Houve um momento, mas só um momento, da dor mais lancinante e profunda que já senti, e em seguida ela foi substituída por uma penetrante sensação de bem-estar. Eu podia sentir os músculos do meu ombro relaxando, e, pela primeira vez desde o Afeganistão, fiquei livre da dor.
Então meu amigo se adiantou. Vitória falou com ele, mas eu não ouvia as palavras dela. Perguntei-me se estariam indo, de alguma maneira, diretamente da sua mente para a dele, se esse seria o Colóquio Real sobre o qual lera nas histórias. Ele respondeu em voz alta.
- Certamente, senhora. Posso dizer que havia dois outros homens com seu sobrinho naquele quarto em Shoreditch, naquela noite. Embora apagadas, as pegadas eram inconfundíveis. - E depois: - Sim. Entendo... acredito que sim... Sim.
Ele estava calado quando saímos do palácio, e não me disse nada no trajeto de volta a Baker Street.
Já estava escuro. Eu não sabia quanto tempo havíamos passado lá.
Dedos de uma neblina quase negra trançavam-se entre a estrada e o céu.
Quando voltamos para a Baker Street, no espelho do quarto, observei que a pele esbranquiçada do meu ombro havia adquirido um tom rosado. Torci para que não fosse minha imaginação ou o efeito do luar através da janela.


4. A Apresentação

DORES HEPÁTICAS? AZIA? PERTURBAÇÕES NEURASTÊNICAS? AMIGDALITE? ARTRITE? Esses são só alguns dos males para os quais uma sangria profissional pode ser o remédio. Em nossos escritórios, temos pilhas de TESTEMUNHOS que podem ser inspecionados pelo público a qualquer momento. Não ponha sua saúde nas mãos de amadores!! Nós fazemos isso há muito tempo: V. TEPES - SANGRADOR PROFISSIONAL. (Lembre-se! A pronúncia é Tzseppesh!) Romênia, Paris, Londres, Whitby. Você já experimentou de tudo - AGORA EXPERIMENTE O MELHOR!!


Que meu amigo fosse um mestre do disfarce, não deveria ser surpresa, mas o que eu via ali era inacreditável. Nos dez dias seguintes, uma estranha variedade de personagens adentrou nossa porta em Baker Street - um ancião chinês, um jovem dissoluto, uma mulher gorda e ruiva sobre cuja ocupação anterior restava pouca dúvida, e um venerável negociador que trazia uma enorme gota num pé inchado e enfaixado. Cada um deles entrava no quarto do meu amigo e, com uma rapidez de dar inveja a um ilusionista, ele saía em seguida.
Ele não comentava o que havia feito nessas ocasiões, preferindo relaxar, olhar para o nada, ocasionalmente fazendo anotações no primeiro pedaço de papel que encontrava, anotações que eu achava, francamente, incompreensíveis. Ele parecia completamente absorto, tanto que cheguei a me preocupar com seu bem-estar. E então, num fim de tarde, apareceu vestindo suas próprias roupas, com um sorriso aberto no rosto, e perguntou se eu me interessava por teatro.
- Como a maioria das pessoas - respondi.
- Então pegue seu binóculo - ele disse. - Vamos para a Drury Lane.
Eu estava esperando uma opereta ou algo do gênero, mas em vez disso me vi no que devia ser o pior teatro da Drury Lane, embora ostentasse o nome da corte - e, para ser sincero, nem bem ficava na Drury Lane, e sim na extremidade que dá para a Shaftesbury Avenue, quase no cortiço de St. Giles.
Seguindo o conselho do meu amigo, escondi minha carteira e, a exemplo dele, levei comigo uma bengala robusta.
Quando nos sentamos no camarote (eu havia comprado por três pence uma laranja de uma das jovens adoráveis que as vendiam na platéia, e a chupava enquanto aguardávamos), meu amigo disse baixinho:
- Considere-se afortunado por não ter precisado me acompanhar aos covis de jogatina ou aos bordéis. Ou aos manicômios, lugares que o príncipe Franz também se deliciava em visitar, conforme apurei. Mas ele não visitou nenhum deles mais de uma vez. Nenhum, a não ser...
A orquestra atacou e o pano subiu. Meu amigo se calou.
Foi uma apresentação bastante boa, à sua maneira: três peças de um ato foram encenadas. Canções cômicas eram interpretadas entre os atos. O ator principal era alto, lânguido e cantava bem. A atriz principal era elegante e sua voz enchia o teatro. O comediante se saía bem nas canções mais ligeiras.
A primeira peça era uma comédia indecorosa de identidades trocadas: o ator principal interpretou gêmeos idênticos que jamais haviam se encontrado, mas conseguiram, por meio de uma série de cômicas desventuras, ficar noivos da mesma jovem - a qual, hilariamente, pensava ser noiva de um só. Portas se abriam e fechavam quando o ator mudava de identidade.
A segunda peça era a pungente história de uma órfã que passava fome na neve vendendo violetas de estufa - sua avó a reconheceu no final, e jurou que ela era o bebê levado dez anos antes por bandidos, mas já era tarde, e o anjinho, quase congelando, deu seu último suspiro. Devo confessar que mais de uma vez enxuguei os olhos com meu lenço de linho.
A apresentação terminou com uma instigante narrativa épica: toda a companhia interpretou os homens e as mulheres de uma aldeia litorânea, 700 anos antes de nossos tempos modernos. Eles viram vultos saindo do mar, ao longe. O herói anunciou com alegria aos aldeões que aqueles eram os Gigantes Antigos cuja chegada fora prevista, voltando a nós de R'lyeh, da sombria Carcosa e das planícies de Leng, onde eles dormiam, ou esperavam, ou passavam o tempo após sua morte. O comediante opinou que os outros aldeões haviam comido torta e bebido cerveja demais, e estavam imaginando aqueles vultos. Um cavalheiro corpulento, interpretando um sacerdote do Deus romano, disse aos aldeões que os vultos no mar eram monstros e demônios, e deviam ser destruídos.
No auge da peça, o herói matou o sacerdote com golpes da sua própria cruz e se preparou para dar as boas-vindas a Eles em Sua chegada. A heroína entoou uma ária fantasmagórica e, num assombroso uso de lanternas mágicas, parecia que estávamos vendo Suas sombras no céu do fundo do palco: a própria Rainha de Albion e o Ser Negro do Egito (quase na forma de um homem), seguidos pelo Bode Antigo, Pai de Mil Filhos, Imperador de toda a China, pelo Czar Irrefutável, por Aquele Que Preside o Novo Mundo, pela Dama Branca dos Rincões Antárticos e pelos outros. E quando cada sombra cruzava o palco, ou parecia cruzar, de cada garganta nas tribunas saía, espontaneamente, um vigoroso "Viva!", até que o próprio ar parecia vibrar. A lua surgiu no céu pintado, e então, no ápice de sua trajetória, num derradeiro momento de magia teatral, o amarelo pálido das narrativas antigas foi substituído pelo reconfortante escarlate do luar que brilha sobre nós todos hoje em dia.
O elenco deu as mãos e se curvou enquanto o pano caía e subia diante dos aplausos e das risadas do público. O pano caiu uma última vez, e a apresentação terminou.
- Pronto - disse meu amigo. - O que você achou?
- Muito bom, muito bom mesmo - respondi, com as mãos doendo de tanto aplaudir.
- Bravo, amigo - ele disse sorrindo. - Vamos para os bastidores.
Saímos e enveredamos por um beco ao lado do teatro, rumo à entrada de serviço, onde uma mulher magra com um cisto na bochecha tricotava furiosamente. Meu amigo mostrou-lhe um cartão de visitas, e ela nos acompanhou para dentro do prédio até uma escada que levava a um pequeno camarim.
Lanternas a óleo e velas escorriam diante de espelhos ensebados, e homens e mulheres tiravam a maquiagem e as roupas sem aparentar nenhum pudor. Desviei o olhar. Meu amigo parecia imperturbável.
- Posso falar com o senhor Vernet? - perguntou em voz alta.
Uma jovem que interpretara a melhor amiga da heroína na primeira peça, e a provocante filha do dono da estalagem na última, apontou o fundo da sala.
- Sherry! Sherry Vernet! - ela gritou.
O jovem que se levantou em resposta era magro, de beleza menos convencional do que parecera do outro lado da ribalta. Ele olhou para nós, intrigado.
- Acho que não tive o prazer...?
- Meu nome é Henry Camberley. - Meu amigo se apresentou arrastando um pouco a fala. - Talvez tenha ouvido falar de mim.
- Confesso que não tive esse privilégio - disse Vernet.
Meu amigo entregou ao ator um cartão de visitas.
O homem olhou para o cartão com sincero interesse:
- Um produtor de teatro? Do Novo Mundo? Ora, ora. E este é...? - Ele sorriu para mim.
- Um amigo meu, o Sr. Sebastian. Ele não é do métier.
Balbuciei algo sobre ter apreciado imensamente a apresentação e apertei a mão do ator.
Meu amigo perguntou:
- Já visitou o Novo Mundo?
- Ainda não tive essa honra - admitiu Vernet -, embora sempre tenha sido meu maior desejo.
- Bem, meu bom homem - disse meu amigo, com a informalidade de um cidadão do Novo Mundo -, talvez seu desejo se realize. Essa última peça... nunca vi nada parecido. Você mesmo a escreveu?
- Infelizmente, não. O autor é um grande amigo meu. Mas eu criei o mecanismo das lanternas mágicas que produz o truque das sombras. Não existe nada melhor nos palcos, hoje em dia.
- Poderia me dizer o nome do autor? Talvez eu devesse falar diretamente com esse seu amigo.
Vernet balançou a cabeça:
- Temo que não seja possível. Ele tem outra profissão, e não quer que sua ligação com o mundo artístico venha a público.
- Entendo. - Meu amigo tirou um cachimbo do bolso e o pôs na boca. Depois apalpou os bolsos. - Perdão. Esqueci de trazer meu porta-tabaco.
- O que eu fumo é preto, bem forte - apressou-se em dizer o ator -, mas se o senhor não se incomodar...
- Absolutamente! Ora, o meu também é forte. - Encheu o cachimbo com o tabaco do ator e os dois começaram a soltar baforadas, enquanto meu amigo descrevia a sua visão de uma peça que poderia excursionar pelas cidades do Novo Mundo, da ilha de Manhattan até a ponta do continente, no sul distante. O primeiro ato seria a última apresentação que vimos. O resto da peça poderia, talvez, narrar o domínio dos Gigantes Antigos sobre a humanidade e seus deuses, mostrando o que poderia ter acontecido se a humanidade não tivesse Famílias Reais para lhe servir de inspiração - um mundo de barbárie e trevas.
- Mas o seu misterioso amigo seria o autor da peça, e o que aconteceria só ele poderia decidir - exclamou meu amigo. - Nosso drama seria escrito por ele. Mas posso lhe garantir mais público do que imagina, e uma parte significativa dos proventos da bilheteria: 50 por cento, digamos!
- Isso é muito interessante - comentou Vernet. - Espero que não se revele uma viagem de ópio!
- Não, senhor. Afinal, isto é apenas tabaco, não? - disse meu amigo, puxando mais uma baforada e rindo da brincadeira. - Vá aos meus aposentos na Baker Street amanhã de manhã, após o desjejum, às dez, digamos, com seu amigo, o autor, e eu estarei esperando com os contratos prontos.
Com isso, o ator subiu em sua cadeira e bateu palmas, pedindo silêncio.
- Senhoras e senhores da companhia, tenho um comunicado a fazer - anunciou ele, preenchendo a sala com sua voz forte. - Este cavalheiro é Henry Camberley, o produtor teatral. Ele acaba de propor que cruzemos o Oceano Atlântico, rumo à fama e à fortuna.
Houve vários gritos de entusiasmo, e o comediante continuou:
- Bem, é melhor do que comer arenque com repolho em conserva - e toda a companhia riu.
E foi diante de todos aqueles sorrisos que saímos do teatro para a neblina das ruas.
- Meu caro amigo - eu disse. - O que você...
- Nem mais uma palavra - ordenou. - Esta cidade tem muitos ouvidos.
E nem mais uma palavra foi dita até que paramos um táxi, entramos nele e começamos a sacolejar pela Charing Cross Road.
Antes de dizer qualquer coisa, meu amigo tirou o cachimbo da boca e esvaziou seu conteúdo semi-incinerado numa latinha, que, depois de fechada, foi colocada em seu bolso.
- Pronto. Já achamos o Homem Alto, ou vou vender frutas na barraca da esquina. Agora só precisamos torcer para que a ganância e a curiosidade do Médico Manco sejam suficientes para trazê-lo até nós amanhã de manhã.
- O Médico Manco?
Meu amigo riu.
- É assim que eu o chamo. Era óbvio, pelas pegadas e por muitas outras pistas deixadas na cena do crime, que dois homens estiveram no quarto naquela noite: um deles alto, o qual, a menos que eu esteja enganado, acabamos de conhecer, e outro mais baixo e manco, que estripou o príncipe com tal habilidade que nos deixa clara a profissão médica.
- Um médico?
- De fato. Detesto dizer isso, mas sei por experiência própria que, quando um médico se dedica ao mal, torna-se uma criatura mais hedionda e macabra do que o pior degolador. Tivemos Huston, o homem do banho de ácido, e Campbell, que levou o leito de Procusto a Ealing... - e ele continuou a enumerar casos durante o resto do trajeto.
O táxi parou ao lado da calçada.
- Um shilling e dez pence - informou o condutor.
Meu amigo lhe atirou um florim, que ele apanhou e jogou em seu velho chapelão.
- Muito obrigado aos dois - ele disse, deixando o cavalo se afastar na neblina.
Fomos até a nossa porta. Enquanto eu a destrancava, meu amigo comentou:
- Estranho. Nosso condutor não parou para aquele sujeito na esquina.
- Eles fazem isso no final dos turnos - expliquei.
- Fazem mesmo - concordou meu amigo.
Sonhei com sombras naquela noite, sombras imensas que encobriam o sol, e gritei para elas em desespero, mas elas não me ouviram.


5. A Casca e o Caroço

Este ano, comece a Primavera com o pé direito! JACK'S Botas, Sapatos e Borzeguins. Não gaste as solas por aí! Saltos são a nossa especialidade. JACK'S. E não se esqueça de visitar nosso novo bazar de roupas e acessórios no East End - onde encontrará trajes de gala de todo tipo, chapéus, bibelôs, bengalas, lâminas etc. JACK'S, DE PICCADILLY. Tudo na primavera!


O inspetor Lestrade foi o primeiro a chegar.
- Posicionou seus homens na rua? - perguntou o meu amigo.
- Sim - respondeu Lestrade. - Com ordens expressas para deixar passar quem quiser entrar, mas prender qualquer um que tente sair.
- E trouxe as algemas?
Em resposta, Lestrade enfiou a mão no bolso e, sombriamente, exibiu dois pares de algemas.
- Agora, senhor - ele disse -, enquanto ninguém chega, por que não me conta o que estamos esperando?
Meu amigo tirou o cachimbo do bolso. Ele não o levou à boca: pousou-o na mesa diante de si. Depois, pegou a latinha da noite anterior e uma ampola de vidro que reconheci como aquela que ele usara no quarto em Shoreditch.
- Pronto - anunciou ele. - O último prego, acredito, no caixão do nosso Mestre Vernet - e fez uma pausa. Em seguida, sacou seu relógio de bolso e o colocou cuidadosamente sobre a mesa. - Temos alguns minutos antes que eles apareçam. - Ele se dirigiu a mim. - O que você sabe sobre os restauracionistas?
- Absolutamente nada - respondi.
Lestrade tossiu:
- Se está falando do que estou pensando, talvez seja melhor parar por aí. Tudo tem limite.
- Tarde demais - observou meu amigo -, porque existem aqueles que não acham que a chegada dos Antigos tenha sido algo bom, como todos sabemos que foi. Anarquistas, todos eles, que gostariam de restaurar o sistema antigo: a humanidade controlando o seu próprio destino, se preferir.
- Recuso-me a ouvir esse discurso subversivo - retrucou Lestrade. - Devo avisá-lo...
- Devo avisá-lo que está reagindo como um imbecil - completou meu amigo -, porque foram os restauracionistas que mataram o príncipe Franz Drago. Eles assassinam, matam, numa tentativa vã de forçar nossos governantes a nos deixar sozinhos nas trevas. O príncipe foi morto por umrache, termo arcaico para cão de caça, inspetor, como o senhor saberia se tivesse consultado um dicionário. Também significa "vingança". E o caçador deixou sua assinatura no papel de parede no local do crime, como um artista que assina uma tela. Mas não foi ele que matou o príncipe.
- O Médico Manco! - exclamei.
- Muito bem. Havia um homem alto ali naquela noite. Presumi sua estatura pela altura em que a palavra fora escrita. Ele fumava cachimbo: as cinzas estavam na lareira, e ele batera o cachimbo com facilidade na moldura da lareira, algo que um homem mais baixo não faria. O tabaco era uma mistura incomum de diversos fumos. As pegadas no quarto haviam sido quase todas apagadas pelos seus homens, inspetor, mas várias delas ainda eram visíveis atrás da porta e perto da janela. Alguém esperara ali: pela passada, um homem mais baixo que apoiava seu peso na perna direita. Fora da casa, achei muitas pegadas visíveis, e as diferentes cores da argila no raspa-botas me deram mais informações: um homem alto, que acompanhara o príncipe até aquele quarto e que mais tarde saíra dele. Esperando pelos dois estava o homem que retalhou o príncipe de forma tão impressionante...
Lestrade produziu um grunhido de desconforto que não chegou a se tornar uma palavra.
- Passei vários dias refazendo o trajeto de Sua Alteza. Fui de covis de jogatina a bordéis, tavernas e manicômios buscando o homem de cachimbo e seu amigo. Não fiz nenhum progresso até que pensei em consultar os jornais da Boêmia, procurando pistas das atividades recentes do príncipe por lá, e neles li que uma companhia teatral inglesa estivera em Praga mês passado, apresentando-se para o príncipe Franz Drago...
- Bom Deus - eu disse. - Então aquele tal de Sherry Vernet...
- É um restauracionista. Exatamente.
Eu balançava a cabeça, maravilhado com a inteligência e a capacidade de observação do meu amigo, quando alguém bateu na porta.
- Deve ser nossa presa! - alertou ele. - Cuidado agora!
Lestrade afundou a mão no bolso, onde eu não tinha dúvida de que carregava uma pistola. Ele engoliu seco.
Meu amigo disse em voz alta:
- Por favor, entre!
A porta se abriu.
Não era Vernet, tampouco o Médico Manco. Era um dos jovens árabes que viviam nas ruas, cujo ganha-pão era fazer entregas - "funcionários da calçada", como dizíamos na juventude.
- Por favor, senhores - ele disse -, há um senhor Henry Camberley aqui? Pediram-me que eu lhe entregasse este bilhete.
- Sou eu - respondeu meu amigo. - E, por seis pence, o que pode me contar sobre o cavalheiro que lhe deu o bilhete?
O rapaz, que se apresentou como Wiggins, mordeu a moeda antes de fazê-la desaparecer, e revelou que o tipo alegre que lhe dera o bilhete era alto, tinha cabelo preto e, acrescentou, fumava cachimbo.
Tenho o bilhete aqui, e tomo a liberdade de transcrevê-lo.
Caro senhor,
Não vou chamá-lo de Henry Camberley, pois esse é um nome ao qual o senhor não tem direito. Estou surpreso que não tenha se apresentado com o verdadeiro, pois é um bom nome, que lhe dá crédito. Li vários de seus textos, sempre que pude obtê-los. De fato, troquei proveitosa correspondência com o senhor há dois anos sobre certas anomalias teóricas em seu ensaio sobre a Dinâmica de um Asteróide.
Diverti-me ao conhecê-lo noite passada. Algumas sugestões que podem lhe poupar futuros aborrecimentos na profissão que o senhor exerce no momento: primeiro, alguém que fuma cachimbo pode até tirar um cachimbo novo em folha, sem uso, do bolso, e não carregar um porta-tabaco, mas isso é improvável demais - no mínimo, tão improvável quanto um produtor de teatro que não faz idéia das formas habituais de pagamento numa turnê, acompanhado por um taciturno ex-oficial do Exército (Afeganistão, a menos que eu esteja enganado). A propósito: embora tenha razão ao afirmar que as ruas de Londres têm ouvidos, lembre-se, no futuro, de não tomar o primeiro táxi que aparecer. Condutores também têm ouvidos, quando decidem usá-los.
Mas o senhor está correto em uma de suas suposições: fui realmente eu que
atraí a criatura bastarda ao quarto de Shoreditch.
Se isso lhe serve de consolo, depois de me familiarizar um pouco com os passatempos prediletos daquele ser, eu disse que lhe forneceria uma jovem, raptada de um convento na Cornualha, no qual ela jamais vira um homem, e que bastaria um toque dele, e a visão do seu rosto, para levá-la à mais completa loucura.
Se a tal jovem existisse, ele teria sorvido sua loucura ao possuí-la, como um homem que suga a polpa de um pêssego maduro, deixando apenas a casca e o caroço. Já vi a laia dele fazendo isso. Já os vi fazendo coisas bem piores. E esse não é o preço que pagamos pela paz e prosperidade. É um preço alto demais.
O bom doutor - que acredita nos mesmos ideais que eu e que de fato escreveu nossa singela apresentação, pois tem algum dom para o teatro - estava à nossa espera, com suas lâminas.
Eu lhe envio este bilhete não como provocação, como um "agarra-me se puderes", porque já estamos longe, o estimado doutor e eu, e o senhor não nos encontrará, mas sim para lhe dizer que foi bom sentir, ainda que apenas por um momento, que eu tinha um adversário de valor - mais valor, de longe, do que essas aberrações do outro lado do Abismo.
Temo que a Companhia Teatral Strand terá de procurar um novo ator.
Não assinarei como Vernet, e, até que a caçada termine e o mundo seja restaurado, rogo que pense em mim simplesmente como Rache.
O inspetor Lestrade saiu correndo do quarto e chamou seus homens. Eles fizeram o jovem Wiggins levá-los até o lugar onde o homem lhe dera o bilhete, como se fossem encontrar Vernet, o ator, à sua espera, baforando seu cachimbo. Da janela, nós os observamos correr, meu amigo e eu, balançando a cabeça.
- Vão parar e vasculhar todos os trens saindo de Londres, todos os navios partindo de Albion para a Europa ou para o Novo Mundo - disse meu amigo -, procurando um homem alto e seu companheiro, um médico baixo e atarracado que manca levemente. Vão bloquear todos os portos. Todas as saídas do país serão fechadas.
- Acha que vão pegá-los, então?
Meu amigo fez que não com a cabeça:
- Posso estar errado, mas seria capaz de apostar que ele e seu amigo estão neste exato momento a pouco mais de um quilômetro daqui, no cortiço de St. Giles, onde os policiais não entram senão aos montes. E os dois vão se esconder lá até a poeira baixar. Depois, seguirão com seu trabalho.
- Por que diz isso?
- Porque, se as posições estivessem invertidas, é o que eu faria. A propósito, é melhor você queimar o bilhete.
Franzi o cenho:
- Mas é uma prova importante.
- É uma bobagem subversiva - disse meu amigo.
E eu deveria tê-lo queimado. Aliás, eu disse a Lestrade que o queimara, quando ele voltou, e ele me congratulou pelo meu bom senso. Lestrade conservou seu emprego, e o príncipe Albert escreveu uma mensagem para o meu amigo, parabenizando-o por suas deduções, embora o culpado continuasse à solta, o que ele lamentava.
Ainda não capturaram Sherry Vernet, ou seja lá qual for seu verdadeiro nome, e nem sequer um único sinal foi encontrado de seu comparsa assassino, provisoriamente identificado como um ex-cirurgião militar chamado John (ou talvez James) Watson. Curiosamente, soube-se que ele também estivera no Afeganistão. Eu me pergunto se chegamos a nos conhecer lá.
Meu ombro, tocado pela Rainha, continua a melhorar, a carne está preenchendo-o de novo. Logo serei capaz de atirar tão bem como antes. Uma noite, quando estávamos a sós, há alguns meses, perguntei ao meu amigo se ele se lembrava da correspondência a que se referia o homem que se denominara Rache. Meu amigo disse que se lembrava bem dela, e que "Sigerson" (era assim que o ator se apresentava então, dizendo ser islandês) se inspirara numa equação do meu amigo para sugerir algumas teorias tresloucadas que aprofundavam a relação entre massa, energia e a hipotética velocidade da luz.
- Bobagens, é claro - disse ele, sem sorrir. - Ainda assim, bobagens inspiradas e perigosas.
O palácio, por fim, mandou dizer que a Rainha estava satisfeita com o desempenho de meu amigo no caso, e a coisa ficou por isso mesmo.
No entanto, duvido que ele vá deixá-la assim. Essa história só vai acabar quando um deles matar o outro.
Guardei o bilhete. Nesta reconstituição dos fatos, eu disse coisas que não devem ser ditas. Se eu tivesse bom senso, queimaria estas páginas todas. Porém, como meu amigo me ensinou, até cinzas podem revelar segredos. Então, guardarei estes papéis numa caixa de segurança no cofre do meu banco, com instruções para que não seja aberta até bem depois de todos os que hoje vivem estarem mortos. Contudo, à luz dos recentes eventos na Rússia, temo que esse dia esteja mais próximo do que gostaríamos.


Major S_ M_ (Reformado)
Baker Street,
Londres, Nova Albion, 1881

Do livro COISAS FRÁGEIS

O HOMEM ZEBRA DE TAKASHI MIIKE

KAMI

04

IMAGINAÇÃO PERTUBADA

cast

__ Sabe-se que há um número infinito de mundos, simplesmente porque há um espaço infinito para que os haja. Todavia, nem todos são habitados. Assim,deve haver um número finito de mundos habitados. Qualquer número finito dividido pelo infinito é tão perto de zero que não faz diferença, de forma que a população de todos os planetas do Universo pode ser considerada igual a zero. Daí segue que a população de todo o Universo também é zero, e que quaisquer pessoas que você possa encontrar de vez em quando são meramente produtos de uma imaginação perturbada.

Douglas Adams